Carta-branca para a trompete de Susana Santos Silva
Em poucos anos, Susana Santos Silva despontou e criou uma linguagem autónoma da Orquestra de Jazz de Matosinhos, tornando-se uma trompetista a que o mundo da música improvisada está atento. A sua colaboração com os belgas De Beren Gieren é apenas a ponta de uma criatividade e de uma actividade febris.
Não pertence àquele grupo de músicos de jazz que sabe de cor fichas técnicas de centenas de discos e consegue seguir milagrosamente o rasto do mais secundário dos instrumentistas, citando sem dificuldade as suas maiores proezas num autêntico lodaçal de edições. Tem, por exemplo, uma vaga recordação de ter começado a tocar trompete, ela e todos os irmãos e primos, por influência do avô, e da sua estreia em concerto logo aos oito anos com a Banda Marcial da Foz do Douro. Mas já inquiriu a família para perceber se a trompete foi, de facto, escolha sua. Pela amostra das respostas recolhidas convenceu-se que ninguém a forçou ou a empurrou na direcção do instrumento. Seria até inverosímil que uma criatividade tão febril e livre pudesse brotar de uma imposição.
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Não pertence àquele grupo de músicos de jazz que sabe de cor fichas técnicas de centenas de discos e consegue seguir milagrosamente o rasto do mais secundário dos instrumentistas, citando sem dificuldade as suas maiores proezas num autêntico lodaçal de edições. Tem, por exemplo, uma vaga recordação de ter começado a tocar trompete, ela e todos os irmãos e primos, por influência do avô, e da sua estreia em concerto logo aos oito anos com a Banda Marcial da Foz do Douro. Mas já inquiriu a família para perceber se a trompete foi, de facto, escolha sua. Pela amostra das respostas recolhidas convenceu-se que ninguém a forçou ou a empurrou na direcção do instrumento. Seria até inverosímil que uma criatividade tão febril e livre pudesse brotar de uma imposição.
A memória menos longínqua diz-lhe com clareza, no entanto, que em 2011, no ano em que se estreou à frente do seu quinteto com o álbum Devil’s Dress, a sua irrelevância para o mundo do jazz era quase total. Dos muitos emails e contactos que tentou na altura estabelecer com festivais internacionais, esforçadamente promovendo a sua música, raras foram as respostas que obteve. Uma ou outra, mais simpática, dava-se ao trabalhar de agradecer dizendo que “não, obrigado, não pode ser”. Era o primeiro passo da sua afirmação – o ano de Devil’s Dress mas também do primeiro álbum do trio LAMA, partilhado com Gonçalo Almeida e Greg Smith, formado por alturas da ida de Susana Santos Silva para Roterdão atrás de um mestrado em Jazz Performance. O que encontrou foi, afinal, uma cena musical que desconhecia, uma liberdade de mexer no jazz e não ter medo de sujar as mãos, uma facilidade de circulação que não obrigava a adoptar o mainstream ou o vanguardismo sem ficar marcada com um carimbo que lhe limitasse os movimentos. “Abriu-me portas e horizontes e, de repente, comecei a perceber que havia espaço para mim, que não era tolinha de todo”, ri-se.
Tudo mudaria muito rapidamente. Em pouco tempo, a participação na European Movement Jazz Orchestra, ao lado de músicos alemães e eslovenos, daria frutos que ultrapassavam em muito a acção de uma orquestra que não demorou a ser desactivada – embora não extinta – devido aos elevados custos de cada concerto. Depois, a gravação do segundo álbum dos LAMA, com a participação do saxofonista Chris Speed, no Portalegre Jazz Fest de 2012, coincidiria ainda com o momento em que se cruzou com o contrabaixista sueco Torbjörn Zetterberg. Pedro Costa, da editora portuguesa Clean Feed, apadrinhou o encontro ao enfiar os dois dentro de um jipe e avançar pelo campo fora, evitando vacas e outros animais pelo caminho. A experiência acabaria por dar nome a um dos temas (Cow Safari) que gravaram num álbum em duo, Almost Tomorrow, um sumptuoso registo realizado durante a primeiríssima partilha musical entre os dois. São duas pessoas a conhecer-se, a tactear-se, a perceber como as suas linguagens se encaixam, complementam ou contradizem. Tudo a quente, com a intuição a ditar o rumo de cada desvio.
O primeiro tema de Almost Tomorrow funciona então também um documento da primeira vez que tocaram juntos, ignorando ainda se a empatia a dois saberia encontrar caminho para a relação negociada com os instrumentos. Puseram a gravar, entabularam as primeiras notas e saiu Knights of Storvålen. “Às vezes [um encontro destes] resulta musicalmente, mesmo que a nível pessoal a relação não seja brilhante”, testemunha a trompetista. “Mas a longo prazo, para ter um projecto a acontecer, com quem se viaja e toca concertos e passa montes de tempo na estrada, é muito importante haver essa empatia.”
