O Arúspice
As peças em análise são duas, ambas publicadas no segundo dia do ano: um artigo de opinião, intitulado “Estabilidade e prosperidade na zona euro”, e uma entrevista concedida ao jornal económico alemão Handelsblatt.
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As peças em análise são duas, ambas publicadas no segundo dia do ano: um artigo de opinião, intitulado “Estabilidade e prosperidade na zona euro”, e uma entrevista concedida ao jornal económico alemão Handelsblatt.
Para tornar a nossa tarefa mais difícil, o artigo de opinião de Mario Draghi começa por um paradoxo, o de que a existência de uma união monetária sem união política — em geral apresentado como o grande problema do euro — é afinal um mal entendido. Segundo Draghi, essa união política já existe e foi ela que permitiu salvar o euro. É normal que um banqueiro central seja obscuro, mas aqui Draghi está apenas a ser sofístico. A “união” a que Draghi se refere não é bem uma união. É uma unidade: “os laços entre estados-membros, tudo o que eles investiram coletivamente”, como escreve a determinado momento. Mas isso não se passa por haver uma União Política europeia, — ou seja, uma democracia europeia — mas antes porque os países do euro se amarraram uns aos outros e romper com esses laços pode ser demasiado doloroso.
Ficar no euro apenas porque sair é pior, porém, só resolve as coisas no curto prazo. E aqui Draghi introduz uma ideia que, no meio de todo o linguajar de banqueiro central, é de uma enorme simplicidade. Diz ele: “os membros do euro têm de estar melhor dentro do que aquilo que estariam fora”.
É inacreditável como foi necessário chegar ao ano V da austeridade, depois de todo o sofrimento a que fomos sujeitos, para que finalmente alguém mencione esta ideia tão simples. O euro só vale a pena se toda a gente beneficiar dele. A Alemanha, a Grécia, Portugal, todos e cada um dos países do euro e não apenas uma parte deles, têm de sentir que estão melhor dentro do euro do que fora. Tão estupidamente evidente que há quem sinta a necessidade de mascarar isto em camadas de linguagem complicada ou esconjurar através do moralismo austeritário. E, no entanto, esta ideia simples é a ideia de base do projeto europeu desde o seu início.
Da entrevista ao jornal alemão retiro três coisas importantes para o nosso curto, médio e longo prazo. Primeiro: haverá ação para combater a deflação na Europa, provavelmente comprando dívida dos estados já no mês de janeiro. Segundo: não haverá saídas da zona euro, nem depois das eleições gregas. Terceiro: um dia será necessário falar de eurobonds, mas só depois de construir confiança entre os parceiros europeus.
No meio de toda esta racionalidade, há uma coisa curiosa. A certa altura Mario Draghi refere-se às suas obrigações e responsabilidades, e o jornalista diz-lhe que “esse discurso é demasiado prussiano para um italiano”, ao que Draghi replica que “cumprir com as suas obrigações não é uma peculiaridade dos alemães”.
Isto significa que o nosso grande risco, para o futuro, não está na impossibilidade técnica de resolver os problemas económicos europeus. Ele continua a ser o mesmo que nos enterrou nesta crise: a dissonância cultural entre os países do centro e os da periferia. Se houver azar durante o próximo ano, é daí que ele virá.