É possível parar o pensamento?

O romance inacabado de David Foster Wallace — uma trágica e hilariante dissertação sobre o tédio e a frustração.

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Quando morreu, David Foster Wallace deixou aparentemente completos 12 capítulos, 250 páginas, deste romance que o seu editor, Michael Pietsch, transformou numa “neurologia do fracasso”

O romance póstumo de David Foster Wallace, o escritor que se propôs reinventar uma fórmula de fazer literatura e foi classificado de génio depois de publicar A Piada Infinita (Quetzal 2012), sai em Portugal ao mesmo tempo que nos Estados Unidos se publica David Foster Wallace The Reader (Little, Brown and Company), guia de leitura para quem quiser iniciar-se no autor que não suportou viver no turbilhão da sua cabeça. É uma selecção de alguns dos seus textos mais significativos, um best-of que varre a diversidade do seu registo literário — ensaio, conto, romance... — e que os mais cínicos apontam como outro produto da indústria Wallace, aquela que se alimenta do suicídio do escritor, em Setembro de 2008, tinha ele 46 anos, e do culto que o elevou ao estatuto de ícone da América, a marca de uma geração que procurava alternativas nas artes.

O Rei Pálido, o livro que deixou incompleto e em que trabalhava havia dez anos, está incluído nesse volume de mil páginas que tenta responder à pergunta “por onde começar?”. É uma das grandes hesitações. Há caminhos melhores para este seguidor de Thomas Pynchon, que partiu do modernismo para inventar algo sem nome, experimental às vezes, outras clássico, no modo como narra as pequenas histórias que compõem a sua intrincada teia literária? Quem já leu Wallace sabe da dificuldade de penetrar naquele universo que não deixa um nervo ileso; da dificuldade de aguentar a mágoa, de não sucumbir ao delírio, de aceitar dar um passo em direcção ao inferno, sabendo que dificilmente se sairá igual. Isso, essa capacidade de permanecer intocado quando se vai em frente no aventuroso convite de o seguir no seu tormento e na sua vertigem inventiva, também não era o que Wallace queria. Ele fere. Mas não é gratuito. Estava ferido e era nesse estado que escrevia. Sobretudo nos romances. Que sedução pode haver nisto? A tal garantia de ser tocado.

Foi assim em A Piada Infinita, original de 1996: um livro de mais de mil páginas, centrado na figura de Harold Incandenza, 18 anos, interno numa academia de ténis, que serviu ao escritor para satirizar o permanente convite à alienação pela indústria do entretenimento na América de finais do século XX. A suprema felicidade estava na suprema capacidade de diversão. Daí nasceu uma enciclopédia de sentimentos, emoções à flor da pele, obsessões, um modo inclemente e letal de contar a depressão, a tristeza que vem da frustração de se ser, e também de não se ser, um alienado. O Rei Pálido, de que Foster Wallace deixou aparentemente completos 12 capítulos, 250 páginas, continua o seu exercício de perseguir e dar maior corpo ao imenso projecto de criar uma nova forma de narrativa humana, só que com uma herança pesada: com A Piada Infinita tinha sido “genial”. E agora? Como não desmerecer a genialidade que perseguia e atormentava em doses iguais? É só uma das especulações acerca de David Foster Wallace que ajudam a alimentar o mito.

Outra é este seu romance póstumo. A versão que se conhece não seria a que Wallace iria dar a ler se algum dia a chegasse a publicá-la. Sabia-se da sua obsessão em emendar, da busca da perfeição, mas tudo o que se acrescentar sobre isto será, mais uma vez, especulativo. O Rei Pálido é o trabalho de Foster Wallace mais o trabalho do seu editor, Michael Pietsch, sobre o imenso material que foi encontrado depois da sua morte no escritório da casa onde vivia com a mulher, Karen Green, em Claremont, na Califórnia. Eram “discos rígidos, pastas de ficheiros, dossiers com argolas, blocos de notas de espiral e disquetes”, conta Pietsch no posfácio, “capítulos imprimidos, maços de papéis escritos à mão, notas e muito mais”. “Apanhei um avião para a Califórnia”, continua, “e, passados dois dias, regressei a casa com uma mochila verde e dois sacos da Trader Joe’s a abarrotar de manuscritos. Uma caixa cheia de livros que o David tinha utilizado para o trabalho de investigação seguiu pelo correio”.

A descrição serve para perceber o trabalho de composição que deu origem a este O Rei PálidoUm Romance Inacabado, que em 2011, ano em que seria finalmente publicado, foi um dos três finalistas do Pulitzer para ficção (não houve vencedor). Mas O Rei Pálido é mais do que isso. É um compêndio de escrita sobre Foster Wallace. As notas que deixou e que ajudaram o editor a completar o puzzle sem fim, o labirinto de possibilidades, dando forma a essa espécie de “neurologia do fracasso”, expressão retirada a uma das muitas personagens que o autor criou, são também um modo de o leitor perceber a oficina obsessiva e perfeccionista de Wallace.

