Seguindo o rasto de Houellebecq, um escritor genial de pena envenenada

É o grande homem dos franceses e da sua literatura, comparado a Balzac, Zola ou Flaubert. É um choque a sua omnipresença há 15 anos — a densidade do seu pensamento, a força do seu estilo. Um choque, também, a polémica que desencadeia. Eis o mais recente: Submissão, que fala da França, do islão, de política, de vencedores e vencidos.

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Todos conhecemos pessoas doces, indolentes, transparentes ou que se fazem de simpáticas que, com o uso e o tempo, se revelam, sob o verniz, heróis, tiranos, loucos, sectários ou génios. Sofremos então um choque: como nos tínhamos enganado em relação à pessoa que temos agora à nossa frente e que está já a anos-luz daquela que olhávamos ainda há instantes.

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Todos conhecemos pessoas doces, indolentes, transparentes ou que se fazem de simpáticas que, com o uso e o tempo, se revelam, sob o verniz, heróis, tiranos, loucos, sectários ou génios. Sofremos então um choque: como nos tínhamos enganado em relação à pessoa que temos agora à nossa frente e que está já a anos-luz daquela que olhávamos ainda há instantes.

Michel Houellebecq é um choque permanente. Não é possível ignorá-lo. É o grande homem dos franceses e da sua literatura, comparado a Balzac, Zola ou Flaubert. É um choque a sua omnipresença há 15 anos — a densidade do seu pensamento, a força do seu estilo. Um choque, também, a polémica que desencadeia de cada vez que aparece, obrigando-nos a questionar-nos.

E eis o mais recente choque: Soumission, que fala da França, do islão, de política, de vencedores e vencidos, e que se dirige a uma França já esgotada por 20 anos de debates e de incompreensões sobre o islão, a política, os vencedores e os vencidos. O livro será editado em Portugal neste primeiro semestre pela Alfaguara, com o título Submissão.

Antes de Submissão, havia Houellebecq. Um físico estranho. Uma voz átona e hesitante. Um olhar de uma intensidade desconcertante, gestos suaves e desajeitados. E um passado atípico para quem pretende ter assento entre os grandes da literatura contemporânea.

Os seus primeiros anos são à imagem das personagens que privilegia: incertos, difusos, parecendo deslizar entre os obstáculos da vida. Tem uma data de nascimento oficial (1958) e uma falsa (1956). Foi a mãe que, pressentindo-lhe o génio, o envelheceu dois anos para o inscrever na escola, ou foi ele que, para rejuvenescer, a falsificou? Há controvérsia, logo mistério. Deverá o seu nome ao acaso de um passeio ao Monte Saint-Michel. A família parece disfuncional, não muito atenta a ele. A mãe publicará, de resto, um livro disparatado onde responde violentamente ao filho (que se inspirou nela para diversas personagens femininas).

Quantas estradas secundárias terá de percorrer antes de nascer verdadeiramente para o que será a sua vida: a escrita? A sua superioridade intelectual leva-o a ingressar num curso de preparação para as Grandes Écoles d’Ingénieur, onde se selecciona, explora, tria e forma a nata da nata da elite francesa. Entra numa célebre escola de Agronomia — tão longe do escritor. Afasta-se ainda um pouco mais ao trabalhar em informática, durante 13 anos, para diversas empresas e instituições. Ao longo desse tempo, armazena, sem dúvida, uma matéria em bruto inestimável aonde vai buscar mais tarde a sua panóplia de personagens incrivelmente reais, esculpidas no barro da fabulosa mediocridade do francês médio. E, sobretudo, vive, sobrevive, ganha a vida.

Claro que publicou, de vez em quando, revistas e poemas. Gosta de ler, ama as mulheres, fuma e adora beber. As grandes bebedeiras de então ainda não o marcaram. Os seus grandes olhos azuis ora espantados, ora fugidios, que de repente se fixam intensamente, iluminam um rosto juvenil com uns lábios finos de fino observador, emoldurado por cabelos que já vão rareando, bem penteados e de uma cor indecisa.

Não há boa literatura com bons sentimentos
É raro que se faça boa literatura com bons sentimentos. Tragédias, policiais, poesia, ensaio ou romance: todos os géneros carregam a sua massa de sofrimento, mal-estar, dramas a exorcizar. E Houellebecq é um mestre na arte de fazer zoom sobre o quotidiano de personagens perdidas e algo desinteressantes para, logo de seguida e num movimento inverso, oferecer um panorama particular do mundo e uma relação entre factos aparentemente insignificantes.

