A vitória histórica do carapau e a poça do Forte da Berlenga
O futuro das pescas e de outras actividades assentes no capital natural passará por fortes reestruturações nesses sectores.
Este ano, para Portugal, o acordo foi “histórico”, nas palavras da ministra do Mar, Assunção Cristas: mais 67% de carapau, 14% de tamboril, 10% de biqueirão, e mais 15% de lagostim como cereja em cima do bolo. As derrotas insignificantes, de que a história não rezará, pelo que não vale a pena referir os números, são a pescada e o bacalhau.
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Este ano, para Portugal, o acordo foi “histórico”, nas palavras da ministra do Mar, Assunção Cristas: mais 67% de carapau, 14% de tamboril, 10% de biqueirão, e mais 15% de lagostim como cereja em cima do bolo. As derrotas insignificantes, de que a história não rezará, pelo que não vale a pena referir os números, são a pescada e o bacalhau.
Apesar de a ministra se mostrar satisfeita com esta grande vitória política, recordo que as negociações se fazem sobretudo à custa da delapidação dos stocks – capital natural –, o que considero ilegítimo, e muito pouco por transferências de quotas de um Estado-membro para outro, o que seria a meu ver legítimo.
Já aqui escrevi há cerca de dois anos o que penso sobre este processo de decisão política. O desafio que agora coloco é outro: suponhamos que um Governo de um país remediado, que se financia nos mercados internacionais para a sua gestão corrente, decide que há um sector ou sectores (saúde, educação, segurança social, justiça) que precisam de maior atenção do Estado e que portanto ser-lhes-ão atribuídos recursos – financeiros neste caso – 40% acima daquilo que esse mesmo Estado pode pagar, lesando assim esse capital financeiro. Qual seria a atitude dos nossos governantes ou dos detentores do capital financeiro, os credores? É fácil de adivinhar, não? A mesma doutrina que tão insistentemente nos diz que não podemos usar o capital financeiro acima das nossas possibilidades é a que incoerentemente desbarata o capital natural, desde logo um activo bem mais importante, fiável e duradouro, tenhamos a sabedoria de usufruir dele adequadamente.
Ser governante na área das pescas em Portugal é um desafio fantástico. À realidade económica importante do sector acresce a áurea mística da nossa relação com o mar, muito conservadora. Ousar inovar no discurso sobre a pesca (criação de zonas de reserva, criação de zonas de co-gestão para determinados recursos, imposição de distribuição mais equitativa de lucros em toda a cadeia de valor dos produtos, leilões ascendentes em lota para favorecerem os pescadores, entre muitas outras) é muito difícil, mesmo que tenhamos garantias de melhores resultados, atestadas por casos de estudo um pouco por todo o lado, da Galiza ao Kiribati. Tais medidas implicam um respaldo político de todo um Governo que regra geral não está interessado em assumir o ónus de medidas impopulares, ainda que o retorno para o sector e para o país seja seguro e relativamente rápido.
Os benefícios económicos na pesca da criação de uma reserva marinha, por exemplo, podem obter-se em tão-só quatro anos, mesmo a tempo das próximas eleições. A principal questão é que os carapaus e os lagostins não votam, não havendo portanto um grupo de pressão forte do outro lado da balança, pese embora o esforço de muitas organizações ambientalistas para alterar esta situação. Só com a consciencialização dos consumidores relativamente à sustentabilidade dos recursos que têm à mesa se conseguirá equilibrar este fiel, com ganhos para todos.
Por baixo da entrada do Forte de S. João Baptista, no lado Sul da Berlenga, na baixa-mar, há uma aparente poça que afinal é um túnel submerso. Se ousarmos encher os pulmões de ar e mergulharmos em direcção ao fundo escuro, rapidamente vemos luz do outro lado que vai dar a uma linda abóbada com uma vista magnífica. Um dos lugares mais bonitos da ilha. Pode ser acedido pelo outro lado do forte, mas não é a mesma coisa.
O futuro das pescas e de outras actividades assentes no capital natural passará por tomar medidas que implicarão fortes reestruturações nesses sectores, que terão de ser feitas mais tarde ou mais cedo. A valorização desse capital natural como activo estratégico, equiparado a qualquer outro fundo soberano, é apenas o princípio. Como na poça do forte da Berlenga, não podemos deixar de acreditar que a recompensa vale a pena, mesmo se passarmos pelo caminho escuro que nalguns casos encontraremos.
Biólogo (bagoncas@gmail.com)