Depois da diversão extremada de A Piada Infinita, estamos agora no terreno do tédio. Na Direcção Regional de Finanças de AT de Peoria, Illinois, em 1985, uma série de personagens vive encerrada num quotidiano de grande aborrecimento, um lugar onde é possível estar-se morto quatro dias sem que ninguém estranhe a falta de movimentos desse corpo que sempre foi quieto e reservado, um lugar onde um ser humano é comparado a “um peixe a debater-se na rede das próprias obrigações”, num campo absurdo entre o riso e a lágrima. Do que de mais íntimo se passa na consciência de alguém até àquela que é aqui descrita como mais burocrática das existências, a de um contabilista, salta-se sem licença, sem vírgulas. E salta-se também para outras personagens, que ajudam na vertigem. É aí que Wallace quer estar, na génese do pensamento e da emoção, quando se inscreve num curso de contabilidade para saber como articular essas fórmulas “secas” com evocações do que de mais poético e transcendente se pode passar na mente. Sem respeito pela cronologia, num tempo pessoal em confronto com a precisão do relógio que impõe o aborrecimento e leva outro estado de alienação, a do robô, do executante letárgico como o Bartleby de Herman Melville, a que vai sendo comparado.

Mais uma vez, Wallace parte de um universo muito fechado para o mais abrangente de todos os mundos, onde tudo lhe é permitido. Listas, catálogos, fórmulas matemáticas e também a paisagem territorial e humana, o erotismo e o riso, a demência e o respeitinho que é muito bonito, tal como ensinam as regras que Wallace desmonta. Desmontou-as até onde foi capaz, no que descrevia como o turbilhão em que estava metido — assim dele falava, nas poucas vezes em que dele falava, ao seu editor.

O Rei Pálido será sempre inacabado e incapaz de responder até onde poderia ir Foster Wallace se não tivesse morrido aos 46 anos. Mas quem o lê reconhece nele todos os traços dessa tarefa que foi a sua: viver à margem sem ser por escolha e fazer dessa incapacidade de ser feliz uma obra sobre os intrigantes limites de estar vivo, desafiando as convenções da linguagem, apoiando-se na investigação de campo, interrogando-se sobre o trabalho de um escritor, no seu inferno pessoal. Revelar um pouco de tudo isso é o grande mérito deste livro, além, claro, dos muitos momentos vibrantes.



 

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O romance póstumo de David Foster Wallace, o escritor que se propôs reinventar uma fórmula de fazer literatura e foi classificado de génio depois de publicar A Piada Infinita (Quetzal 2012), sai em Portugal ao mesmo tempo que nos Estados Unidos se publica David Foster Wallace The Reader (Little, Brown and Company), guia de leitura para quem quiser iniciar-se no autor que não suportou viver no turbilhão da sua cabeça. É uma selecção de alguns dos seus textos mais significativos, um best-of que varre a diversidade do seu registo literário — ensaio, conto, romance... — e que os mais cínicos apontam como outro produto da indústria Wallace, aquela que se alimenta do suicídio do escritor, em Setembro de 2008, tinha ele 46 anos, e do culto que o elevou ao estatuto de ícone da América, a marca de uma geração que procurava alternativas nas artes.

O Rei Pálido, o livro que deixou incompleto e em que trabalhava havia dez anos, está incluído nesse volume de mil páginas que tenta responder à pergunta “por onde começar?”. É uma das grandes hesitações. Há caminhos melhores para este seguidor de Thomas Pynchon, que partiu do modernismo para inventar algo sem nome, experimental às vezes, outras clássico, no modo como narra as pequenas histórias que compõem a sua intrincada teia literária? Quem já leu Wallace sabe da dificuldade de penetrar naquele universo que não deixa um nervo ileso; da dificuldade de aguentar a mágoa, de não sucumbir ao delírio, de aceitar dar um passo em direcção ao inferno, sabendo que dificilmente se sairá igual. Isso, essa capacidade de permanecer intocado quando se vai em frente no aventuroso convite de o seguir no seu tormento e na sua vertigem inventiva, também não era o que Wallace queria. Ele fere. Mas não é gratuito. Estava ferido e era nesse estado que escrevia. Sobretudo nos romances. Que sedução pode haver nisto? A tal garantia de ser tocado.

