Breve mas para sempre
Lydia Davis volta com mais um exemplo de concisão, humor e vitalidade narrativos sobre o desajuste actual. Um livro de histórias que perseguem quem as lê, como acontece sempre que escreve
Os grandes encantos e desconcertos de ler as histórias de Lydia Davis resultam da sua enorme capacidade de dramatizar os mais pequenos episódios do quotidiano, aumentando-lhes a dimensão ao ponto de os isolar do todo, o que os torna hilariantes, ridículos, obsessivos, insignificantes ou tremendamente emotivos. Esse efeito lupa dura o tempo exacto para não os descontextualizar, não lhes retirar sentido, só o suficiente até o absurdo ou a sordidez do insólito ficarem mais bem sublinhados e sem que o notemos, impressos no nosso subconsciente. Em cada momento, a escritora brinca com a perspectiva num difícil jogo de equilíbrio entre uma análise mais fria, ou cerebral, e a eficácia com que convoca as emoções mais íntimas.
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Os grandes encantos e desconcertos de ler as histórias de Lydia Davis resultam da sua enorme capacidade de dramatizar os mais pequenos episódios do quotidiano, aumentando-lhes a dimensão ao ponto de os isolar do todo, o que os torna hilariantes, ridículos, obsessivos, insignificantes ou tremendamente emotivos. Esse efeito lupa dura o tempo exacto para não os descontextualizar, não lhes retirar sentido, só o suficiente até o absurdo ou a sordidez do insólito ficarem mais bem sublinhados e sem que o notemos, impressos no nosso subconsciente. Em cada momento, a escritora brinca com a perspectiva num difícil jogo de equilíbrio entre uma análise mais fria, ou cerebral, e a eficácia com que convoca as emoções mais íntimas.
O seu mais recente volume de contos/histórias, escrito depois de ter vencido o Man Booker International Prize em 2013, Não Posso Nem Quero, original de 2014 agora editado pela Relógio d’Água em Portugal, é mais um exemplo desse seu estilo conciso e poético, do humor que usa para falar do desajuste humano, da perícia com que manuseia a linguagem, sabedora do efeito que terá cada palavra ou vírgula que escolhe colocar numa frase. E, tantas vezes, no seu caso, uma história não é mais do que uma frase. “Agora que já aqui estou há algum tempo, posso dizer com toda a confiança que nunca aqui estive antes.” Bloomington, a quinta história desta colectânea de 122, começa e acaba assim, com algo que se assemelha a um “arranha-céus”, expressão da própria Lydia Davis para se referir ao efeito desta brevidade. É preciso espaço para respirar.
A par com Alice Munro, George Saunders ou Lorrie Moore, Lydia Davis (Massachusetts, 1947), é um dos nomes mais celebrados do conto em língua inglesa e, como eles, tem ajudado a “reabilatar” na actualidade o conto, tantas vezes diminuído, enquanto género literário. Com seis colectâneas de histórias publicadas, Davis consegue ter no leitor um efeito exemplar: o modo como baralha o real nas suas ficções (que por vezes são um poema, única frase ou um diálogo de três ou quatro linhas) torna-o referência, ou seja, para cada episódio da vida há uma história de Davis que encaixa e essa memória literária, a de cada leitor, funciona como um auxiliar de sentido.
Tradutora para inglês de Proust, Blanchot ou Flaubert, Lydia Davis faz também aqui um exercício a partir da literatura do autor de Madame Bovary. Há onze textos inspirados em episódios da escrita do escritor francês, jogos de concisão literária, misto de ironia e melancolia que intercala com o devaneio, o sonho enquanto possibilidade de manipular a realidade que tanto jeito tem dado à literatura e que Davis explora de forma delirante, uma dimensão que permite soltar o lado mais trágico ou diabólico, e sempre preparada para atirar com o efeito-surpresa, que é, aliás, transversal a toda a sua escrita.
Ao isolar episódios, Lydia Davis revela-os, pelo absurdo ou pela emoção, em toda a sua significância. Uma discussão entre um casal, uma carta a uma fábrica a reclamar o facto de a imagem das ervilhas na embalagem não reflectir o aspecto do produto que está no interior, a incapacidade de uma patroa lidar com a dupla de criadas teimosas e pouco inteligentes, a escolha de um lugar no comboio com a expectativa de encontrar um bom vizinho de viagem, a indecisão de se desfazer ou não de um velho tapete ou do que servir ao jantar. “Ainda estou deitada quando uns amigos nossos chegam a casa para jantar. A minha cama está na cozinha. Levanto-me para ver o que posso fazer para eles. Encontro três ou quatro embalagens de hambúrgueres no frigorífico, algumas já encetadas e outras ainda por abrir. Acho que posso juntar os hambúrgueres todos e fazer um rolo de carne. Ia precisar de uma hora, mas não me ocorre mais nada. Volto a deitar-me um pouco para pensar sobre o assunto.”
Divido em três partes, o livro é coerente com o universo criativo de Lydia Davis. O dia-a-dia, as referências literárias, a invenção, o uso de aforismos, o olho cirúrgico, a atenção às obsessões, a procura de um sentido através da gargalhada ou do seu contrário, da picada que solta a raiva ou a lágrima. Nada aqui é sereno. Uma palavra ou a pontuação podem fazer desabar e é a queda rápida como de um precipício. “Ela está debruçada sobre a filha. Não a consegue deixar. A filha está em câmara ardente sobre uma mesa. Ela quer tirar-lhe mais uma fotografia, provavelmente a última. Em vida, a filha nunca conseguia ficar quieta para uma fotografia. Ela diz para si própria ‘Vou buscar a máquina’, como se dissesse à sua filha: ‘Não te mexas.’”
Como chamar ao que Davis faz com a sua escrita? Uma crónica sentimental, por vezes sátira, onde a ironia serve para lidar com um desespero, o conflito interior ou angst, o tal desajuste pessoal, social. É um dos autores a ler para tentar captar o momento actual.