Em 1994 publica Extensão do Domínio da Luta. O romance é marcante, mas não ultrapassa suficientemente a norma nas suas tomadas de posição para o transformar numa estrela. Nele descobrimos, no entanto, os alicerces das obsessões que marcarão os romances seguintes, bem como o estilo único que contribuirá para tornar a sua escrita tão singular. Narra a existência obscura de um solteirão neurasténico. De uma banalidade atroz, a personagem não deixa de ter parecenças com Houellebecq: informático, fortemente obcecado pelo sexo, mergulhado numa vida solitária enquanto, à sua volta, se agita uma sociedade de consumo obscena que engendra um combate financeiro e sexual implacável entre classes e indivíduos.

O virtuosismo de Houellebecq é notável, nomeadamente nas suas litanias descritivas de factos insignificantes, do ordinário mais sórdido ou de coisas aparentemente enfadonhas. Instruções de electrodomésticos, sociologia de uma empresa, descrição pelo rótulo de um prato ultracongelado, funcionamento do Minitel, relatório detalhado dos ruídos produzidos por uma velha caldeira. Irá mesmo descrever com extremo pormenor uma espécie de mosca em O Mapa e o Território, e aproveitará para agradecer à Wikipédia por tê-lo ajudado nas suas diligências! Houellebecq sabe tornar fascinante um aspirador.

Mas é em 1998, com As Partículas Elementares, que as portas da fortaleza dos media e da celebridade tóxica vão estilhaçar-se. Entra no circo, ele, o imodesto, tão absolutamente seguro da sua superioridade. Bebe com volúpia o cálice da agitação e das primeiras controvérsias. E o falso tímido explode nos ecrãs.

As Partículas Elementares é uma narrativa prolífica e multiforme. Trata-se de um simples romance? De um ensaio? De um estudo biológico ou sociológico? De um manifesto político? Digamos que é uma narrativa quase clínica, isto é, sem projecção emocional do autor nos factos que relata da vida de dois meios-irmãos, um dos quais, Michel, possui muitos pontos em comum com Houellebecq. No livro desenvolvem-se de novo as suas obsessões breteastonellisianas: o sexo, necessariamente orgiástico, obsessivo, cru, um pouco perverso, no limiar da pedofilia; a mulher, necessariamente objecto, consolidado com o plástico da cirurgia, atraída pelo dinheiro dos machos e também pelo seu sexo, claro. O diálogo impossível entre as pulsões permanentes do macho e as aspirações da fêmea, causa de frustração sexual, inibições e inaptidões sociais.

Para além destes temas, o romancista desfia outras linhas narrativas: a doença, o suicídio, o divórcio, o abandono, a crise dos 40, a clonagem, para concluir com um epílogo que gela: a personagem de Michel, geneticista, vê o seu trabalho resultar, após a sua morte, em 2029, na criação de uma raça de sobre-humanos desumanizados, liberta das angústias com que se debatiam as personagens do livro. Os homens desaparecem da terra, dando lugar a super-homens estéreis e eternos, podendo assim consagrar-se, sem consequências, ao perpétuo prazer sexual.

Não há fenómenos sem polémicas e sem estilo
Em 1998, torna-se, portanto, um fenómeno. Ora, poderá alguém reivindicar o título de “fenómeno” sem polémicas? Em França, certamente que não. Escandalosamente pornográfico, lamentavelmente misógino, forçosamente reaccionário: está sob fogo, mas o falso simpático, o doce, o indolente distende-se como uma mola e transforma-se em demónio para escapar aos detractores. É astuto, é jogador. Borrifa-se nas críticas, multiplicando as teorias futuristas (modificar a espécie humana, recriar o matriarcado, readquirir sentido através da religião), desmultiplicando as suas obediências: um dia, diz-se comunista; no dia seguinte, amigo dos católicos tradicionalistas anti-aborto, apologista da sociedade do consumo ou, pelo contrário, em busca do misticismo laico.

O mundo da edição dava-o como grande vencedor do Prémio Goncourt, mas nada. A decepção será tão amarga quanto o homem é orgulhoso e ciente do seu valor.

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Em 2000, tendo enriquecido, expatria-se na Irlanda, terra apaziguante para todos os tipos de problemas de dinheiro. Ei-lo exilado fiscal, o grande escritor que, não satisfeito em pôr a França a ferro e fogo com a sua mania de a questionar e de a voltar a ensinar a ler, desertou, o traidor, para aí esconder a sua fortuna. Nova tempestade, novo assalto da cavalaria político-mediática. Desta vez, tentará aliviar as tensões, regressando ao país em 2012.

