A quem obedeceram os irmãos Kouachi?
Várias pistas apontam para que o ataque ao Charlie Hebdo tenha sido inspirado pela Al-Qaeda no Iémen, mas é provável que não tenha havido uma orquestração directa.
Por apurar estão as relações dos irmãos Said e Chérif Kouachi ao movimento jihadista internacional, se foram mandatados directamente por alguma organização terrorista para atacarem o semanário satírico, se receberam algum tipo de treino e qual foi o papel do autor do ataque em Montouge, que vitimou uma polícia, e do assalto à mercearia judaica em Vincennes.
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Por apurar estão as relações dos irmãos Said e Chérif Kouachi ao movimento jihadista internacional, se foram mandatados directamente por alguma organização terrorista para atacarem o semanário satírico, se receberam algum tipo de treino e qual foi o papel do autor do ataque em Montouge, que vitimou uma polícia, e do assalto à mercearia judaica em Vincennes.
Esta sexta-feira começaram a circular notícias de que Said Kouachi terá passado “alguns meses” no Iémen a receber treino de manuseamento de pequenas armas durante 2011, segundo informações reveladas à Reuters e ao New York Times pelos serviços secretos iemenitas e norte-americanos.
No país, Said terá integrado a Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA) onde travou conhecimento com Anwar al-Awlaki, um norte-americano convertido ao Islão e que se tornou num alto quadro do grupo terrorista. Awlaki acabaria por ser morto em Setembro de 2011 durante um ataque realizado por um drone da CIA – uma operação considerada controversa na altura por se tratar da execução extrajudicial de um cidadão norte-americano pelo seu próprio Governo.
Kouachi rumou ao Iémen numa altura em que vários outros jovens muçulmanos de países ocidentais também o fizeram com o objectivo de aprofundar os seus estudos religiosos, diz a Reuters. Os dois irmãos figuravam na “lista negra” de terroristas dos serviços secretos norte-americanos, estavam formalmente proibidos de entrar no território dos EUA e eram seguidos há já vários anos pelas autoridades francesas e norte-americanas, segundo o NYT.
Várias testemunhas relataram nos últimos três dias à imprensa francesa que os autores do atentado se apresentaram como membros da “Al-Qaeda no Iémen”. A cadeia televisiva BFMTV revelou uma conversa telefónica com Chérif, o irmão mais novo, durante o cerco na gráfica nos arredores de Paris, em que este revelou que o ataque ao Charlie Hebdo foi orquestrado pela AQPA e o financiamento ficou a cargo de Awlaki, dando mais força à tese que aponta para a ligação iemenita.
Para além da viagem de Said ao Iémen, há relatos de que também Chérif se terá deslocado à Síria. De acordo com uma fonte próxima dos serviços de segurança franceses, citada pela CNN, Kouachi terá regressado a França em Agosto do ano passado, desconhecendo-se a duração da sua estadia e que operacionais terá contactado. A ministra da Justiça francesa, Christiane Taubira, também já tinha revelado à mesma estação televisiva que um dos irmãos tinha estado no Iémen em 2005.
O ataque não foi reivindicado de forma oficial por nenhuma das organizações pertencentes à jihad, o que sugere que o ataque não tenha sido dirigido a partir do exterior, como observa à Foreign Policy o vice-presidente do Soufan Group, Robert McFadden. O mais provável é que os dois irmãos tenham agido por iniciativa própria e com os meios à sua disposição, embora inspirados pela propaganda de um determinado grupo. “A afiliação grupal está a tornar-se menos importante do que a ideologia, o que está a motivar pequenos grupos em todo o mundo para levarem a cabo ataques violentos como o de quarta-feira”, escreve a Foreign Policy.
Nesta lógica, um dos grupos mais bem posicionados para surtir este efeito é precisamente a AQPA, descrita por vários analistas como a organização mais poderosa no universo da Al-Qaeda. Uma das pedras angulares do grupo é a forte capacidade de mobilização para operações terroristas no Ocidente. E o religioso Anwar al-Awlaki, descrito pelo Wall Street Journal como “altamente popular entre os simpatizantes jihadistas nos EUA e na Europa”, era um dos principais motores desta estratégia.
Em 2010, ainda o mundo não conhecia o poder de atracção do Estado Islâmico, já a AQPA publicava uma revista online em inglês chamada Inspire para promover a sua luta. Numa edição de 2013 figurava um anúncio de alguns dos principais alvos da organização, entre os quais Stéphane Charbonnier, o director do Charlie Hebdo que foi morto durante o ataque – para além de instruções de como fazer uma bomba caseira ou uma lista dos melhores eventos nos EUA para realizar um atentado.
Desde que o Estado Islâmico se apresentou como uma ameaça, seduzindo milhares de jovens ocidentais para integrarem as suas fileiras, que a França, assim como outros países europeus, estava em alerta para a possibilidade de um atentado terrorista dentro das suas fronteiras. Porém, à luz daquilo que já é conhecido, a ameaça que a França temia e aguardava não veio dos jovens recém-radicalizados vindos da Síria e do Iraque, mas sim de indivíduos com um percurso longo nas redes jihadistas do país e sinalizados pelas autoridades.
O ataque ao Charlie Hebdo vem mostrar que há limites para o que os esquemas de vigilância podem prevenir. “Não é por ser conhecido, que se é colocado sobre vigilância permanente. A partir de certo momento, a vigilância cessa, sobretudo se se for inteligente o suficiente para não se expor”, explicou à AFP o director do Centro Francês de Investigação em Informação, Eric Dénécé.
Já depois do fim da operação, o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, reconheceu que “as questões de vigilância sobre estes homens eram legítimas”. “Mas nunca há um risco zero.”