As raízes na orquestra
Não é fantasia de Susana Santos Silva ou manifestação de um sonho remoto esta menção a passar muito tempo na estrada com outros músicos. Quando o ÍPSILON a apanha no skype, acaba de chegar a Berlim vinda de Estocolmo, onde esteve a gravar o novo álbum do sexteto de Zetterberg. Na capital alemã tem cinco concertos a bordo de diferentes formações com músicos locais, agendados para aproveitar uma semana entre o estúdio na Suécia e as apresentações na Bélgica com o trio local De Beren Gieren, com quem lançou recentemente The Deteour Fish, magnífico exercício de gestão de estilhaços estilísticos inspirado pelo Quinteto A Truta, Op. 114, de Franz Schubert. Em Bruxelas, aproveitará ainda para continuar a colocar mais uns tijolos na construção de um duo que se estreará em disco este ano, com uma das mais estimulantes pianistas da actualidade, a eslovena Kaja Draksler.
“Neste momento, se não fosse a orquestra provavelmente iria viver para Estocolmo – por motivos musicais e não só”, confessa a trompetista, reconhecendo as cada vez mais frequentes solicitações internacionais e a facilidade com que, hoje, pode accionar uma rede de contactos que lhe permite preencher a semana entre Estocolmo e Bruxelas com uma série de concertos em Berlim. Mas quando refere “a orquestra”, Susana fala-nos da sua ligação quase umbilical à Orquestra de Jazz de Matosinhos (OJM), capital na sua assunção do jazz como primeira língua. A OJM, para onde entrou em 1996, aos 17 anos, depois de sabiamente pescada por Carlos Azevedo numa audição de combos de jazz do Conservatório, representa as raízes fincadas no Porto, estando igualmente envolvida na associação Porta-Jazz e próxima de uma comunidade que se reúne em torno da Sonoscopia.
Na altura que se juntou à OJM seguia ainda dois percursos paralelos e prioritários – estudava Engenharia e Trompete Clássica. E só em 2004, depois de concluir os estudos do instrumento em Karlsruhe, quando se preparava para se fixar na Alemanha e iniciar uma pós-graduação, foi subitamente assaltada por um pensamento que se resume nesta frase: “Não quero tocar Haydn o resto da vida.” “Não consigo explicar, não faço a mínima ideia do que aconteceu, mas numa semana decidi que ia regressar para o Porto e queria tocar jazz. Tocar clássica era demasiado restritivo.” Voltou à escola, mas a sua verdadeira formação larvar tinha já sido garantida pela OJM e pela oportunidade, ao longo dos anos, de tocar com gente do calibre de Lee Konitz, Chris Cheek, Kurt Rosenwinkel, Maria João e João Paulo Esteves da Silva.
Assustador, libertador
Se os alicerces jazzísticos no trajecto de Susana Santos Silva são fáceis de identificar na presença contínua enquanto membro da versátil OJM, o seu autodiagnóstico de outsider – “estava em Engenharia e não gostava, estava a estudar Trompete Clássica mas também não era bem aquilo, fui para a escola de jazz mas nunca me integrei”, resume – conduziu-a até à conclusão obrigatória de que o jazz aprumado não lhe servia. “Nunca consegui perceber como se pode imitar o que está para trás, recriar o que já foi feito e fazer disso a nossa vida – quando isso não é a nossa vida, não é a minha vida e nunca poderia ser”, argumenta. “O que foi feito na altura, e incrivelmente bem feito no jazz, adoro ouvir por quem de direito. Mas hoje em dia bandas a tocar como se tocava há cem anos… não consigo. Por isso precisava de encontrar o meu caminho, senão não fazia sentido.” Daí a importância da chegada a Roterdão e a revelação de um mundo ligado à música improvisada que desconhecia em Portugal – muito embora, admite, já existisse.
A revolução musical na vida de Susana Santos Silva não a tem largado nos últimos anos. Se muitos continuam a ouvir ecos de Kenny Wheeler no seu fraseado, foi neste período que Peter Evans, “tão alien, tão alien que é incrível”, lhe escancarou as portas para as possibilidades da trompete. Se em 2011 dizia em entrevista que se sentia mais confortável a tocar com uma partitura à sua frente, hoje o seu discurso encaminha-se com naturalidade para a defesa do sentimento contrário, devido a uma ausência de expectativas de como a música se deve comportar – “Gosto muito de poder esquecer tudo o que está à volta e concentrar-me completamente no que estou a ouvir e na música que sai”, diz. “Gosto de misturar tudo. Gosto que haja ritmo, sentido de harmonia, melodias, noise, extended techniques e algum tipo de composição e estrutura. Se penso num projecto meu, é isso que quero fazer, tentar integrar tudo.”
É precisamente o que encontramos na sua música actual e continuaremos a ouvir nos próximos meses, com o generoso plano de edições que a espera: LAMA com Joachim Badenhorst, em duo com Kaja Draksler, em duo com Torbjörn Zetterberg com um convidado organista (gravado em Paris, na Église du Saint-Esprit), um novo quinteto a registar no Festival de Jazz de Guimarães e a editar pela Porta-Jazz. Razões de sobra para que continue a inversão daquilo que acontecia em 2011. Agora, já é Susana Santos Silva a receber emails de importantes festivais internacionais trocando os termos da proposta: ela que se apareça, com qualquer formação que escolha levar. “Estou sempre a pensar que isto pode acabar amanhã. É uma sensação de viver sem rede. E isso é tão assustador quanto libertador.”