Mas voltemos atrás: ficámos no duche frio que se abate sobre Houellebecq quando falha o Goncourt em 1998. Seis anos depois, ei-lo de novo. A Possibilidade de uma Ilha é publicado em 2005. Os temas caros são novamente convocados, de forma espantosa. Enquanto seguimos a vida de Daniel1, comediante de sucesso no século XX, o romance intercala a história das vidas de Daniel2 e Daniel3 até Daniel25, clones que vivem vários séculos depois do primeiro Daniel. Este comediante cínico, mestre dos mecanismos do humor e do sucesso mediático, não deixa de lembrar um Dieudonné, controversa vedeta do humorismo que conjuga perigosamente a provocação anti-semita, o conflito israelo-palestiniano e a história colonial e africana de França.

Como sempre em Houellebecq, o desastre sentimental é um tema maior, bem como a inexorável queda na depressão dos seus heróis. Não se esquece o sexo, o incesto, o desejo pedófilo, as seitas e a espécie humana melhorada pela manipulação genética e pela clonagem. A Possibilidade de uma Ilha é o desejo de outro lugar, mal endémico da nossa sociedade contemporânea. Um outro lugar que Daniel1 não alcançará ou, pelo menos, não em vida, uma vez que se suicida no fim, dando assim vida aos seus clones, que herdam o relato escrito da vida de Daniel1 e a completam, um após outro, para ir melhorando a linhagem. O livro é um calhamaço: 500 páginas. Que deixa o leitor perturbado, tão denso e ambicioso é o seu objectivo. Este trabalho notável merecerá o Prémio Interallié. Gaita, ainda não é o Goncourt.

Como é que consegue manter os seus numerosos leitores fascinados de fio a pavio pela sua obra magistral? Porque o seu público vai bem além dos círculos intelectuais rodados no exercício da leitura de obras imponentes. O escritor é fracturante e exigente, mas popular. É lido por todo o lado. E se é lido por todo o lado e por toda a gente, e com uma tal avidez, é porque tem estilo.

Jean Birnbaum, jornalista no Le Monde e editor do suplemento literário do diário francês, admite ao Ípsilon: “É alguém que existe de forma muito forte, tem muito talento. Tem a capacidade de identificar aquilo que a sociedade precisa que lhe digam de mais abjecto, o discurso que a sociedade precisa que lhe façam.”

O homem e o estilo são reconhecíveis por todos e, além disso, assemelham-se. Clínicos, fluidos, neutros. Economia de palavras. Ausência de efeitos. Linguagem clara. Prosódia sem floreios. Claro que tem um prazer indissimulado quando se lança em explicações técnicas exageradas, em cursos de física especializados que até um engenheiro-cromo teria dificuldade em seguir. Evidentemente, rejubila quando, inesperadamente, se torna crítico literário e disseca um autor célebre com a desenvoltura erudita do especialista. Mas consegue dar uma espantosa unidade aos seus livros com gavetas que não param de se abrir. E cada vez se quer mais simples. No programa Boomerang da France Inter, diz, a 7 de Janeiro de 2015: “Não quero de maneira nenhuma que se veja como as coisas são escritas. Isso torna-se obsessivo. Tento minimizar os efeitos, enfim, não fazer efeitos, ser muito fluido, muito fácil de ler.”

O génio do escritor está também em ter sabido escolher temas que parecem improváveis, nocivos, fracturantes, com a ideia de federar, de ser acessível ou consensual. Fez, portanto, sucessos comerciais e críticos falhados.

O fenómeno é também o homem
É imodesto ao ponto da vaidade. É incontável o número de declarações em que se admira a si mesmo e elogia o seu talento. Representa, aliás, o seu próprio papel em 2014, no improvável telefilme L’enlèvement de Michel Houellebecq. É um fracasso, o que não o impede de declarar: “Continua a surpreender-me muito que me considerem um actor. Embora o resultado não seja mau.” Tanto que reproduz a experiência com a estreia, no mesmo ano, do improvável Near Death Experience, no qual é... o único actor. Narcisismo.

Houellebecq é também um físico que se parece com uma personagem de pesadelo saída de uma tela de Hieronymus Bosch, com uma criatura de BD americana, com o assassino em série e o imperador Palpatine da Guerra das Estrelas. Felizmente, possui uma qualidade maior: o humor e a autocrítica. Deixemo-lo falar de si próprio. Eis um extracto de O Mapa e o Território, onde coloca em cena uma miríade de personagens reais do mundo das artes, incluindo — e sobretudo — ele mesmo:

“Reconhecerá facilmente a casa, é o relvado mais desleixado das redondezas”, dissera-lhe Houellebecq. ‘E talvez de toda a Irlanda’, acrescentara.”

