A cólera de Deus
Um combate com os enigmas da fé, cheio do som e da fúria do “gótico sulista”
Em 1964, quatro anos antes de morrer vítima de lúpus, Flannery O’Connor publicou O Céu É dos Violentos, o seu segundo e último romance, uma história apoteoticamente sombria sobre a morte e a redenção da alma. O tom arrebatador com que esta sulista se lançou na escrita serviu o propósito, bem delineado desde a infância, de expor e de articular, em múltiplos aspectos, duas das questões essenciais que preencheram a sua existência: os abismos da crença religiosa e a relação conturbada com o espaço geográfico em que nasceu e viveu. No vórtice de O Céu É dos Violentos, a escritora faz convergir toda a sua filosofia, alimentada e desenvolvida, sobretudo, pelo estudo de S. Tomás de Aquino e do teólogo Pierre Teilhard de Chardin, já visível no seu juvenil e profundamente espiritual Diário de Preces (Relógio D’Água), escrito entre 1946 e 1947, “descoberto” e publicado em 2013. De Teilhard de Chardin, Flannery retirou a crença de que tudo converge para Deus, algures num ponto ofuscante onde ela, a autora, coloca as suas personagens, dilaceradas entre a crença feroz e a dúvida perene.
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Em 1964, quatro anos antes de morrer vítima de lúpus, Flannery O’Connor publicou O Céu É dos Violentos, o seu segundo e último romance, uma história apoteoticamente sombria sobre a morte e a redenção da alma. O tom arrebatador com que esta sulista se lançou na escrita serviu o propósito, bem delineado desde a infância, de expor e de articular, em múltiplos aspectos, duas das questões essenciais que preencheram a sua existência: os abismos da crença religiosa e a relação conturbada com o espaço geográfico em que nasceu e viveu. No vórtice de O Céu É dos Violentos, a escritora faz convergir toda a sua filosofia, alimentada e desenvolvida, sobretudo, pelo estudo de S. Tomás de Aquino e do teólogo Pierre Teilhard de Chardin, já visível no seu juvenil e profundamente espiritual Diário de Preces (Relógio D’Água), escrito entre 1946 e 1947, “descoberto” e publicado em 2013. De Teilhard de Chardin, Flannery retirou a crença de que tudo converge para Deus, algures num ponto ofuscante onde ela, a autora, coloca as suas personagens, dilaceradas entre a crença feroz e a dúvida perene.
Em O Céu É dos Violentos, esse combate centra-se num rapaz de cerca de 14 anos, Francis Marion Tarwater, a quem o seu tio-avô, um homem “possuído” — e auto-proclamado profeta — confia duas missões: a de lhe dar um enterro cristão e a de baptizar um outro sobrinho com problemas mentais, que vive na cidade com o pai. O velho Tarwater, que raptou Francis em criança para lhe transmitir a sua visão fanática da religião, cria-o na floresta no sentido de fazer dele o seu discípulo e morre efectivamente no início do livro. O rapaz procura satisfazer o seu compromisso, começando a cavar uma sepultura no solo duro e resistente, mas interrompe a tarefa árdua e inglória ao ouvir uma “voz” que lhe diz para esquecer o velho e seguir com a sua vida. Incapaz de tomar uma decisão, embebeda-se, pega fogo à casa com o cadáver lá dentro e apanha uma boleia de um caixeiro-viajante que lhe garante que “não existe o diabo nem nada que o valha… não tens de escolher entre Jesus e o diabo. A escolha é entre Jesus e ti mesmo” (p. 38). Ao chegar à cidade, Francis procura o tio, o professor Rayber, pai de Bishop, o referido miúdo com síndrome de Down, que o acolhe e tenta fazer dele um “ser humano útil”, desmistificando a falsa doutrina que impregnou a cabeça do rapaz. Mas Francis mantém uma atitude de teimosia e alheamento, tendo por companhia a mesma “voz” (o seu amigo, isto é, o diabo) que o alicia na descrença e na resistência. A acção decorre ao longo de uma semana e toda a narrativa é construída em torno deflashbacks que dão conta de uma família disfuncional, cujos membros, ao longo dos anos, se debateram com conflitos alimentados pela ignorância, pela fraqueza moral e pelo fundamentalismo messiânico. Os vértices do triângulo formado por Francis Tarwater, Rayber e Bishop simbolizam três forças que se digladiam impiedosamente e acabam por se destruir entre si, à medida que as acções demenciais se sucedem à luz de visões bíblicas de baptismos e purificações que carregam consigo a destruição e a morte.
O Céu É dos Violentostem o peso de uma maldição lançada aos quatro ventos por esta autora singular que lia e relia em criança os contos de Edgar Allan Poe e manteve uma discussão consigo própria relacionada com os enigmas da fé sem nunca perder de vista uma ironia selvagem que raiou o grotesco, muito próprio do “gótico sulista”, uma designação que serviu para acantonar escritores tão diferentes quanto William Faulkner, Carson McCullers, Tennessee Williams, Harper Lee, Truman Capote, Cormac McCarthy e a relutante Eudora Welty, que se insurgiu contra essa categorização. Na realidade, todos eles conheceram e se deixaram seduzir perversamente pela ideia, que transpuseram para a escrita, de um lugar luminosamente sombrio, entre chamas purificadoras, o apaziguamento da água baptismal, a viagem iniciática e o negrume de um céu onde os pobres, os deserdados, os impotentes, os marginais e os mutilados física e psicologicamente se movimentam numa ânsia redentora que os arrasta por um longo caminho de martírio. Este quase sadismo a que O’Connor expõe homens e mulheres destinados a um propósito envolto em trevas foi o que desencadeou a reacção da sua antiga professora de escrita criativa no Georgia State College for Women (cujas aulas frequentou em 1942), que, dez anos mais tarde, ao ler o primeiro romance da sua aluna (
Sangue Sábio), o atirou pelo ar e exclamou: “Se ela tivesse matado o personagem logo no início, em vez de o fazer no fim, teria poupado uma grande maçada a muita gente”. Este desabafo reflecte o desconforto de leitores que resistem ao ímpeto devastadoramente cómico de O’Connor, cuja força, feita do apuramento incandescente da sua escrita, aliado a um imaginário assombroso, se condensa essencialmente nas narrativas mais curtas mas que “explode” literalmente neste romance. O’Connor foi uma ardente devota, mas a questão do seu catolicismo e a forma como este se revela nos seus escritos têm sido objecto de estudos e especulações. O próprio título deste livro remete para a ambiguidade da passagem de Mateus, 11:12 — “Desde os dias de João Baptista até agora, o reino dos céus tem sido objecto de violência e os violentos apoderam-se dele à força” —, evocativa da luta perene contra o Mal, que tenta subjugar o divino para o diminuir e distorcer. Luta essa que não exclui a violência e o confronto brutal, reminiscente do tumulto que encontramos no
Paraíso Perdidode John Milton.
O’Connor não se coíbe de desmascarar a ignorância que leva à intolerância e que, por sua vez, se desenvolve num fanatismo grotesco, frequentemente intrínseco aos seus personagens, mesmo quando estes estão imbuídos de uma qualquer visão redentora. No entanto, essa espécie de epifania nunca é pacífica, antes se reveste de um carácter demolidor que é próprio da revelação do mistério da morte, tema central deste romance e tratado, pela autora, com uma espécie de desespero irónico, enquanto transpõe, para a ficção, tudo aquilo que a atormentou: os preconceitos e a tibieza moral, o bem e o mal, as tensões entre o ser humano e a natureza, entre a razão e o fanatismo, entre o paraíso e o inferno.