A bolha

Na bolha está-se bem, é quentinho e todo o activismo cidadão sai barato em “likes” no Facebook, se desse para viver de se ser da bolha era mesmo espectacular

Foto
Peter Kirkeskov Rasmussen

A bolha um local especial que cá há, é um lugar que deu muito trabalho aos pais, aos avós e aos bisavós (e especialmente aos servos da gleba deles) de quem vive na bolha a fazer; é um sítio mágico, onde as coisas são simples e as respostas pré-escritas por alguém que foi pago para dar explicações singelas a perguntas complexas.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A bolha um local especial que cá há, é um lugar que deu muito trabalho aos pais, aos avós e aos bisavós (e especialmente aos servos da gleba deles) de quem vive na bolha a fazer; é um sítio mágico, onde as coisas são simples e as respostas pré-escritas por alguém que foi pago para dar explicações singelas a perguntas complexas.

A bolha é suposto proteger. Protege do ensino público (que produz analfabetos funcionais), das urgências hospitalares (que produzem mortos), dos ciganos (que produzem assaltos e tráfico de droga), dos transportes públicos (que produzem piolhos e visões de gente a descascar fruta e a cortar as unhas no autocarro), dos bairros de lata (que produzem tudo o acima enumerado). Até a esquerda-caviar concorda que temos de apanhar o táxi, que a populaça é feia e ofensiva e perigosa e antes a má morte que tal sorte.

Para a bolha não é preciso dinheiro, mas é preciso capital (o irmão Bourdieu explica), é só quase uma questão de atitude e estupidez natural e estás lá. Falar línguas, ler livros e tentar perceber o que se passa é para “losers”, o que faz falta é resposta pronta e espírito vivo. Ir a sítios sem viajar, “consumir” cultura sem se deixar tocar, olhar sem ver, ouvir sem escutar, chega perfeitamente para dizer que fomos, que vimos, que estivemos lá, que conhecemos sicrano e beltrano e coiso e tal.

Porque para se estar na bolha não é preciso ser “reaça”, na bolha cabe tudo desde que haja classe. A malta que não tolera porque tolerar é etnocêntrico, que “compreende as motivações” dalgum terrorismo como herança do colonialismo e da dominação cultural da coca-cola, que vê nos tiranetes de 3.º mundo uma melhoria em relação aos tiranos do 1.º, é tudo malta da bolha, cheia de opiniões e certezas cínicas e “realistas”.

A bolha é um estado de espírito maravilhoso onde os "excéis" fazem sentido, onde os pobres são pobres porque são calões, onde África é uma desgraça só porque aquela gente não se sabe governar, onde haver mãos desempregadas e terras por cultivar é inevitável, onde o Marcelo é uma autoridade, o Aníbal um estadista, o Zeca um cantor “folk” e o Belmiro um exemplo. Na bolha está-se bem, é quentinho e todo o activismo cidadão sai barato em “likes” no Facebook, se desse para viver de se ser da bolha era mesmo espectacular.

Porque o drama da bolha é esse (na bolha dir-se-ia “a insuficiência”), a bolha não mete bifes do lombo e de salmão e (qual é a última moda gastronómica?) ostras na mesa, não automaticamente, pelo menos. E as pobres crianças que crescem a sonhar com futuros de decoradores, relações-públicas de restaurantes, diretores e diretoras de seja—do-que-for, sem nunca terem visto o interior dum autocarro ou uma cara subnutrida e desesperada, eventualmente espetam com os cornos na realidade, que elas defendem com frases velhas, nem elas sabem muito bem porquê.

Nesta bolha que eles acham que é de cristal (mas que na verdade é de sabão) as criaturas continuam a ser humanos como o resto da malta, por mais estranhos que nos pareçam do lado de cá do gradeamento de Versalhes. Nós nem nos importamos de sustentar a bolha, só estamos é fartos de ser governados pelos filhos idiotas que ela continua a produzir.