O punk controlado dos Viet Cong
Os canadianos Viet Cong assumem que não se cria a partir do nada mas sim do caos, expondo uma música rock efervescente que não recusa a veia de transmissão do pós-punk, mas que não fica amarrada a ela no álbum homónimo de estreia.
Simplificando muito, tudo começou com o triunfo no início dos anos 2000 dos The Strokes ou Interpol, disseminando-se um pouco mais tarde para as ilhas britânicas dos Franz Ferdinand, regressando depois à Nova Iorque dos LCD Soundsystem.
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Simplificando muito, tudo começou com o triunfo no início dos anos 2000 dos The Strokes ou Interpol, disseminando-se um pouco mais tarde para as ilhas britânicas dos Franz Ferdinand, regressando depois à Nova Iorque dos LCD Soundsystem.
Nos últimos anos o farol, apesar de tudo, apagou-se. Como é evidente a influência e a sombra desses tempos manteve-se, mas poucas vezes resgatada de maneira estimulante.
Uma das excepções foram as inglesas Savages através do álbum Silence Yourself (2013). E agora surgem os canadianos Viet Cong, também eles com um álbum de estreia que sem renegar as influências, expõe uma personalidade vincada.
Na música do grupo existe uma secção baixo-bateria em pulsação constante, guitarras cortantes e uma voz enérgica. Não têm nenhuma revolução sónica para propor, mas a sua vitalidade não se decide nas influências, mas na possibilidade de as superarem, com um som rock sem provas de redenção, que não esquece a história, mas não fica presa a ela com culpa.
“Gosto de um pouco de caos”, dizia recentemente Matt Flegel, o líder, argumentando que os concertos do grupo eram quase sempre imprevisíveis. “Mas ao mesmo tempo também me agrada deter algum controle sobre os elementos à minha volta, porque ninguém aguenta existir apenas movido pelo caos.”
Ouvindo a música da banda percebe-se o argumento. No espaço de uma só canção podem coabitar momentos de descontrole, qualquer coisa desnorteada e em bruto, com a condensação de emoções organizadas de forma rigorosa.
O quarteto não é novato. O cantor e baixista Matt Flegel e o baterista Mike Wallace fizeram parte dos Women, que lançaram dois álbuns (um homónimo em 2008 e Public Strain em 2010), com os quais alcançaram alguma visibilidade, principalmente no Canadá natal e nos Estados Unidos.
A morte do guitarrista do grupo, Christopher Reimer, em 2012, acabou por impulsionar o fim dos Women, ao mesmo tempo que alertou os restantes membros para a finitude da vida.
“A morte dele funcionou como uma espécie de ‘toque a reunir’, do tipo ‘vamos mas é fazer qualquer coisa antes de irmos desta para melhor’, porque percebemos que a qualquer momento tudo pode terminar e ainda temos muitas coisas que desejamos concretizar”, afirmava há meses Matt à publicação Pitchfork.
Aliás as alusões à morte, ou à passagem do tempo, abundam nas letras, como “if we’re lucky we’ll get old and die” (em Pointless experience), ou “when all is said and done, you’ll be around until you’re gone” (em Continental shelf) ou “you went too far the other way, you’ll never get old” (em Death).
O ano passado acabaram por lançar o EP Cassete e a estreia em formato álbum acontece agora, com uma musicalidade distante daquela que era praticada pelos Women, expondo uma sonoridade mais imediata e poderosa do que anteriormente.
Matt tem dito que quiseram atribuir ao som uma certa qualidade épica, daí algumas comparações com os Interpol, mas esse facto acaba por diluir-se na toada tão industrial quanto atmosférica de alguns temas, evocando elementos dos This Heat e Pop Group, como dos Joy Division ou Wire.
O álbum foi registado na cidade natal de Galgary, tendo a banda contado com a ajuda na produção de Graham Walsh dos Holy Fuck. É um disco assumidamente curto, à antiga, com sete temas que baralham as expectativas, mas ao mesmo tempo negoceiam, através da paixão, com territórios reconhecíveis.
É um daqueles registos que nos desafia olhos nos olhos, percebendo-se que o seu propósito não é só entreter. Possui alguma da impetuosidade do punk, expondo uma tensão colérica à beira do apocalipse, mas com inteligibilidade e sentido de comunicação. Há grito. Mas é um grito com sentido.
Com 32 anos, Matt Flegel, é alguém consciente da história. O rock há muito que é uma ocupação honorável e os próprios ironizam com esse facto, dizendo que até agora não fizeram um tostão, mas podem-se gabar e apresentar-se como rebeldes, “porque é isso que pensam que tu és quando fazes parte de um grupo como nós”, disse ao The Guardian o ano passado.
Num contexto como o do universo rock, obcecado com a ideia de juventude, onde a concepção “viver depressa e morrer jovem” se tornou mitológica, os Viet Cong contrapõem que desejam morrer tarde e desfrutar o mais possível do que gostam de fazer. Na sua génese o rock ilustrava as lutas de classes, mais do que o fosso entre gerações. Como diz Iggy Pop, esse eterno sobrevivente, “a forma como a indústria é obcecada pela juventude é patética, porque ser-se jovem não é sinónimo de talento: um jovem pateta é apenas um pateta.”
Os Viet Cong não são nada patetas. Têm consciência de si próprios e do meio onde estão inseridos, há muito que assumiram que não se cria a partir do nada mas sim do caos, expondo uma música rock efervescente que não recusa a correia de transmissão do pós-punk, mas não ficando amarrada a ela.