O corpo de Julian está entregue aos bichos
John Romão termina uma trilogia dedicada à obra de Pasolini com Pocilga, na Culturgest, em Lisboa. De 15 a 17 de Janeiro, Julian procura nos porcos um abrigo para a degradação humana posta em marcha pelo capitalismo. Tudo tratado com uma higiene que apenas sublinha a imundície.
Ao decidir-se por um cenário limpo, alvo, com ar de poder ser corrompido pelo menor assomo de sujidade, um só grão de pó, o encenador ponderou ainda na possibilidade de o palco se tornar, com o avançar da peça, num repositório mais insuportável de toda uma série de porcarias acumuladas. Até, na verdade, se parecer senão com uma autêntica pocilga, ao menos com um lugar abjecto, imundo, nauseabundo, tão animalesco quanto humano. Mas, aos poucos, começou a parecer-lhe uma solução óbvia, um atalho para uma literalidade pouco desafiante. “Pelo contrário”, justifica, “trabalho uma questão de limpeza constante, metemos os criados constantemente a limparem o espaço, a lavarem o corpo do Julian que o pai vai sujar com chocolate fingindo que se trata de merda.”
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Ao decidir-se por um cenário limpo, alvo, com ar de poder ser corrompido pelo menor assomo de sujidade, um só grão de pó, o encenador ponderou ainda na possibilidade de o palco se tornar, com o avançar da peça, num repositório mais insuportável de toda uma série de porcarias acumuladas. Até, na verdade, se parecer senão com uma autêntica pocilga, ao menos com um lugar abjecto, imundo, nauseabundo, tão animalesco quanto humano. Mas, aos poucos, começou a parecer-lhe uma solução óbvia, um atalho para uma literalidade pouco desafiante. “Pelo contrário”, justifica, “trabalho uma questão de limpeza constante, metemos os criados constantemente a limparem o espaço, a lavarem o corpo do Julian que o pai vai sujar com chocolate fingindo que se trata de merda.”
Julian é o centro. É o filho do industrial alemão Klotz, o noivo da inocente revolucionária Ida e o centro da recusa. A recusa em pertencer a uma herança capitalista e de poder entregue numa bandeja pelo pai na Alemanha da reconstrução do pós-guerra, a recusa em ser um burguês de figurino pré-desenhado, a recusa em contrariar esse destino com a adopção radical de uma política de protesto. Julian refugia-se na pocilga, na sua relação com os porcos, numa recusa que é também a do mundo, da construção humana. “É quando ele está na pocilga que se encontra em contacto com a sua própria verdade”, defende o encenador. “Daí a ideia de recusa do capitalismo, do poder – de facto, ele é como o Hamlet, tem a responsabilidade, é o herdeiro. Tem um pai rico, um candidato a primeiro-ministro que tem todo um futuro promissor desenhado para o filho e ele não obedece nem desobedece. Não tem interesse por nada.”
Hamlet surge ainda subterraneamente em passagens de Pasolini como a referência a “um cheiro a estrume na Renânia” (uma rima com a podridão na Dinamarca), a troca de papéis em que o pai concentra o lado afectuoso e a mãe, como diz o encenador, “é um dragão prussiano, mais militar”. Além de que, nota Romão, Pocilga arranca praticamente com a confissão de Julian a Ida: “Não sei quem sou”. A procura de identidade e a representação de identidades, comum a Hamlet, alastram pelo espectáculo. Desde o início, aliás, quando Julian se vê num pesadelo de uma festa de aniversário “minada com a ideia de máscaras e representação, de monstruosidade”, rodeado de figuras que ocultam a sua cara como uma assombração que se anuncia.
Os pratos da balança
É aqui que John Romão impõe uma pausa, para traçar um paralelismo que alimenta a sua estreia de Pocilga em português. E esse paralelismo faz-se com os dias de hoje, com aquilo que há de pessoal em Julian poder, afinal, ressoar para lá da sua conduta de retraimento. “O desinteresse de Julian não é pela falta, é pelo excesso”, identifica John Romão. “Ele pode tanta coisa, está rodeado de tanto excesso, que não há nada. É quase uma inércia do desejo. Comparando com aquilo que diz o Paul Virilio sobre a inércia da velocidade – ‘Há-de existir um momento que o nosso objectivo enquanto sociedade é andar tão rápido, tão rápido que aquilo que veremos é não-movimento’ – é um pouco a mesma coisa. A inércia vem do excesso de oferta que ele sente.”
O desinteresse por Ida faz igualmente parte desse retraimento. Se bem que nunca o texto o explicite, aquilo que é amplamente sugerido por Pasolini é a satisfação sexual procurada por Julian junto dos porcos. “Se me visses um só instante como sou na realidade, correrias aterrorizada a chamar um médico ou uma ambulância”, atira Julian a Ida. “Sabemos, no entanto, que é uma coisa tão horrível que pode ser moeda de troca entre o que uma pessoa faz com porcos e o extermínio de milhares de judeus”, acrescenta John Romão. “É algo que se equilibra numa mesma balança.” A balança moral coloca num prato os segredos de Klotz e do seu filho, e no outro aqueles que dizem respeito a Herdhitze, o rival de Klotz nos anseios capitalistas e de ascensão social.
