Viagem ao "hospital" que trata os velhinhos comboios de Cascais

Nas oficinas da EMEF em Oeiras tenta-se manter comboios já com muitos anos de percurso em cima dos carris. Há motores dos anos 60 e carruagens cuja estrutura data de 1926.

Fotogaleria

Há carruagens cuja estrutura data de 1926. E os motores mais recentes são de 1979. A maioria é dos anos 60 e têm problemas, não só porque são velhos, mas porque foram feitos para funcionar com uma cadeia de tracção que não é a actual. É que nos anos 90 os comboios da linha de Cascais foram alvo de uma remodelação que os dotou de ar condicionado, melhores assentos, novas cabines de condução e um design mais moderno.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Há carruagens cuja estrutura data de 1926. E os motores mais recentes são de 1979. A maioria é dos anos 60 e têm problemas, não só porque são velhos, mas porque foram feitos para funcionar com uma cadeia de tracção que não é a actual. É que nos anos 90 os comboios da linha de Cascais foram alvo de uma remodelação que os dotou de ar condicionado, melhores assentos, novas cabines de condução e um design mais moderno.

Mas estruturalmente pouco ou nada mudaram. E mesmo a nova cadeia de tracção introduzida trouxe problemas porque, como explica José Rola, “alterou-se o contexto em que o motor está a funcionar e isso provoca-lhe uma sobrecarga”. Daí o elevado número de avarias.

“Ainda não encontrámos a solução. É um dos pontos fracos”, reconhece este engenheiro, responsável também pelas oficinas da EMEF de Campolide, Santa Apolónia, Barreiro, Poceirão e Vila Real de Santo António. A empresa tem uma parceria com a Faculdade de Engenharia do Porto, que está à procura de soluções para minimizar estes problemas na tracção dos comboios.

São 37 as pessoas que trabalham nas oficinas de Oeiras, de segunda a sexta-feira entre as 8h00 e as 17h00. Há ainda um turno em que um electricista e um mecânico se deslocam, da meia-noite às 8h00, ao parque de material de Carcavelos para fazerem pequenas reparações nos comboios que ali ficam estacionados.

José Rola admite que seria desejável terem turnos durante a noite em Oeiras para responder a alguns picos de trabalho, mas diz que basta uma carrinha ir descarregar material fora de horas para terem a PSP à porta a dizer que os vizinhos se queixam do barulho. Não é fácil ter uma oficina no centro de uma cidade, apesar de, tradicionalmente, estas instalações serem fabris há muitos anos pois ali funcionou a antiga Fundição de Oeiras.

Toda a manutenção dos 30 comboios que circulam na linha de Cascais é difícil. Até nos próprios bogies (rodados), que têm uma tipologia muito antiga, o que obriga ao uso de mão de obra intensiva e a uma elevada componente mecânica. Comparada com a manutenção dos outros comboios eléctricos da CP, não há dúvida que esta frota é a mais cara de manter e a que tem mais avarias.

Em 8 de Fevereiro de 2013 dois destes comboios descarrilaram em Algés e Caxias. Não houve feridos. O relatório concluiu que a ruptura do veio motor de um dos rodados “esteve na origem e na cadeia de eventos que conduziram a dois descarrilamentos”.

José Rola explica que a EMEF aprendeu com estes acidentes e que isto não voltará a repetir-se. A empresa está a proceder à substituição dos veios mais antigos e reduziu o espaçamento com que este material era inspeccionado através de ultra-sons para verificar se existe alguma fissura. “Não é suposto voltar a acontecer mais acidentes destes. Risco zero não existe, mas é muito próximo disto que estamos a trabalhar”, diz.

A média de idades do pessoal de Oeiras é de 48 anos. Há décadas que ouvem dizer que o fim deste material – que conhecem como a palma das suas mãos – está para breve porque em breve a linha de Cascais vai ser modernizada e virão aí comboios novos. Cada nova grande reparação avizinha-se como sendo a última porque não há Governo que não prometa uma solução nova para este material envelhecido.

Mas os sucessivos planos de contingência e upgrades para manter o material sobre os carris não parecem desmotivar os mecânicos e electricistas que aqui trabalham. “As pessoas vivem isto como se fosse a sua segunda casa e a sua segunda família. Não tenho dúvidas sobre a sua vontade e dedicação”, diz o engenheiro chefe.

