Cristina Kirchner acaba com os serviços secretos após morte de procurador

A Presidente argentina vai dissolver a Secretaria de Informação, que acusa de orquestrar denúncias contra o seu Governo e de ter prestado informações falsas ao procurador que investigava o atentado ao centro judaico que fez 85 mortos há mais de 20 anos.

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Kirchner falou mais de uma hora na cadeia de televisão nacional Reuters

A grande revelação foi o anúncio da extinção da Secretaria de Inteligência – o órgão dos serviços secretos argentinos herdado do período ditatorial e ainda conhecido popularmente pela antiga sigla, SIDE (Secretaria de Inteligência do Estado). Kirchner quer que o Congresso debata a dissolução do serviço ainda esta semana, antes de partir para a China, onde no sábado inicia uma visita oficial.

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A grande revelação foi o anúncio da extinção da Secretaria de Inteligência – o órgão dos serviços secretos argentinos herdado do período ditatorial e ainda conhecido popularmente pela antiga sigla, SIDE (Secretaria de Inteligência do Estado). Kirchner quer que o Congresso debata a dissolução do serviço ainda esta semana, antes de partir para a China, onde no sábado inicia uma visita oficial.

A decisão vem no seguimento da morte de Alberto Nisman, o procurador que liderava as investigações ao atentado bombista contra a Associação Mutualista Israelita Argentina (AMIA) em Buenos Aires, em 1994, que provocou a morte a 85 pessoas. Recentemente, Nisman tinha acusado o Governo de Kirchner de ter encoberto a responsabilidade do Irão no ataque em favor de uma reaproximação diplomática e comercial.

As relações entre os dois países eram praticamente inexistentes por conta do ataque à AMIA – as investigações apontavam para a responsabilidade de dirigentes iranianos, incluindo um ex-ministro, que terão encomendado o ataque ao grupo terrorista Hezbollah. A recusa de Teerão em extraditar os suspeitos para que pudessem ser julgados na Argentina levou mesmo Néstor Kirchner a denunciar o caso na Assembleia Geral da ONU, em 2007.

O Governo de Cristina Kirchner instituiu em 2013 uma comissão de inquérito, depois de ter garantido um acordo com o Irão, sem o conhecimento de Nisman, que liderava as investigações desde 2004. O relatório do procurador mostrou que Kirchner e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Héctor Timerman, tentaram entre 2011 e 2013 estabelecer um acordo secreto com o Irão para que as investigações sobre os dirigentes do regime fossem gradualmente abandonadas. Desta forma, a Argentina, em plena crise energética, teria um acesso privilegiado a um dos maiores exportadores de petróleo do mundo.

O negócio nunca chegou a ver a luz do dia, devido ao falhanço de Buenos Aires em dissuadir a Interpol de continuar as investigações. Mas as suspeitas lançadas por Nisman, seguida da sua morte escassos dias depois, deixou o país em estado de choque e aumentou as divisões numa sociedade já altamente polarizada.

O reino do cepticismo

A Argentina, que com quase 200 mil judeus tem uma das maiores comunidades do mundo, viu o atentado da AMIA com especial significado, embora com diferentes matizes, todas elas correspondentes a diferentes sectores da sociedade de acordo com as suas fidelidades políticas, como explica ao PÚBLICO o professor de Ciência Política, Sebastian Linares.

“Todos coincidem, como é óbvio, em condenar os factos, sem atenuantes. Mas a sociedade discorda acerca das implicações do caso. Para boa parte da população, o caso da AMIA representa a ineficácia do sistema policial e judicial argentino, para outros mostra a conivência dolosa de sectores ligados ao Governo argentino e os atentados, alguns consideram que mostra apenas a negligência do Governo e, finalmente, para alguns, o caso foi usado por sectores da oposição para conspirar contra o Governo”, explica.

Torna-se, portanto, crucial apurar responsabilidades. Mas mais de duas décadas depois, ainda ninguém se sentou no banco dos réus e o cepticismo apenas aumenta. “Por desgraça, o sistema judicial e a comunicação política na Argentina está tão degradada que se torna impossível encontrar um pouco de racionalidade no debate”, observa o professor da Universidade de Salamanca.

