O fim do império colonial português

Nas “políticas de memória” contemporâneas houve um “ajuste de contas” com o passado ditatorial mas não com o passado colonial.

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Tropas portuguesas abandonam quartel português no Norte de Angola Luís Vasconcelos/Arquivo

A contradição é em parte explicada pelo facto dos actores centrais do 25 de Abril de 1974 (o MFA) serem também os actores da resistência militar à descolonização. Houve assim um “ajuste de contas” com o passado ditatorial mas não com a parte colonial do mesmo, sobrevivendo no discurso político e nas instituições um difuso excepcionalismo lusotropicalista.

A queda da Ditadura Portuguesa em 1974 e a natureza da democratização na metrópole iriam proporcionar a descolonização rápida do último império colonial europeu, em condições extremamente favoráveis para os movimentos guerrilheiros que ao longo de quase 14 anos mantiveram guerras de libertação contra o colonialismo português, na Guiné Bissau, em Angola e em Moçambique. Com a súbita impossibilidade de manter a pressão militar no terreno e um clima metropolitano favorável à transferência de poderes para os movimentos de guerrilha, a metrópole desfez-se rapidamente não apenas do mais ameaçado, mas de todo o património colonial, de Cabo Verde, a S. Tomé e Príncipe e a Timor. Ainda que por factores internacionais quer a independência de Timor quer, de forma diferente, a integração de Macau na República Popular da China, se prolongassem até ao início do século XXI, a descolonização portuguesa foi extremamente rápida. Em pouco mais de um ano Portugal desfez-se de todas as suas colónias. Para citar uma frase polémica do historiador José Medeiros Ferreira, foi “o centro que dispensou a periferia”.

Acresce que em 1975, as clivagens em torno da democracia em Portugal se sobrepuseram rapidamente às da descolonização. Democratização e descolonização foram no caso português processos simultâneos e mutuamente determinantes. O MFA institucionaliza-se em grande parte graças à resistência de Spínola à descolonização. Resolvida a questão Spínola, a decisão de descolonizar está tomada pelas elites políticas e o modelo vai ser rapidamente definido e aplicado a todas as colónias com grande uniformidade: transferência de poderes para os movimentos de libertação reconhecidos pela comunidade internacional.

Ainda que nos anos da consolidação democrática tenham surgido à direita pequenas manifestações ideológicas e política saudosistas, a perspectiva de adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) anulou com eficácia as bolsas discursivas do “fim de Portugal”. Com excepção dos retornados (e do MFA aliás) quase ninguém se preocupou com o seu fim. Os partidos que representaram a direita durante a descolonização não marcaram a diferença e, com grande pragmatismo, tentaram esquecer o tema, em 1975. Portugal deixou assim como legado pós-colonial uma interessante sincronia: a criação de novos Estados africanos com uma assinalável semelhança de sistemas políticos e com uma identidade mútua e inserção próxima no sistema internacional.

A descolonização de Angola foi obviamente a mais complexa. Seria exagerado dizer, como fez o historiador britânico David Birmingham, que esta emergiu “quase por acaso”, mas ela não foi provocada, por grande aceleração da pressão militar ou política sobre o poder colonial, da parte dos relativamente fracos e divididos movimentos de libertação. Angola era a mais rica e bem sucedida das economias coloniais dos anos 60, a que tinha o maior número de colonos brancos e conheceu a mais frustrante e violenta das descolonizações.

O 25 de Abril de 1974 veio surpreender um dos movimentos de libertação, o MPLA, numa grave crise interna, dividido em três facções, uma das quais bem armada. Perante a desagregação da força militar do MPLA, a FNLA, apesar de se ter transformado num apêndice de Mobuto, e as suas forças numa extensão das forças armadas do Zaire, reganhava o primeiro plano no campo militar e esforçava-se por recuperar o apoio norte-americano como futuro campeão do ocidente em Angola. A UNITA de Jonas Savimbi, ainda que enfraquecida, conseguiu sentar-se à mesa das negociações. Já latente na luta contra o colonialismo português, a guerra civil informal entre os três movimentos irá transformar-se numa longa guerra civil com forte intervenção internacional.

