Tomai e escutai: este é o corpo de Margaret Chardiet

Desliguem as luzes e abandonem-se a esta coisa: estamos perante uma experiência-limite do que o corpo é capaz de produzir

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Usem este disco em doses homeopáticas, e quando derem por vós a sentir prazer nada temeis: todos temos um pouco de masoquismo num qualquer recanto do nosso corpo

O uso do ruído na música não é propriamente uma novidade e são precisos mais que os dedos de uma mão para contar os casos em que o dito é usado para disfarçar incompetência técnica ou para criar uma abordagem estética que legitime o que de outra forma seria uma valente trampa. Não tenho dúvidas, sequer, que a última proposição será a que ocorrerá mais vezes no cérebro do melómano comum perante Bestial Burden, o segundo álbum de Margaret Chardiet, menina que assina como Pharmakon. Sucinta e superficialmente trata-se de ruído com beats e berros em fundo. É difícil escutá-lo às primeiras horas da matina e quase impossível aturá-lo quando já nos enroscámos nos lençóis. Mas arranjem umas horas livres, desliguem as luzes e simplesmente abandonem-se a esta coisa: estamos perante uma experiência-limite do que o corpo é capaz de produzir. Na faixa-título, quase sem sinais aparentes de ritmo, uma voz a raiar a loucura tenta romper a parede de ruído gritando “I don’t belong here”; em Body betrays itself, Chardiet esganiça a garganta a um ponto que chega a ser doloroso, enquanto um par de notas sintetizadas se repete e repete e repete; em Autoimmune o beat dir-se-ia o equivalente musical a um martelo-pilão a escavar camadas geológicas intransponíveis; ruídos metálicos chispam pela faixa fora, em contra-ponto àquela voz de bruxa a arder em óleo. Não, as “canções” de Bestial Burden não são todas iguais: sejam os beats ou a forma como o ruído é usado ou o tipo de tortura que Chardiet aplica às suas cordas vocais, há subtis variações ao longo do disco, mas isso é o menos importante: estamos perante uma daquelas situações que deixariam Fatima Miranda a bordejar a felicidade, ou, se quiserem, Blixa Bargeld é moço para cantarolar isto. Usem-no em doses homeopáticas, e quando derem por vós a sentir prazer nada temeis: todos temos um pouco de masoquismo num qualquer recanto do nosso corpo. Tomai e escutai: este é o corpo de Margaret Chardiet – e está a decompor-se à nossa frente.

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O uso do ruído na música não é propriamente uma novidade e são precisos mais que os dedos de uma mão para contar os casos em que o dito é usado para disfarçar incompetência técnica ou para criar uma abordagem estética que legitime o que de outra forma seria uma valente trampa. Não tenho dúvidas, sequer, que a última proposição será a que ocorrerá mais vezes no cérebro do melómano comum perante Bestial Burden, o segundo álbum de Margaret Chardiet, menina que assina como Pharmakon. Sucinta e superficialmente trata-se de ruído com beats e berros em fundo. É difícil escutá-lo às primeiras horas da matina e quase impossível aturá-lo quando já nos enroscámos nos lençóis. Mas arranjem umas horas livres, desliguem as luzes e simplesmente abandonem-se a esta coisa: estamos perante uma experiência-limite do que o corpo é capaz de produzir. Na faixa-título, quase sem sinais aparentes de ritmo, uma voz a raiar a loucura tenta romper a parede de ruído gritando “I don’t belong here”; em Body betrays itself, Chardiet esganiça a garganta a um ponto que chega a ser doloroso, enquanto um par de notas sintetizadas se repete e repete e repete; em Autoimmune o beat dir-se-ia o equivalente musical a um martelo-pilão a escavar camadas geológicas intransponíveis; ruídos metálicos chispam pela faixa fora, em contra-ponto àquela voz de bruxa a arder em óleo. Não, as “canções” de Bestial Burden não são todas iguais: sejam os beats ou a forma como o ruído é usado ou o tipo de tortura que Chardiet aplica às suas cordas vocais, há subtis variações ao longo do disco, mas isso é o menos importante: estamos perante uma daquelas situações que deixariam Fatima Miranda a bordejar a felicidade, ou, se quiserem, Blixa Bargeld é moço para cantarolar isto. Usem-no em doses homeopáticas, e quando derem por vós a sentir prazer nada temeis: todos temos um pouco de masoquismo num qualquer recanto do nosso corpo. Tomai e escutai: este é o corpo de Margaret Chardiet – e está a decompor-se à nossa frente.