“Bateu pelo menos dois minutos à porta, sob chuva forte, antes de Houellebecq abrir. O autor d’As Partículas Elementares envergava um pijama com riscas cinzentas que o fazia parecer-se vagamente com um presidiário de uma telenovela; o cabelo estava despenteado e sujo, o rosto vermelho, quase afogueado, e cheirava um pouco mal. A incapacidade de fazer a higiene pessoal é um dos sinais mais seguros de um estado depressivo, recorda Jed.”

“Com efeito, restos de tostas e de fatias de mortadela juncavam os lençóis, manchados de vinho e queimados, aqui e ali, por cigarros.? “Voltei a recair... Voltei a recair completamente ao nível da charcutaria”, prossegue Houellebecq sombriamente. Realmente, a mesa estava repleta de embalagens de chouriço, de mortadela, de salame. Estende a Jed um saca-rolhas e, logo que a garrafa é aberta, engole um primeiro copo de um só trago, sem cheirar o bouquet do vinho, sem sequer se entregar a um simulacro de degustação. Jed tira uma dúzia de grandes planos, tentando variar os ângulos.”

Houellebecq, o homem, até então incompleto, acede à completude. Entra para o panteão, conquistando o seu graal, o seu Goncourt, em 2010, com O Mapa e o Território. O seu quinto romance. O Goncourt é atribuído no muito chique e mítico Restaurante Drouant, em Paris. Nesse dia, a agitação em torno do frágil Houellebecq é considerável. Ei-lo cercado pelas objectivas, sacudido como uma palha, um pouco esgazeado e perdido, mas exultante. Acaba de entrar na História.

Na vida, em torno de Houellebecq gravita a galáxia Houellebecq. Já não está tão solitário, o escritor goncourtizado: esquerdistas intelectuais de aparência igualmente desleixada e suja, mas também celebridades, escritores famosos e outras personagens mais controversas ou dificilmente classificáveis de que a França possui o segredo. Detenhamo-nos um instante num extraordinário jantar. A 14 de Novembro de 2010, dia de remodelação ministerial, o presidente Nicolas Sarkozy e a sua mulher, Carla Bruni, convidam, em honra de Houellebecq, algumas personalidades das artes e dos media. Por seu lado, Houellebecq convocou a editora-executiva da Playboy, que lhe inspirou uma personagem em A Possibilidade de Uma Ilha. Inapropriado. Convidou também o enigmático e muito direitista David Serra, que dirige uma revista on-line, Ring, e publica escritores como Laurent Obertone, autor de uma obra sobre a delinquência intitulada La France Orange Mécanique (o que lhe valeu ser classificado como de extrema-direita por certos editorialistas). A tendência na Ring é crítica em relação ao islão, pró-Bush e anti-sistema, com posições de direita, portanto. E Houellebecq afirma que “a Ring é o melhor site de informação”. Super-inapropriado... E porque não? O homem é inapropriado em todos os aspectos. As suas relações com personalidades ambíguas já não surpreendem muita gente.

Podem escrever-se coisas más com maus sentimentos
Dissemos que não se faz boa literatura com bons sentimentos. Mas, no momento em que é lançado Submissão, a ideia de que se podem escrever coisas más com maus sentimentos impõe-se. Quase ninguém ainda leu o livro que eclipsa todos os outros nesta rentrée (como frequentemente acontece com Houellebecq), mas o fragor surdo da polémica já se faz ouvir ao longe. Já um mês antes se levantavam as primeiras vozes a denunciar um livro que qualificam de râncido, nauseabundo, islamofóbico, assustador — em suma, perigoso e indigno de um grande escritor.

O primeiro problema é que Submissão vem colocar-se no cimo de uma pilha de livros que batem na mesma corda: a do declínio francês face ao perigo muçulmano. Há 15 anos que esta ideia regressa inabalavelmente ao primeiro plano. O último escândalo até à data é o livro do editorialista Eric Zemmour, muito famoso em França, intervindo na rádio, na TV, na imprensa e nos seus livros. Embora se considere eternamente censurado pelos bem-pensantes do “sistema”, vemo-lo por todo o lado, de manhã à noite. Zemmour publicou Le Suicide Français. Vendas recorde para este livro que traça um retrato arrasador da França e aponta sem hesitar os responsáveis pelo declínio: os imigrantes, os homossexuais, as mulheres (ou, pelo menos, as feministas) e, depois, a esquerda, e também, um pouco, a direita, todos os políticos e, claro, os jornalistas e os censores — em suma, tudo o que não é branco, sexagenário, católico e heterossexual.