Diariamente a EMEF disponibiliza à CP 26 comboios, mantendo quatro em oficina. Trata-se de um rácio pesado. Por exemplo, a Fertagus, que tem comboios novos, possui 17 em operação e um em oficina. Mas aqui a provecta idade deste material obriga a estas imobilizações, que por vezes aumentam quando há avarias ou actos de vandalismo.

“Ainda na semana passada partiram-nos uns vidros e lá tivemos que suprimir comboios porque a composição não pode prosseguir”, diz José Rola. O vandalismo é, aliás, um dos motivos que complica a manutenção da frota e que leva a que o pessoal da EMEF de Oeiras se desloque, por vezes, ao Cais de Sodré e a Cascais para procederem, nas extremidades da linha, a pequenas reparações.

Uma pedra que parte um vidro é o suficiente para que um comboio fique imobilizado. O que significa que a rotação seguinte não pode ser feita e, de uma assentada, se suprimam vários comboios. Os efeitos do vandalismo têm aumentado tanto que a EMEF passou a fazer uma contabilidade analítica que especifica ao seu cliente CP quais as reparações por motivo de avaria e quais as que foram provocadas por distúrbios.

E há também um problema - comum a toda a rede da CP - que são os suicídios na linha. Por recomendação da Organização Mundial da Saúde, nem a empresa nem a comunicação social noticiam estes casos por causa do efeito de réplica. Por isso apenas é comunicado que houve um “incidente técnico”. Mas o resultado é sempre o mesmo: centenas ou milhares de passageiros furibundos atribuem a culpa à CP.

E também não é só o operador o único responsável pelo desconforto dos comboios desta linha. É certo que os solavancos, as trepidações e as vibrações se devem ao facto de o material ser velho.

Mas não só. Também a infra-estrutura não é nova.

A linha de Cascais está igualmente envelhecida, a precisar de uma renovação profunda que remova carris, travessas e brita, substitua o próprio leito de via e sobre ela assente uma nova infra-estrutura no qual os comboios deslizem suavemente sem que os passageiros sintam qualquer incómodo.

Mas até lá uma linha velha faz aumentar os factores de stress sobre o material. “Toda a fadiga induzida sobre os veículos seria reduzida se tivéssemos uma linha nova”, conta José Rola. “Ainda no sábado passado teve que se interromper a circulação porque se descobriu um carril partido que teve de ser soldado”.

Os problemas na infra-estrutura são da responsabilidade da Refer. A EMEF apenas repara e mantém os comboios. E a CP trata da exploração. Mas as três são empresas públicas sob a mesma tutela. O governo, que tem vindo a anunciar a concessão da linha de Cascais, ainda não definiu se esta será feita só na operação ou se envolve a linha como um todo.

“Não consigo separar o binómio roda-carril”, diz o responsável. “Se a linha for velha e os comboios forem novos, é difícil garantir boa comodidade. E o mesmo acontece se a linha for nova e os comboios forem velhos”. Pior mesmo é serem ambos – linha e comboios – velhos.

Complexidade técnica atrasa concessão

O governo anunciou em 2011 a concessão da linha de Cascais, naquilo que seria uma experiência-piloto para replicar noutras linhas suburbanas. Mas agora, em fim de mandato, nem os cadernos de encargos estão preparados nem o secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro, anunciou ainda qual o modelo - de entre os vários possíveis - escolhido para a privatização da linha.

Os candidatos à concessão terão de investir na infra-estrutura ou isso caberá ao Estado? Terão de comprar comboios novos ou usarão os velhos? Usarão outros comboios da CP? Em que condições? E como se processa a passagem do sistema de alimentação em 1500 volts em corrente contínua para os 25000 volts em corrente alterna? E quem pagará as alterações nas plataformas se outros comboios da CP/Lisboa vierem para Cascais? E com que horários, visto que não há composições que cheguem para assegurar a oferta actual?

Questões que parecem ter enredado a tutela e que conduziram a sucessivos adiamentos. Para já, o governo decidiu que, em vez de ser a CP a concedente, será a futura empresa Infraestruturas de Portugal, que reúne a Refer com a Estradas de Portugal a gerir o concurso público. O dossier está agora nas mãos de António Ramalho.

Até que algo se decida, o processo decorra e a linha de Cascais venha um dia a ser gerida por um concessionário, os 34 operários da EMEF em Oeiras vão continuar a manter os 30 comboios em serviço nesta linha, procurando que todos os dias os passageiros possam continuar a viajar, desconfortáveis, mas seguros.