Um boca aberta para acolher todas as memórias

O que Fica do que Passa junta Teresa Silva e Filipe Pereira numa coreografia em que o protagonismo da bailarina é disputado pelo cenário. E funciona como dispositivo de activação de memórias soltas no palco e na plateia.

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A meio do processo de construção desse solo, num momento de crise, em que lhe escapava a clarividência de perceber que caminhos estava a tomar e apenas encontrava becos diante de cada gesto, a frustração acumulou-se até um ponto em que tinha de ser expurgada. “Como estava a partilhar o estúdio com outras pessoas e não queria mostrar demasiado que estava em crise, nem me apetecia partilhar aquilo, dei um grito super forte mas que não se efectivou”, conta. E ficou então a pensar nesse grito, numa “potência que não foi finalizada”.

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A meio do processo de construção desse solo, num momento de crise, em que lhe escapava a clarividência de perceber que caminhos estava a tomar e apenas encontrava becos diante de cada gesto, a frustração acumulou-se até um ponto em que tinha de ser expurgada. “Como estava a partilhar o estúdio com outras pessoas e não queria mostrar demasiado que estava em crise, nem me apetecia partilhar aquilo, dei um grito super forte mas que não se efectivou”, conta. E ficou então a pensar nesse grito, numa “potência que não foi finalizada”.

Desse momento nasceu uma primeira proposta de solo: a boca de Teresa Silva escancarada, mantendo uma mesma expressão enquanto cantava. O que na altura a seduziu nesse momento de inacção, tão contrário àqueles que são os códigos da dança, pautados pelo movimento, era a possibilidade de esticar “um gesto que se prolonga no tempo”, permitindo que “uma quantidade de sentidos pudessem atravessar aquela boca que se detém numa só acção”, diz. O movimento concentrava-se então numa boca que abria e estimulava aquilo a que Teresa Silva e Filipe Pereira – co-autor de O que Fica do que Passa – chamam “a activação do imaginário”. À sua imagem simples no palco deviam colar-se as referências de cada espectador.

Esse dispositivo está também presente na sequência inicial da peça que esta quarta-feira apresentam no Teatro Maria Matos, em Lisboa, quando a coreografia é construída de uma forma menos inesperada. Mas é de novo o imaginário de cada pessoa sentada na plateia que é chamado a contribuir. “Nessa sequência mexo-me a partir de vários lugares – de uma sensação, de um olhar, de uma coisa que vejo, de qualquer coisa que desencadeia um sinal, de um pensamento que tenho no momento, de uma coisa puramente concreta e física como o levantar de um braço. E o movimento acontece à volta de tudo isto.” A própria Teresa Silva, bailarina habitual nas criações de Tânia Carvalho e Luís Guerra, ocupa o palco nessa disposição de reagir àquilo que o espectáculo possa despertar em si no momento.

Tudo se relaciona em O que Fica do que Passa com a intenção de descentrar a atenção da bailarina, um processo que começou a ser afinado quando, aos poucos, o apoio cenográfico prestado por Filipe Pereira foi adquirindo uma importância crescente. Nesse momento em que a boca de Teresa parece sugar todo o interesse, aos poucos, a narrativa parece transitar para a música, numa deslocação do interesse da boca de cena para o fundo de cena. Como se a bailarina passasse a ser o cenário e a música a protagonista. Foi uma conclusão a que chegaram à medida que foram construindo a peça para trás, perguntando-se o que poderia ter conduzido até cada momento que fixavam. E foi-se tornando cada vez mais claro para os dois que o cenário exigia um protagonismo ao mesmo nível daquele atribuído à bailarina. O solo metamorfoseou-se assim em dueto. O cenário também ele a ensaiar uma dança, uma coreografia, a luz a deixar de funcionar como foco que dirige o olhar, mas a disputar o coração do espectáculo. Teresa, às tantas, retira-se para trás de uma cortina e Filipe invade tranquilamente o palco com uma lanterna que produz formas com a luz, ao mesmo tempo que evoca o cinema.

Cinema, teatro, dança

O cinema surge dessa activação de imaginários com que Teresa e Filipe querem jogar. Foi um elemento com que se depararam em pleno processo, do qual estavam plenamente conscientes, embora o tivessem encontrado de forma acidental. Em parte, porque uma das ideias que queriam levar para cena passava por trabalhar materiais em tempo real. E a partir do momento em que uma lanterna podia subitamente incidir sobre uma tela branca, o cinema era uma inevitabilidade. Ainda assim, houve já quem apontasse à gestualidade de Teresa Silva uma outra citação cinematográfica, ligada em concreto aos filmes de Charlie Chaplin. A bailarina e coreógrafa, mais uma vez, não nega a ligação. “Só não é preciso enfatizar ou calcar”, acrescenta. “Já está lá.”

Tal como está a correspondência a Not I, de Samuel Beckett, quando uma boca é o único elemento iluminado em palco, produzindo um discurso debitado de forma obsessiva e repetitiva. Tal como está a música de Debussy e o fauno imortalizado por Nijinsky em L’Après-Midi d’un Faune. “Para nós”, justifica Teresa, “a música tinha muito que ver com um lado sensível, intuitivo e de tensão de que estávamos à procura. A dança também veio muito daí, não preocupei muito se tinha que ver com dança contemporânea. Queria ter um corpo permeável, menos voluntário no movimento.”

O que Fica do que Passa trabalha, pois, sobre memórias soltas – de Teresa, de Filipe e dos espectadores – e recorre sistematicamente a impressões passageiras. Para Teresa Silva, aliás, “a peça está sempre a começar e a acabar”. Cada fragmento que nasce em palco, está destinado a morrer logo em seguida. Para depois renascer com outro sentido e outra forma.