Foi assim em A Piada Infinita, original de 1996: um livro de mais de mil páginas, centrado na figura de Harold Incandenza, 18 anos, interno numa academia de ténis, que serviu ao escritor para satirizar o permanente convite à alienação pela indústria do entretenimento na América de finais do século XX. A suprema felicidade estava na suprema capacidade de diversão. Daí nasceu uma enciclopédia de sentimentos, emoções à flor da pele, obsessões, um modo inclemente e letal de contar a depressão, a tristeza que vem da frustração de se ser, e também de não se ser, um alienado. O Rei Pálido, de que Foster Wallace deixou aparentemente completos 12 capítulos, 250 páginas, continua o seu exercício de perseguir e dar maior corpo ao imenso projecto de criar uma nova forma de narrativa humana, só que com uma herança pesada: com A Piada Infinita tinha sido “genial”. E agora? Como não desmerecer a genialidade que perseguia e atormentava em doses iguais? É só uma das especulações acerca de David Foster Wallace que ajudam a alimentar o mito.

Outra é este seu romance póstumo. A versão que se conhece não seria a que Wallace iria dar a ler se algum dia a chegasse a publicá-la. Sabia-se da sua obsessão em emendar, da busca da perfeição, mas tudo o que se acrescentar sobre isto será, mais uma vez, especulativo. O Rei Pálido é o trabalho de Foster Wallace mais o trabalho do seu editor, Michael Pietsch, sobre o imenso material que foi encontrado depois da sua morte no escritório da casa onde vivia com a mulher, Karen Green, em Claremont, na Califórnia. Eram “discos rígidos, pastas de ficheiros, dossiers com argolas, blocos de notas de espiral e disquetes”, conta Pietsch no posfácio, “capítulos imprimidos, maços de papéis escritos à mão, notas e muito mais”. “Apanhei um avião para a Califórnia”, continua, “e, passados dois dias, regressei a casa com uma mochila verde e dois sacos da Trader Joe’s a abarrotar de manuscritos. Uma caixa cheia de livros que o David tinha utilizado para o trabalho de investigação seguiu pelo correio”.

A descrição serve para perceber o trabalho de composição que deu origem a este O Rei PálidoUm Romance Inacabado, que em 2011, ano em que seria finalmente publicado, foi um dos três finalistas do Pulitzer para ficção (não houve vencedor). Mas O Rei Pálido é mais do que isso. É um compêndio de escrita sobre Foster Wallace. As notas que deixou e que ajudaram o editor a completar o puzzle sem fim, o labirinto de possibilidades, dando forma a essa espécie de “neurologia do fracasso”, expressão retirada a uma das muitas personagens que o autor criou, são também um modo de o leitor perceber a oficina obsessiva e perfeccionista de Wallace.

Depois da diversão extremada de A Piada Infinita, estamos agora no terreno do tédio. Na Direcção Regional de Finanças de AT de Peoria, Illinois, em 1985, uma série de personagens vive encerrada num quotidiano de grande aborrecimento, um lugar onde é possível estar-se morto quatro dias sem que ninguém estranhe a falta de movimentos desse corpo que sempre foi quieto e reservado, um lugar onde um ser humano é comparado a “um peixe a debater-se na rede das próprias obrigações”, num campo absurdo entre o riso e a lágrima. Do que de mais íntimo se passa na consciência de alguém até àquela que é aqui descrita como mais burocrática das existências, a de um contabilista, salta-se sem licença, sem vírgulas. E salta-se também para outras personagens, que ajudam na vertigem. É aí que Wallace quer estar, na génese do pensamento e da emoção, quando se inscreve num curso de contabilidade para saber como articular essas fórmulas “secas” com evocações do que de mais poético e transcendente se pode passar na mente. Sem respeito pela cronologia, num tempo pessoal em confronto com a precisão do relógio que impõe o aborrecimento e leva outro estado de alienação, a do robô, do executante letárgico como o Bartleby de Herman Melville, a que vai sendo comparado.

Mais uma vez, Wallace parte de um universo muito fechado para o mais abrangente de todos os mundos, onde tudo lhe é permitido. Listas, catálogos, fórmulas matemáticas e também a paisagem territorial e humana, o erotismo e o riso, a demência e o respeitinho que é muito bonito, tal como ensinam as regras que Wallace desmonta. Desmontou-as até onde foi capaz, no que descrevia como o turbilhão em que estava metido — assim dele falava, nas poucas vezes em que dele falava, ao seu editor.

O Rei Pálido será sempre inacabado e incapaz de responder até onde poderia ir Foster Wallace se não tivesse morrido aos 46 anos. Mas quem o lê reconhece nele todos os traços dessa tarefa que foi a sua: viver à margem sem ser por escolha e fazer dessa incapacidade de ser feliz uma obra sobre os intrigantes limites de estar vivo, desafiando as convenções da linguagem, apoiando-se na investigação de campo, interrogando-se sobre o trabalho de um escritor, no seu inferno pessoal. Revelar um pouco de tudo isso é o grande mérito deste livro, além, claro, dos muitos momentos vibrantes.