Temos, então, um Houellebecq que cavalga esta onda salobra da islamização da França com o cenário da chegada ao poder de um Presidente da República muçulmano, chamado Mohammed Ben Abbas, e a poligamia, e a exclusão das mulheres do mundo do trabalho, e o estabelecimento de uma sharia light — tudo isto sob o olhar desolado de franceses ultrapassados e apáticos. E tudo isto é muito. Cá estamos, é o choque de Submissão. Coloca-se então a questão da responsabilidade das elites e dos intelectuais. Porque, se nos apraz designar como causa dos nossos males responsáveis saídos do povo (imigrantes, professores, minorias), porque não interrogarmo-nos sobre a responsabilidade dos responsáveis pelo país, os líderes de opinião, as elites: os políticos, os media e os intelectuais.

A escolha, por Houellebecq, deste tema candente que esgota os franceses há 15 anos pode ser considerada unicamente artística? Houellebecq é demasiado sensível ao ar do tempo e ao jogo mediático para ignorar a onda de indignação e a ressaca de aprovação que se vão seguir. Teve de prever e desejar o (bad) buzz. Aliás, no dia do lançamento do livro — 7 de Janeiro —, aos microfones da Radio France Inter, o crítico Augustin Trapenard leu uma passagem de Submissão em que Houellebecq fala do gosto do escritor Huysmans pela discórdia. O jornalista lê o que Houellebecq escreveu: “Huysmans tem, antes do mais, necessidade de causar escândalo, de chocar o burguês, naquilo que se parece bastante com um plano de carreira.”

“– Quer dizer que isso se aplica a mim?”, pergunta Michel Houellebecq.

“– Estou a colocar-lhe a questão. Você também choca o burguês”, responde Trapenard.

“– OK, aparentemente, sim.”

“– Trata-se de um plano de carreira?”

“- Hum... enfim, sim”, admite Houellebecq.

“– Ah, uma cacha, o plano de carreira de Michel Houellebecq: chocar o burguês.

“- Não mais do que Huysmans, mas também não menos.”

É claro que ninguém sonha associar Houellebecq aos últimos e trágicos acontecimentos em França. Cronologicamente, é impossível. Embora tenha pronunciado estas frases cheias de nuances em 2001, na revista Lire: “A religião mais estúpida é, apesar de tudo, o islão. Quando lemos o Corão, ficamos abismados. abismados! (...). O islão é uma religião perigosa, e isto desde que apareceu. Felizmente, está condenado. Para já, porque Deus não existe e, mesmo que sejamos estúpidos, acabamos por perceber isso. A longo prazo, a verdade triunfa. Depois, o islão está minado internamente pelo capitalismo. O que mais podemos desejar é que triunfe rapidamente. O materialismo é um mal menor. Os seus valores são desprezíveis mas, apesar de tudo, menos destrutivos, menos cruéis do que os do islão.”

É nessa altura que o advogado parisiense Emmanuel Pierrat encontra Houellebecq: “Michel Houellebecq tinha recusado o advogado da editora Flammarion, que queria que se fosse pedir desculpa publicamente, se possível, diante da Grande Mesquita de Paris. Ora, Houellebecq queria defender a sua liberdade de expressão e explicar-se. Procurou-me e falámos todos os dias durante esse Verão. Veja como ele é: não pode responder a uma pergunta sem fazer uma longa pausa e inalar profundamente o fumo de um cigarro. No tribunal, isso era impensável. Portanto, desabituei-o à força de adesivos e treinei-o para responder com voz forte e de forma clara e rápida. Foi uma loucura. Tínhamos contra nós o islão francês, a Liga Islâmica Mundial (um órgão da Arábia Saudita), a Federação Nacional dos Muçulmanos em França, as grandes mesquitas de Paris e Lyon, e a Liga dos Direitos do Homem, que o acusava de racismo. Durante um ano elaborámos uma lista de intelectuais que chamámos a apoiá-lo. Foi a debandada geral. Acabámos com cinco testemunhas, entre as quais o escritor Philippe Sollers e Fernando Arrabal, que fora perseguido sob a ditadura de Franco por blasfemar contra Cristo. Depois, era a indignação de jornalistas do mundo inteiro. Tínhamos o mundo intelectual contra nós ou à distância. Tinham acontecido os atentados do 11 de Setembro (as vendas do livro Plataforma caíram a pique). E depois, na altura do julgamento, houve outro atentado em Bali, contra uma discoteca. Ora esse era exactamente o cenário que Houellebecq descrevia em Plataforma. Pela minha parte, decidi invocar o ‘direito à blasfémia’. A audiência durou nove horas, a tensão era muita. Mas senti que a sala, a pouco e pouco, reflectia. No fim do dia, saímos do tribunal: tínhamos dado a volta ao assunto, Houellebecq tinha razão. Como por magia, os apoios que nunca tínhamos conseguido desataram a telefonar: ‘Já agora, lamento não ter estado presente, mas se precisares...’”