Destes dois pratos que se equivalem no julgamento de Klotz e de Herdhitze, desta necessidade de evitar o escândalo e, portanto, proceder novamente a um tratamento de limpeza, apagando factos para que não atrapalhem demasiado as ambições e os planos de aquisição de poder, nasce, afinal, uma nova parceria movida pelo capital. De tudo, emerge o capital. Aqui, parece dizer-nos Pasolini, a limpeza é também a de um país em pleno milagre económico alemão, aquele que aconteceu com a reconstrução depois da queda do III Reich, a forçar-se uma amnésia relativa à sua História recente. “O desaparecimento”, defende John Romão, “é outra das linhas muito fortes do espectáculo. Não é apenas o desaparecimento do Julian no final, em que é comido pelo seu próprio desejo, comido pelos porcos, mas também o desaparecimento das provas científicas dos crânios dos judeus.”
Sobra então uma coligação capitalista entre os dois industriais, uma “festa da fusão” em que o exercício político é equiparado por John Romão às artes mágicas. Fazem desaparecer folhas de papel, aparecer flores na ponta de uma bengala, usam de uma série de truques capazes de fazer pulverizar coisas com um simples gesto, põem-nos a olhar para o sítio errado enquanto disfarçam a verdadeira natureza das suas acções. Tudo feito num ambiente que se apresenta como sofisticado, higiénico, de um capitalismo que em vez de soar contrastante à pocilga de Julian apenas parece esforçar-se por ocultar uma bestialidade mais sórdida.
Julian é, portanto, um ser que se coloca à margem de tudo isto. E que “sente que os camponeses são os seus amigos e estão do lado dele porque são a classe mais desprezível e desprezada da sociedade”, considera John Romão. São aqueles que trabalham e que, apesar de terem boca para falar, é como se estivesse uma mordaça a sufocar-lhes a voz. “Há aqui uma ideia de que a pobreza e a obscenidade estão ao mesmo nível”. Por isso, são os camponeses que informam Herdhitze de que Julian foi devorado pelos porcos até não restar um único vestígio, recebidos apenas depois da confirmação de que não trazem reivindicações. São os únicos que sabem o que se passa e que o sabem em silêncio.
O fim da trilogia
Pocilga põe termo a uma trilogia que John Romão dedicou ao autor italiano nos últimos dois anos. Primeiro, encenou com Paulo Castro Cada Sopro, do australiano Benedict Andrews, criado como revisitação do filme e do texto Teorema. Num segundo momento, o próprio Romão partiu das mesmas referências de Andrews para imaginar o seu Teorema para um actor, 12 skaters e um acordeonista assente no questionamento do lugar ocupado pelo sagrado na contemporaneidade. Agora, a encerrar o pequeno ciclo, dirige um elenco composto por Albano Jerónimo, Ana Burtorff, Mariana Tengner Barros, João Lagarto, Paulo Pinto e Pedro Lacerda. Mais uma vez, Romão recorre tanto à peça de teatro quanto ao filme homónimos de Pasolini – muito embora a peça não contemple uma das metades narrativas usadas em paralelo pelo italiano na versão cinematográfica, centrada na história de um canibal e em que a autofagia remete para a humanidade desvalorada em desaustinada autodestruição –, valendo-se igualmente de outras referências cruzadas, como o filme O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher e o Amante Dela, de Peter Greenaway.
Tanto na versão fílmica como na teatral, um dos grandes factores de atracção para John Romão reside num “texto em que as imagens não estão à mostra, são imaginadas, é tudo narrado”. “É um texto barroco, em que não há acções e imagens para serem feitas em cena. Não há nada que esteja realmente a acontecer naquele momento. E as poucas coisas que acontecem são o nada, são o vazio, a personagem do Julian em estado de catalepsia, bloqueado, perplexo, a olhar para cima.” A pocilga é, por isso, sempre produto da imaginação, nunca se materializa diante dos olhos do espectador. Daí o problema que o texto levantava: “como criar acções e imagens” que sustentassem o palco. “Pocilga vem no seguimento do Manifesto da Palavra do Pasolini, em que ele estava mesmo interessado em recuperar a palavra teatral, poética. No filme, a história dos canibais é só acção, acção e silêncio. Por oposição, nesta narrativa da política há um lado da decadência da palavra através do excesso.”
O vazio, de poder e de ostentação, “da falta constante que se tem dentro da riqueza, da burguesia”, John Romão explora-o igualmente em momentos a que chama “desertos”. Sempre que o verborreico texto descansa, há um deserto a instalar-se no interior das personagens. Ao mesmo tempo que a decadência alastra, a cobro de uma máscara de higienização. “A higienização dos comportamentos”, lembra o encenador, “é uma forma de controlo da sociedade por parte do Estado.” A política a tentar controlar o corpo de cada indivíduo. O corpo de Julian não. Está entregue aos bichos.