Com a morte de procurador, que durante dez anos se concentrou em exclusivo no caso, a Argentina não só fica mais longe de saber quem orquestrou o atentado, como se depara com um novo escândalo. Várias manifestações têm sido organizadas na capital argentina para pedir justiça para os mortos da AMIA e, agora, para Nisman. “Yo soy Nisman” é o mote dos protestos, aproveitando o lema das manifestações na sequência do ataque ao semanário Charlie Hebdo.

Os protestos dividem-se entre o memorial de homenagem às vítimas do atentado e a Casa Rosada, a sede da presidência, com alguns manifestantes a acusarem Kirchner de assassínio. Em contraponto, o Movimento Evita tem também promovido o seu apoio à Presidente, com cartazes onde se lê “Nem tentem. Cristina somos todos”.

As circunstâncias em que Alberto Nisman morreu permanecem misteriosas e há razões para acreditar que este será mais um caso por resolver. “Suspeito que o sistema judicial argentino nunca poderá chegar a uma sentença e assinalar os responsáveis individuais”, diz Sebastian Linares. Como ele também a maioria dos argentinos terá pouca esperança – uma sondagem recente do Latinobarómetro mostrava que apenas um terço dos cidadãos deposita confiança na polícia e nas instituições judiciais.

Suicídio ou homicídio?

A primeira explicação apontava para o suicídio e foi avançada logo no dia em que o corpo foi descoberto, pelo secretário de Estado da Segurança, Sergio Berni, e secundada posteriormente por Kirchner. As conclusões periciais vieram, porém, comprovar a tese do homicídio.

O serralheiro que arrombou a porta do apartamento de Nisman afirmou que uma entrada de serviço da casa não estava totalmente trancada. Nas mãos do procurador não foram encontrados vestígios de pólvora, apesar de a arma utilizada ter um calibre reduzido, e a ausência de uma ferida de saída eram factores que indicavam a possibilidade de acção de outra pessoa. O próprio Nisman tinha deixado uma lista de compras para a sua empregada. Dias antes, de forma premonitória, tinha confidenciado a um jornalista que temia pela sua própria vida.

Até ao discurso desta segunda-feira, Kirchner apenas se tinha pronunciado sobre a morte de Alberto Nisman através de mensagens publicadas no Facebook. Começou, logo no dia da morte do procurador, por lamentar o “suicídio”, antes de qualquer perícia ter sido apresentada. Recuou dias depois para defender a tese do homicídio e de um procurador manietado para agir contra o Governo. “Usaram-no vivo e depois precisavam dele morto”, escreveu.

O discurso emitido pela televisão na noite de segunda-feira serviu para Kirchner apontar o alvo a abater: a Secretaria de Inteligência. Terão sido operacionais dos serviços secretos a plantar informações falsas na investigação de Nisman, para o conduzir às acusações contra o seu Governo. “Não há um único advogado, um ´´unico perito, um único magistrado que, assim que tenha conhecido a denúncia, possa acreditar que tenha sido escrita por um advogado, muito menos por um procurador”, disse Kirchner, referindo-se ao relatório de Nisman. “É irracional pensar que o nosso Governo possa sequer ser suspeito disto”, afirmou a Presidente.

O mestre espião

Na mira de Kirchner está especialmente o antigo director de operações da SI, Antonio Stiusso. Afastado do posto em Dezembro, Stiusso era uma figura influente nos serviços secretos, de que já fazia parte desde os tempos da ditadura militar, e apoiou a investigação de Nisman. O Governo acusa-o de ter fabricado as informações falsas que levaram o procurador às acusações contra Kirchner.

Mas Kirchner aproveitou também para responsabilizar os serviços secretos por uma “série de denúncias” contra si própria e o seu Governo. “A dissolução da SI é uma dívida da democracia que devo reformar. Temos uma espécie de carrossel permanente de procuradores, juízes e meios de comunicação que evidentemente foi descoberto e que é preciso cortar pela raiz”, afirmou, numa pose desafiante, contrastando com a fragilidade sugerida pela cadeira de rodas onde se sentava.