O discurso sem qualidades

Nunca como agora nos fez tanta falta uma democracia, um governo nacional e um Presidente.

A novidade consistiu no elogio público aos partidos e aos políticos (“Rejeito em absoluto uma ideia demagógica e populista segundo a qual os partidos e os seus dirigentes se alheiam dos interesses do país e das aspirações dos cidadãos”), em oposição ao texto e subtexto da maioria das suas intervenções políticas, em que “os políticos” são sempre identificados como parte do problema. É estranho ver Cavaco atacar a “ideia demagógica e populista” de que foi um dos principais autores, cultores e fautores, mas é melhor tarde que nunca.

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A novidade consistiu no elogio público aos partidos e aos políticos (“Rejeito em absoluto uma ideia demagógica e populista segundo a qual os partidos e os seus dirigentes se alheiam dos interesses do país e das aspirações dos cidadãos”), em oposição ao texto e subtexto da maioria das suas intervenções políticas, em que “os políticos” são sempre identificados como parte do problema. É estranho ver Cavaco atacar a “ideia demagógica e populista” de que foi um dos principais autores, cultores e fautores, mas é melhor tarde que nunca.

O apelo ao voto no PSD, discretamente camuflado, consistiu num rasgado elogio da acção do Governo actual, na proclamação das mesmas melhorias imaginárias que o Governo tem alardeado e na ênfase na necessidade de prosseguir a mesma trajectória (“A economia está a crescer, a competitividade melhorou, o investimento iniciou uma trajectória de recuperação e o desemprego diminuiu. É preciso criar condições políticas para que esta tendência se reforce no ano que agora começa”), em mais um exemplo da falta de isenção partidária em que Cavaco tem sido pródigo.

A dissuasão no voto no PS consistiu na afirmação de que o país corre o risco de regressar à situação vivida no final do último Governo Sócrates e de que o pedido de financiamento à troika se deveu apenas a razões internas (“Portugal não pode regredir para uma situação semelhante àquela a que chegou em princípios de 2011, em que foi obrigado a recorrer a auxílio externo de emergência”), em mais um exemplo de uma leitura simplificada da realidade e de um sectarismo incompatível com a função que ocupa. O alerta sobre as promessas eleitorais (“Há que evitar promessas demagógicas e sem realismo”) vem no mesmo sentido, não podendo deixar de ser lido senão como uma admoestação preventiva ao PS, já que o cúmulo de promessas eleitorais não cumpridas pertence à ultima campanha eleitoral do PSD, sem que ele tivesse sido objecto de reparo presidencial.

A menorização das eleições legislativas consistiu na mensagem sobre a necessidade de um compromisso pré-eleitoral entre partidos (“Seja qual for o resultado eleitoral, o tempo subsequente à realização de eleições será marcado por exigências de compromisso e de diálogo”, “Não é só no dia a seguir às eleições que se constroem soluções governativas estáveis, sólidas e consistentes”), que, aliada à afirmação da necessidade de prosseguimento das mesmas políticas, pretende sublinhar que não existe qualquer possibilidade de mudar o rumo da governação, sejam quais forem os resultados eleitorais. Se quisesse apelar à abstenção em massa, Cavaco não poderia ter feito melhor. Conhecendo as posições dos partidos à esquerda do PS, que, na opinião de Cavaco, não “asseguram o crescimento económico”, é clara a mensagem: no seu discurso de Ano Novo, o PR apela a um acordo PS-PSD prévio às eleições, que apoie um futuro governo que prossiga a mesma política do actual, e aconselha que entre os dois partidos não haja “crispações e conflitos artificiais”. Nada que espante. Cavaco nunca aprendeu que é o Presidente de todos os portugueses e não é agora que vai aprender.

Todo o discurso de Cavaco é uma arenga contra a ideia de alternativa. E este seria o aspecto mais relevante da alocução do supremo magistrado da nação não se desse o caso de o discurso ser também uma defesa da supremacia dos interesses estrangeiros sobre os interesses nacionais. Ao dizer que “Tal como os outros países da zona euro, Portugal está sujeito às exigências de disciplina orçamental e de sustentabilidade da dívida pública” e ao não referir o dever ou sequer a possibilidade de discutir, contestar, alterar ou recusar as exigências iníquas do directório da União Europeia, Cavaco, no mesmo discurso em que fala do “interesse nacional”, submete-o sem uma hesitação aos ditames dos interesses financeiros.

Não há, na mente de Cavaco, uma ideia de país que não seja servil perante os grandes. Não há, na imaginação de Cavaco, uma ideia de estratégia internacional que não seja a obediência. Não há, no sentimento de Cavaco, um lugar para o simples patriotismo.

Esta desgraça é tanto mais grave quanto sabemos que, em 2015, a União Europeia vai ser o palco de um combate sem tréguas e de enormes consequências onde a Grécia, pela mão do partido Syriza, deverá ter um papel central, e onde Portugal se terá de posicionar. A Alemanha já fez as primeiras jogadas, fazendo chantagem sobre os eleitores gregos e ameaçando-os com a miséria se ousarem eleger o Syriza. Este é o combate onde se irá decidir o futuro das dívidas soberanas dos países “periféricos”, a arquitectura do euro, o papel do BCE e onde se terá de recolocar em discussão o “Tratado Orçamental”, nunca referendado, que pretende condenar os países à austeridade eterna. É por isso que nunca nos fez tanta falta uma democracia, um governo nacional e um Presidente. Por agora, temos isto.

jvmalheiros@gmail.com