O fanatismo
Em 1741, o ainda jovem Voltaire fez representar pela primeira vez a sua tragédia Maomé, ou o Fanatismo, cujo protagonista é um profeta impostor e cruel. Os censores católicos ficaram agradavelmente surpreendidos — o autor era um já notório provocador e parecia agora regressar à boa fé cristã com um ataque aos infiéis — e deixaram passar a peça. Até ao dia em que algum bispo foi ver a peça e se deu conta de Voltaire estava a falar da religião em geral, e dos católicos em particular (era verdade, como admitiu depois). Dá-se uma reviravolta, a peça é proibida e Voltaire, que já tinha sido preso uma vez e detestado a experiência, pôs-se ao fresco.
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Em 1741, o ainda jovem Voltaire fez representar pela primeira vez a sua tragédia Maomé, ou o Fanatismo, cujo protagonista é um profeta impostor e cruel. Os censores católicos ficaram agradavelmente surpreendidos — o autor era um já notório provocador e parecia agora regressar à boa fé cristã com um ataque aos infiéis — e deixaram passar a peça. Até ao dia em que algum bispo foi ver a peça e se deu conta de Voltaire estava a falar da religião em geral, e dos católicos em particular (era verdade, como admitiu depois). Dá-se uma reviravolta, a peça é proibida e Voltaire, que já tinha sido preso uma vez e detestado a experiência, pôs-se ao fresco.
A ironia é tramada para os censores. Na Arábia Saudita, há uma espécie de Inquisição muçulmana chamada a Comissão para a Promoção da Virtude e Repressão do Vício. Farto de ser perseguido e censurado, um blogger chamado Raif Badawi resolveu escrever simplesmente algo como "estamos gratos à Comissão para a Promoção da Virtude e Repressão do Vício por promover a virtude e reprimir o vício". Os censores sauditas ouviram por detrás daquela ostensiva não-crítica o riso escarninho do jovem blogger e condenaram-no a cinquenta chicotadas todas as semanas, durante vinte semanas.
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Há uma linha que une as histórias de Voltaire e Badawi aos autores do Charlie Hebdo assassinados em Paris na semana passada, e que de certa forma começa também na França, no século XVIII. Aquele não foi só o tempo de Voltaire e da Enciclopédia, ou da ironia fina como Badawi, mas também o das ideias transportadas através de livros de pornografia, como Thèrese Philosophe que foi o maior sucesso de vendas da época, os panfletos baratos com sátiras ferozes, caricaturas grotescas, intrigas escandalosas. Os autores dessas folhas, quantas vezes desqualificados e indigentes, faziam avançar os tempos pelo efeito de choque. Hoje, quando pensamos no Charlie Hebdo, lembramo-nos da esquerda libertária nascida com o Maio de 68, mas a sua tradição era mais antiga ainda e vinha de um século XVIII que não era só das Luzes idealizadas, mas de uma revolução de ideias subterrânea, sensual e satírica — e que hoje ainda está conosco.
Voltaire não queria mártires, sobretudo entre os defensores da liberdade. Sempre que podia aconselhava-os a escreverem e fugirem, usarem pseudónimo, protegerem-se. É certo que ele teria querido ver Charb, Cabu, Wolinski, Tignous e todos os outros mortos no ataque ao Charlie Hebdo sãos e salvos. E talvez Voltaire nos ensinasse a diferença entre os bárbaros (etimologicamente, aqueles que não falam grego, ou "os estrangeiros") e os fanáticos (na origem, aqueles que saem dos templos inspirados por um Deus furioso) e nos quereria a combater os segundos sem reprimir os primeiros. “Os que ouvem vozes são entusiastas”, dizia ele, “os que matam são fanáticos”.
Era preferível que não houvesse fanáticos, e que não tivesse de haver mártires pela liberdade. Mas havendo, é importante lembrar sempre que o amor é mais forte do que o ódio, como pôs na sua capa o Charlie Hebdo. Porque o amor é um amor de riso e de liberdade. E por isso os corações de todas as pessoas de bem de todo o mundo estiveram ontem juntos, em Paris, na Praça da República, ali onde leva o Boulevard Voltaire.