No corpo de Luís Guerra, dança-se o desencontro

Trovoada coloca num mesmo palco a dança de Luís Guerra e a música de Joana Gama. E funciona como um díptico em que as linguagens dos dois são simultâneas mas nunca procuram verdadeiramente espelhar-se.

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JOÃO GODINHO

Há um prólogo que vem de trás. Um prólogo em que Luís Guerra aborda uma pequena mesa iluminada por uma luz vermelha que rasga a penumbra do palco. E enquanto se move em redor da mesa, mais ou menos convulsamente, como se o objecto o prendesse num qualquer magnetismo do qual não se consegue libertar, o som permanente de uma electrónica ciciante, um qualquer silvo tresmalhado, enche o ar. Depois daquilo que parece uma curta batalha na procura de subjugar o objecto, o bailarino desenvencilha-se da mesa e regressa com uma vara metálica que usa como uma espada, com movimentos de um samurai improvisado, um jedi avulso, largado no mundo sem contexto. A luz baixa. E quando volta a subir, Luís Guerra já não está sozinho em palco e o silvo, enfim, calou-se. O prólogo terminou.

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Há um prólogo que vem de trás. Um prólogo em que Luís Guerra aborda uma pequena mesa iluminada por uma luz vermelha que rasga a penumbra do palco. E enquanto se move em redor da mesa, mais ou menos convulsamente, como se o objecto o prendesse num qualquer magnetismo do qual não se consegue libertar, o som permanente de uma electrónica ciciante, um qualquer silvo tresmalhado, enche o ar. Depois daquilo que parece uma curta batalha na procura de subjugar o objecto, o bailarino desenvencilha-se da mesa e regressa com uma vara metálica que usa como uma espada, com movimentos de um samurai improvisado, um jedi avulso, largado no mundo sem contexto. A luz baixa. E quando volta a subir, Luís Guerra já não está sozinho em palco e o silvo, enfim, calou-se. O prólogo terminou.

Há um prólogo que vem depois. Vento, esse pequeno enxerto que Luís Guerra recupera de um anterior espectáculo criado sobre música de Ulrich Estreich, antecede o bloco principal de Trovoada, que a 15 e 16 se mostra no Centro Cultural de Belém e cuja génese se encontra na colaboração com a pianista Joana Gama. Aliás, foi Joana, colaboradora frequente em coreografias de Tânia Carvalho ou Miguel Moreira, quem sugeriu ao bailarino e coreógrafo trabalharem juntos numa nova criação deste – após ter apresentado numa edição das Quintas de Leitura, no Teatro de Campo Alegre (Porto), a peça Fogo Posto, composição para piano de João Godinho. Os dois já se conheciam desde 2008, quando a pianista trabalhou com Tânia Carvalho em Danza Ricercata. O percurso de Luís Guerra tem-se feito num paralelismo com a vida da recentemente extinta estrutura Bomba Suicida, partilhada com Tânia Carvalho e Marlene Monteiro Freitas, participando activamente em obras das coreógrafas ao mesmo tempo que foi desenvolvendo todo um reportório consagrado ao território ficcional de Laocoi – do qual se destaca o tríptico sobre a decadência Hurra! Arre! Apre! Irra! Ruh! Pum!

Durante esse período, passou mesmo a assumir a assinatura Luís Guerra de Laocoi, à medida que a ficção que fora acumulando durante anos nas gavetas, desenhando obsessivamente mapas de Laocoi e compilando todo o tipo de informação fabricada (população, sistema política, língua própria, hino e tudo o mais que ajudasse na construção de uma identidade) sobre um país que rapidamente infiltrou as suas coreografias. Foi, na verdade, o mergulho num universo pessoal que sucedeu a provocações à dança clássica, como acontecia em Smells Like Teen Spirit (2007), quando colocou em cena uma bailarina, duas cheerleaders e um travesti em saltos gigantes pedindo-lhes uma coreografia tecnicamente perfeita. A cada nova passagem da canção dos Nirvana em loop, o desastre em palco acentuava-se.

Laocoi extinguiu-se no seu nome de palco e nas suas referências assumidas com Nevoeiro (2013). Daí que seja ao passado muito recente que recorre para o rastilho da nova criação. E o efeito é evidente. Trovoada precisava de um momento anterior, a partir do qual pudesse soltar-se. É isso que acontece assim que a pianista e o piano surgem sob a luz vermelha: a sua presença traz consigo a capacidade de reordenação do espaço e dos movimentos de Luís Guerra. “A entrada da Joana coincide com um momento coreográfico singular em que estou fixo no mesmo ponto espacial e só mexo os braços com uma vara”, descreve o bailarino. “Digamos que num mundo mitológico a Joana poderia talvez representar a presença que traz ordem ao mundo – a segunda entidade que surge após o instante da criação do cosmos. E que leva à consolidação da matéria – o bosão de Higgs desta coreografia.”

A presença de Joana Gama, no entanto, não empurra Luís Guerra para um lugar inteiramente distinto. “Os movimentos marciais e de luta” que admite estarem presentes no seu “trabalho coreográfico em geral” não se extinguem com o blackout momentâneo. Luís está no seu mundo. Mas passa a ter um contraponto. Ao tom misterioso e perscrutante anterior sucede um jogo de duas forças aparentemente desconexas, quase surdas, praticamente cegas uma à outra.

Um filme mudo

O aparente desencontro entre os discursos dos dois faz com que Trovoada se veja como uma versão esquiva e fantasmática de um antigo filme mudo. O piano de Joana Gama segue, frequentemente, um caminho virtuoso, obsessivo, de brilhantismo técnico, enquanto o corpo de Luís Guerra parece existir indiferente a tudo isto, entregue a um ritmo próprio, quase lúdico, cartoonesco. Esta dessincronia entre os dois esteve sempre presente desde que o coreógrafo começou a montar a sua composição sobre a música. “Isso foi claro para mim a partir do momento em que comecei a compor os movimentos em cima da partitura musical do João”, confirma, “e mesmo no diálogo que tivemos na criação da música. Mais uma vez, agradava-me divagar nessa tal ideia mitológica em que o binómio Luís versus Joana/João representasse vários antagonismos que encontramos no cosmos.”

O registo vagamente chaplinesco cola-se a essa ideia de antagonismo e aos dois vocabulários propositadamente imperfeitos na sua justaposição. Ainda que sem recorrer a referências específicas, Luís Guerra reconhece que durante o período de criação deu-se conta dessa proximidade de universos, pensando, às tantas, “numa peça onde a Joana pudesse ser como os músicos contemporâneos que acompanham, ao vivo, um filme mudo de realizadores e actores já mortos”. “Cheguei mesmo a pensar em ter uma tela de tecido e fazer toda a minha dança atrás dela”, acrescenta. “E coreografar a totalidade dos movimentos sem preocupação de interacção precisa com a música. Talvez por contraponto à interacção que tenho com a música do Ulrich. Parte dessa ideia acabou por ficar sempre lá.”

A música está, assim, nos alicerces de Trovoada da mesma forma que o estava em Vento. Só que enquanto no fragmento que agora se apresenta como prólogo Luís Guerra procurava uma relação estreita com a abstracção electrónica forjada por Estreich, em todo o tempo que se encontra no palco ao lado de Joana Gama essa relação é a de reconhecimento de uma estranheza e de uma recusa em seguir-lhe os passos. Trovoada funciona como um díptico, em que a beleza se descobre na procura de uma ordem conjunta que simplesmente não assume um discurso uno e foge a qualquer tentação daquilo a que se poderia chamar um encontro.

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