Numa perspectiva comparada, a descolonização portuguesa foi mais uniforme no que toca à saída quase imediata dos colonos brancos e na rápida nacionalização da propriedade pelo poder pós-colonial, que construíram sistemas políticos ditatoriais de partido único, muito semelhantes entre si. Num curto período de tempo, entre o Verão de 1974 e o início de 1976, quase todos os colonos brancos abandonaram as ex-colónias. O destaque deste movimento foi naturalmente para onde a sua presença era importante (Angola e Moçambique concentravam 95% da comunidade branca nas colónias portuguesas), mas foi uniforme, manifestando-se também em Cabo Verde ou em S. Tomé e Príncipe.

Enquanto se dava este “grande regresso”, a adesão à então CEE transformava-se no principal eixo da política externa portuguesa. A CEE, enquanto referência da Europa desenvolvida, foi um “símbolo disponível” de grande importância para as elites democráticas legitimarem uma nova ordem interna, após uma transição por ruptura bastante conflitual e o fim do império colonial, que tinha sido o argumento final do Estado Novo. No contexto de uma transição polarizada em 1974-75, a opção europeísta foi um elemento central de ruptura com o passado ditatorial, isolacionista e colonial, assumindo simultaneamente um dimensão anti-comunista e anti-revolucionária. Com o mito das colónias encerrado, as elites democráticas conseguiram consolidar na opinião pública a opção europeia como a única que poderia recriar uma relação importante com os novos países de língua portuguesa, com os quais as relações económicas tinham quase desaparecido e as políticas se tinham deteriorado, após a vaga de independências em 1975. Os anos 90 fizeram o resto.

Alguns historiadores ainda se deram ao exercício de demonstração de que nas ex-colónias portuguesas “não existem provas convincentes de que os movimentos de libertação arrastavam atrás a maioria da suas ‘nações’”, como escreveu o historiador Norrie MacQueen. Sendo seguramente verdadeira, a frase já só interessa aos cientistas sociais, sendo uma ilustre desconhecida nos processos de formação dos Estados contemporâneos.

Historiador, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

Esta série é feita em colaboração com os participantes da conferência O Ano do Fim. O Fim do Império Colonial Português, organizada pelo ICS

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A contradição é em parte explicada pelo facto dos actores centrais do 25 de Abril de 1974 (o MFA) serem também os actores da resistência militar à descolonização. Houve assim um “ajuste de contas” com o passado ditatorial mas não com a parte colonial do mesmo, sobrevivendo no discurso político e nas instituições um difuso excepcionalismo lusotropicalista.

A queda da Ditadura Portuguesa em 1974 e a natureza da democratização na metrópole iriam proporcionar a descolonização rápida do último império colonial europeu, em condições extremamente favoráveis para os movimentos guerrilheiros que ao longo de quase 14 anos mantiveram guerras de libertação contra o colonialismo português, na Guiné Bissau, em Angola e em Moçambique. Com a súbita impossibilidade de manter a pressão militar no terreno e um clima metropolitano favorável à transferência de poderes para os movimentos de guerrilha, a metrópole desfez-se rapidamente não apenas do mais ameaçado, mas de todo o património colonial, de Cabo Verde, a S. Tomé e Príncipe e a Timor. Ainda que por factores internacionais quer a independência de Timor quer, de forma diferente, a integração de Macau na República Popular da China, se prolongassem até ao início do século XXI, a descolonização portuguesa foi extremamente rápida. Em pouco mais de um ano Portugal desfez-se de todas as suas colónias. Para citar uma frase polémica do historiador José Medeiros Ferreira, foi “o centro que dispensou a periferia”.

Acresce que em 1975, as clivagens em torno da democracia em Portugal se sobrepuseram rapidamente às da descolonização. Democratização e descolonização foram no caso português processos simultâneos e mutuamente determinantes. O MFA institucionaliza-se em grande parte graças à resistência de Spínola à descolonização. Resolvida a questão Spínola, a decisão de descolonizar está tomada pelas elites políticas e o modelo vai ser rapidamente definido e aplicado a todas as colónias com grande uniformidade: transferência de poderes para os movimentos de libertação reconhecidos pela comunidade internacional.