Jean Birnbaum, o chefe de redacção do Le Monde des Livres, mostrou-se severo no site do Monde.fr sobre Submissão. “Um livro que suscita a náusea, a revolta.” Confirma-nos ao telefone o seu ponto de vista, simultaneamente intransigente em relação ao aspecto puramente estilístico, mas igualmente em relação ao conteúdo: “Do ponto de vista literário, este livro não é um acontecimento. Somos muitos a dizê-lo: imita os seus imitadores, é bastante preguiçoso na sua construção, tem facilidades. Sente-se que ele pega nos mesmos truques, em temas que antes tratava com virtuosismo mas desta vez com um tom ‘já conhecem esta cantiga’.”

E sobre a noção de responsabilidade dos autores: devemos considerá-los puros escritores ou eles são outra coisa? “Não se pode exigir a um escritor que seja moderado ou prudente”, prossegue. “Mas como dizia Sartre: ‘As palavras são armas carregadas’. É preciso ter mesmo curta memória para não se ser reenviado a períodos muito obscuros da nossa História quando se lê em Submissão sobre a cobardia, sobre a pertença de todas as personagens a um grupo religioso por puro oportunismo, como isco para o dinheiro e para o sexo. Nunca por espiritualidade. Não há ninguém no livro que se converta ao islão por convicção. É incrível, Michel Houellebecq joga tudo no facto de que haverá um público amnésico, bastante desinvolto ideologicamente para se sair com o argumento estúpido ‘oh, afinal de contas não é mais do que um romance’. Houellebecq sabe muito bem quais as consequências políticas da linguagem e da literatura. Imagine-se o que um jovem da cultura muçulmana sente perante isto, é de chorar.”

Consequências do ruído mediático anti-árabe: à força de repetir, contribui para instalar uma atmosfera que permite validar uma desconfiança generalizada em relação aos muçulmanos: -> estigmatização -> discriminação -> exclusão -> retracção comunitária da população visada -> risco de recuperação por extremistas islamistas-> risco de radicalização dos indivíduos mais frágeis -> violência -> nova desconfiança generalizada, etc.

No dia em que foi lançado Submissão, 7 de Janeiro de 2015, a revista satírica Charlie Hebdo saiu também, com uma caricatura de Houellebecq na capa. E estas palavras sobre a figura do escritor: “As previsões do mago Houellebecq: em 2015 vou ficar sem dentes... Em 2022 observarei o Ramadão!”

Muito bad timing, o dia do lançamento de Submissão, que foi o dia da capa da Charlie Hebdo satirizando Houellebecq, e também o do ataque terrorista contra a revista que conduziria ao balanço dramático de 17 mortos. É difícil não nos sentirmos afectados por esta funesta carambola de acontecimentos, entre os quais sentimos existir uma ligação difusa.

É então que Houellebecq desaparece da confusão. Fazem-no sair de Paris, para sua segurança, e também, dizem-nos, porque precisava de descansar antes de retomar a promoção do livro. Outros fazem o mesmo, prudentemente, depois de terem defendido veementemente a tese de Houellebecq. Alain Finkielkraut, por exemplo, filósofo famoso, conhecido pelas suas posições de direita e anti-imigracionistas: o seu assessor de imprensa explica ao Ípsilon que doravante não dará mais entrevistas sobre Houellebecq, tendo em conta o que acaba de acontecer. Três dias antes, a 4 de Janeiro, ainda dizia no programa de Élisabeth Levy na rádio RCJ: “Michel Houellebecq é o nosso grande romancista do possível. Entre a clonagem generalizada e o futuro turístico da França, compraz-se no romance de antecipação. Soumission não foge à regra mas, desta vez, Houellebecq toca na ferida, e os progressistas de quem era a coqueluche, apesar do seu pessimismo, soltam ais (...). A grande preocupação daqueles que se apresentam como rebeldes, refractários, resistentes, é que nada obste às reivindicações do islão e à sua progressão, e essa é, a meu ver, a mistificação da esquerda actual, a sua suprema mentira: quando diz ‘mudança” quer dizer ‘submissão’.”

O seu amigo Emmanuel Carrère, também ele um escritor maior, Prémio Renaudot por Le Royaume, declara à propósito de Submissão: “Um livro profético, na linha de 1984 e de Admirável Mundo Novo, mas mais poderoso.”

