Recital vermelho e negro para corpo e piano
Os sucessivos ambientes sonoros e cortes de luz conferem à peça uma cadência modular e contornos de um recital intimista para um piano e um corpo.
A silhueta reaparece, silenciosa, a esgrimir um bastão metálico, como um dom quixote de BD a arremeter contra fantasmáticos moinhos de vento. Sob a luz avermelhada distinguimos uma mulher ao piano (Joana Gama) a tocar abruptos acordes avulsos (composição de João Godinho) enquanto a cena ganha claridade; entre ciclos de alta voltagem e de apaziguamento, movimento e som convergem casualmente. O bailarino executa variações sobre curtas sequências, onde explora movimentos fluidos, suspensões, voltas, bruscas mudanças de direcção, ou ínfimos gestos nervosos, numa paleta expressiva que vai do burlesco ao garboso, do convulsivo ao virtuoso, condimentada com sorrisos, vocalizações ou atitudes de abandono, a convocar as estratégias cumulativas e combinatórias da dança de Trisha Brown e de Merce Cunnigham.
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A silhueta reaparece, silenciosa, a esgrimir um bastão metálico, como um dom quixote de BD a arremeter contra fantasmáticos moinhos de vento. Sob a luz avermelhada distinguimos uma mulher ao piano (Joana Gama) a tocar abruptos acordes avulsos (composição de João Godinho) enquanto a cena ganha claridade; entre ciclos de alta voltagem e de apaziguamento, movimento e som convergem casualmente. O bailarino executa variações sobre curtas sequências, onde explora movimentos fluidos, suspensões, voltas, bruscas mudanças de direcção, ou ínfimos gestos nervosos, numa paleta expressiva que vai do burlesco ao garboso, do convulsivo ao virtuoso, condimentada com sorrisos, vocalizações ou atitudes de abandono, a convocar as estratégias cumulativas e combinatórias da dança de Trisha Brown e de Merce Cunnigham.
A precisão com que, num ápice, transita entre distintas tonalidades emotivas e técnicas de movimento, dá-nos conta do quanto as qualidades interpretativas de Luís Guerra (Lisboa, 1985) são a síntese de uma formação em dança clássica (no Conservatório de Lisboa) expandida ao polifacetado universo da dança contemporânea. Trajectória onde se destaca, entre outros, o cruzamento com a coreógrafa Tânia Carvalho (a partir de 2005) e o colectivo Bomba Suicida (2008-2014).
Há, em Trovoada, um certo cunho formalista com ligações ao outro território de expressão predilecto de Luís Guerra: o desenho a lápis de carvão. São linhas, formas, padrões e sombras semi-abstractas, através das quais Guerra ficcionou imagens para Laocoi, país imaginário da sua infância, dando curso ao fascínio de criança por mapas, planeamento urbano e cidades. A cultura, tradição e linguagem próprias desse país inventado contaminariam, mais tarde, peças como Laocoi (2008), Hurra! Arre! APRE! Irra! Ruh! Pum! (2010) ou Qqywqu"ddyll"o" (2011).
Os sucessivos ambientes sonoros e cortes de luz conferem à peça uma cadência modular e contornos de um recital intimista para um piano e um corpo. Mas alguma insistência em certas ideias ou a previsibilidade dos apontamentos que alimentam o sequenciar das secções, amornece a densidade da atmosfera introduzindo, por períodos, a impressão de um certo arrastamento, apesar dos apenas 45 minutos de duração da performance.
A caminho do final, porém, peça recupera fôlego: sob um foco latejante de luz carmesi, Guerra oferece-nos uma curiosa sequência de registos dissonantes: um estupendo alinhamento de brisés volés baléticos, inopinadas gestualidades nonchalant ou do que parece um barafustar com um hipotética entidade extraterrestre, é a súmula das potencialidades do intérprete e dos pontos fortes desta Trovoada a vermelho e negro.