Ainda que nos anos da consolidação democrática tenham surgido à direita pequenas manifestações ideológicas e política saudosistas, a perspectiva de adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) anulou com eficácia as bolsas discursivas do “fim de Portugal”. Com excepção dos retornados (e do MFA aliás) quase ninguém se preocupou com o seu fim. Os partidos que representaram a direita durante a descolonização não marcaram a diferença e, com grande pragmatismo, tentaram esquecer o tema, em 1975. Portugal deixou assim como legado pós-colonial uma interessante sincronia: a criação de novos Estados africanos com uma assinalável semelhança de sistemas políticos e com uma identidade mútua e inserção próxima no sistema internacional.

A descolonização de Angola foi obviamente a mais complexa. Seria exagerado dizer, como fez o historiador britânico David Birmingham, que esta emergiu “quase por acaso”, mas ela não foi provocada, por grande aceleração da pressão militar ou política sobre o poder colonial, da parte dos relativamente fracos e divididos movimentos de libertação. Angola era a mais rica e bem sucedida das economias coloniais dos anos 60, a que tinha o maior número de colonos brancos e conheceu a mais frustrante e violenta das descolonizações.

O 25 de Abril de 1974 veio surpreender um dos movimentos de libertação, o MPLA, numa grave crise interna, dividido em três facções, uma das quais bem armada. Perante a desagregação da força militar do MPLA, a FNLA, apesar de se ter transformado num apêndice de Mobuto, e as suas forças numa extensão das forças armadas do Zaire, reganhava o primeiro plano no campo militar e esforçava-se por recuperar o apoio norte-americano como futuro campeão do ocidente em Angola. A UNITA de Jonas Savimbi, ainda que enfraquecida, conseguiu sentar-se à mesa das negociações. Já latente na luta contra o colonialismo português, a guerra civil informal entre os três movimentos irá transformar-se numa longa guerra civil com forte intervenção internacional.

Numa perspectiva comparada, a descolonização portuguesa foi mais uniforme no que toca à saída quase imediata dos colonos brancos e na rápida nacionalização da propriedade pelo poder pós-colonial, que construíram sistemas políticos ditatoriais de partido único, muito semelhantes entre si. Num curto período de tempo, entre o Verão de 1974 e o início de 1976, quase todos os colonos brancos abandonaram as ex-colónias. O destaque deste movimento foi naturalmente para onde a sua presença era importante (Angola e Moçambique concentravam 95% da comunidade branca nas colónias portuguesas), mas foi uniforme, manifestando-se também em Cabo Verde ou em S. Tomé e Príncipe.

Enquanto se dava este “grande regresso”, a adesão à então CEE transformava-se no principal eixo da política externa portuguesa. A CEE, enquanto referência da Europa desenvolvida, foi um “símbolo disponível” de grande importância para as elites democráticas legitimarem uma nova ordem interna, após uma transição por ruptura bastante conflitual e o fim do império colonial, que tinha sido o argumento final do Estado Novo. No contexto de uma transição polarizada em 1974-75, a opção europeísta foi um elemento central de ruptura com o passado ditatorial, isolacionista e colonial, assumindo simultaneamente um dimensão anti-comunista e anti-revolucionária. Com o mito das colónias encerrado, as elites democráticas conseguiram consolidar na opinião pública a opção europeia como a única que poderia recriar uma relação importante com os novos países de língua portuguesa, com os quais as relações económicas tinham quase desaparecido e as políticas se tinham deteriorado, após a vaga de independências em 1975. Os anos 90 fizeram o resto.

Alguns historiadores ainda se deram ao exercício de demonstração de que nas ex-colónias portuguesas “não existem provas convincentes de que os movimentos de libertação arrastavam atrás a maioria da suas ‘nações’”, como escreveu o historiador Norrie MacQueen. Sendo seguramente verdadeira, a frase já só interessa aos cientistas sociais, sendo uma ilustre desconhecida nos processos de formação dos Estados contemporâneos.

Historiador, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

Esta série é feita em colaboração com os participantes da conferência O Ano do Fim. O Fim do Império Colonial Português, organizada pelo ICS