Fouad Zeraoui está numa posição privilegiada para avaliar o impacto destes discursos na juventude muçulmana de França. Fundador da associação Kelma (“palavra”, em árabe), de uma revista gay e étnica, e promotor das noites Black Blanc Beur que organiza em Paris, tem como alvo uma população apanhada entre dois fogos: os muçulmanos homossexuais. Confrontados com o racismo fora de casa, são vítimas de homofobia dentro dela. Eis uma população de origem imigrante que poderia, dada a sua homossexualidade, sentir-se próxima de publicações antimuçulmanas. “Os muçulmanos sentem que são atacados sem terem a possibilidade de ripostar”, diz Zeraoui. “Mesmo que pudessem fazê-lo, torna-se muito difícil, na medida em que defrontam pugilistas profissionais que usam de má-fé e, por vezes, de verdades que carecem de respostas precisas e complexas. É difícil criticarmos a nossa comunidade numa altura em que a palavra de ordem é a união.” Para Zeraoui, não é possível deixar de se alinhar pela imagem viril do irmão ou do pai quando esta é atacada pelo mundo exterior. “A exacerbação, por parte dos muçulmanos, da virilidade (de que os radicais são a encarnação: o super-homem, o combatente, o homem que não sofre de nenhuma tara ocidental), é uma resposta a esse ataque à virilidade. E os gays saídos dessa comunidade muçulmana não têm remédio se não associar-se a essa palavra de ordem implícita: não haverá degenerados a manchar a nossa unidade, a nossa postura, o nosso orgulho singular. Há que ser masculino.” É a lei do silêncio, não se participa no debate.

Para Frédéric Pichon, licenciado em Árabe, professor de Geopolítica e consultor de comunicação social que contacta via Internet com jihadistas, se é evidente que alguns líderes de opinião instrumentalizam este filão antimuçulmano, não é isso que leva à radicalização. De resto, considera o romance de Houellebecq irrealista. Não seria possível eleger um presidente muçulmano “pela simples razão de que não existe uma comunidade muçulmana em França”: “Há muitas correntes no islão: a francesa, a magrebina, a turca, etc. Não conseguiriam chegar a um consenso sobre um presidente.” Em contrapartida, avança uma explicação curiosa. Há muito que a nossa cultura ocidental deixou de oferecer um modelo espiritual interessante. “Ela esqueceu o sagrado, já não é capaz de transmitir valores. O que uma parte da juventude muçulmana vai procurar noutro lado remete para o nosso vazio.” À força de ver vídeos de jihadistas, distinguiu três noções importantes, três elementos que, involuntariamente, são demonstrados pelos jovens que se filmam, por vezes, antes de abraçar a violência: “1) A regeneração: a nossa radicalização vai fazer-nos mudar de vida. Metro, trabalho, dormir, metro, trabalho: isso já eu rejeitava em França. Acabou-se o haxe e os desacatos, encontrei um sentido para a minha vida. 2) A emoção: os indivíduos choram de emoção antes de passar ao acto, manifestam o seu amor pelos ‘irmãos’ que encontraram. 3) A ascese: o aspecto marcial, sacrificial, são a sua nova vida.” De um lado, portanto, os líderes de opinião que estigmatizam; do outro, um vazio espiritual que nada vem preencher... até que se têm maus encontros.

O último problema é que Houellebecq finge não compreender bem o que querem dele. Ser responsável? Responsável por quê? Por nada, uma vez que, quando questionado, esquiva-se, faz-se de ingénuo. Na véspera do lançamento do livro, Houellebecq está no telejornal da noite da France 2: o pivô, David Pujadas, interroga-o sobre o quadro geral apresentado no livro, que alimenta o medo, e sobre a responsabilidade subjacente do autor no seu alastramento. Por três vezes Pujadas regressa à pergunta, por três vezes Houellebecq responde ao lado. O jornalista conclui: “Parece minimizar a questão.”

Então mostra reacções de leitores, entre as quais a de Malek Chebel, filósofo argelino, tradutor do Corão, antropólogo das religiões. E cita-o: “Quando se é um grande escritor, têm-se mais responsabilidades. Sente isso?” Resposta de Houellebecq: “Não me lembro de nenhum caso em que um romance tenha alterado o curso da História.” Seguem-se várias não-respostas, como “Nem uma coisa nem outra”, “Não sei, já não sei mesmo”, “Então não aprovo nem condeno [a personagem principal, que se converte ao islão por facilitismo]”.

Esta questão da responsabilidade dos intelectuais e da comunicação social dá azo a viva discussão no programa C à vous da France 5. Edwy Plenel, politicamente de esquerda, director do site Médiapart e ex-director do Le Monde, atira: “Nós, os media, alguns media, fazemos desta ficção o acontecimento do dia, fazemos de um escritor, que tem o direito de pensar o que quiser, o acontecimento político da rentrée. Após três meses de zemmouradas (...), consideramos normal, nós, jornalistas, fazer eco disto, promover isto (...). A que é que damos relevo? A que o islão é um problema, que os muçulmanos são um problema. Há 15 anos que somos um país que promove a discriminação em bloco de uma população devido à sua origem, ao seu credo, à sua cultura quando falamos dos muçulmanos, do islão... Dá-se conta da violência que isto exerce sobre as pessoas em causa? Michel Houellebecq é islamofóbico, reivindica isso mesmo há 15 anos, basta ler as suas entrevistas, e vocês fornecem-lhe um púlpito.”

Contactámos David Serra, director da revista Ring, que se mostra, pelo contrário, bastante entusiasta: “Para encontrar o espírito de uma época não mergulhamos nas notícias dos jornais, procuramos o escritor que ‘agarrou o século pela garganta’. Um autor autêntico atira sobre a multidão, rasga o espaço público, e eu fico contente por reencontrar um pouco o Michel Houellebecq de Plataforma, que me dá, desta vez, lições de política, de teologia, de moral e de economia (...). Não conheço as forças actualmente em jogo na cabeça de Michel Houellebecq, mas sinto que ainda é, na sua solidão genuína, uma força em acção num turbilhão de escritores com plásticas, com rostos idênticos (...). A identidade é o tema central, aquele que está em todas as cabeças, incluindo aquelas que parecem desprezá-lo. O seu público habitual desejava esse tema, mas já não o esperava. Michel Houellebecq parecia domesticado depois do Goncourt. Aparecia na comunicação social do entretenimento e já não parecia suscitar mais do que uma estranha unanimidade. Finalmente, mostrou que faz o que quer e que continua a ser, em última instância, o único senhor de si mesmo.”

Os acontecimentos actuais replicam os de 2001. Um livro polémico, declarações islamofóbicas então, um livro sensível hoje, e a coincidência de atentados hediondos. Catorze anos depois, o advogado Emmanuel Pierrat pensa como pensava e não hesita em afirmar: “Entre aqueles que desfilaram no domingo, em Paris, com a sua boa consciência, há quem tenha sido dos primeiros a dizer que a Charlie Hebdo estava a pedi-las e dos primeiros a atiçar o fogo nos subúrbios. O escritor não tem de estar preocupado com uma parte da população. Se assim for, entra-se numa lógica que vai contra os nossos princípios. Houellebecq é um escritor, não um panfletário ou um jornalista como Zemmour. A literatura é um território sagrado, temos o direito de forçar a nota. Temos direito ao mau gosto e à blasfémia. Se os escritores deixaram de ter direito a isso, então acabe-se já com a literatura.”

François Samuelson, agente e amigo de longa data de Houellebecq, toma também a defesa do escritor. Leu Submissão há oito meses, mas há uma semana que é solicitado por todos os órgãos de comunicação. Tem tempo para nos responder: “Constato a irresponsabilidade daqueles que censuram uma alegada islamofobia, que são os mesmos que denunciavam a islamofobia e o mau gosto das caricaturas da Charlie Hebdo. Faz-se como o pirómano que, depois de atear um incêndio, chama os bombeiros! O escritor escreve um livro, trata-se de uma fábula política, como Voltaire poderia ter escrito. Infelizmente, por um terrível acaso, a realidade foi ao encontro da ficção. É como se disséssemos a uma rapariga violada que foi bem feito porque se veste de forma provocante. Peço desculpa, estou um pouco exaltado, mas isto deixa-me louco.”

Samuelson acrescenta, por fim, que “está tudo bem”, Michel Houellebecq regressou a Paris. Não vamos jogar ao Rapto de Michel Houellebecq parte 2! “Está sobretudo consternado com a morte do seu amigo Bernard Maris [jornalista e economista que escreveu Michel Houellebecq économiste, retomando as análises económicas do autor que considerava pertinentes]. Foi isso que o atingiu. Está-se nas tintas para a matilha!”

Houellebecq vai sair-se bem. Sai-se sempre bem. Não será um Dorian Gray do avesso, trazendo no rosto os sulcos tortuosos da decadência de um pensamento ultra-sedutor que se corrompeu na busca de mais, de melhor, de sempre ainda mais forte. Acrobata de equilíbrio insolente mesmo quando o vento sopra, encontrará a forma de aterrar de pé. Afinal de contas, trata-se do grande homem das letras francesas. A sua produção romanesca cifra-se em seis livros. Seis livros apenas, uma obra imensa. Tivemos Houellebecq, temos agora Submissão, aguardamos a continuação.