A farsa que os espanhóis amam e odeiam

Dizia tratar Aznar por “José” e andava em farras com membros do Governo. A história de Francisco Nicolás corre o risco de entrar na galeria dos mitos. E leva a Espanha a confrontar-se com os vícios do poder.

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"Afinal não era Juan Carlos I quem esteve a almoçar em Ribadeo.” Assim é o título da crónica de 15 de Agosto publicada na Voz de Galicia sobre a anunciada visita de um membro da Casa Real Espanhola à pequena vila da província de Lugo, no Norte da Galiza. A localidade de dez mil habitantes mobilizou-se com a notícia de que Juan Carlos ou, o recém-monarca, Felipe VI, poderia rumar a um restaurante perto da ria de Ribadeo, onde estava marcado um importante almoço. Reza a mesma crónica que em redor do restaurante San Miguel “se contavam oito escoltas com quatro carros”, adivinhando a chegada de uma personalidade importante.

O autarca de Ribadeo, Fernando Suárez, dirigiu-se ao local para apenas encontrar um jovem imberbe. A crónica apresentava-o da seguinte forma: “Tratava-se de F.G., militante do PP [Partido Popular]. Qual é a sua relação com a Casa Real? Segundo algumas informações, serve de ligação entre a Casa Real e o Governo do Estado.” À apreensão dos presentes que se depararam com o miúdo segue-se, de imediato, a prova dos nove: “Com efeito, durante a sua conversa com Fernando Suárez atendeu uma chamada da vice-presidente do Governo.” Francisco Nicolás Gomez chegava aos jornais.

A subida de Fran — como gosta de ser chamado — à ribalta mediática dá-se alguns meses mais tarde, a 14 de Outubro, quando foi detido numa rua de Madrid, com a acusação de se ter feito passar por assessor do Governo espanhol e por agente dos serviços secretos, e por suspeita de chantagear um empresário. À polícia, o jovem de 20 anos contou uma mirabolante história que o dava como mediador de negócios, assessor de políticos influentes da capital espanhola, agente secreto e até colaborador da Casa Real. Nos seus perfis nas redes sociais, desfilavam fotografias suas com algumas das mais poderosas figuras da vida pública espanhola. Pouco mais de um mês após a detenção, Nicolás dizia ao El Mundo que tinha mensagens de mais de 200 jornalistas nacionais e internacionais que o queriam entrevistar.

Agora, toda a Espanha tenta separar a verdade da fábula. Para conhecermos a história do “pequeno Nicolás”, entramos em terreno movediço. Há quem acredite que quando a verdade for alcançada irá haver responsabilidades a atribuir. Novelas e ficções à parte, a saga de Nicolás é também um retrato de como se entra e se triunfa nas esferas do poder.

Pouco se sabe, com a certeza dos factos, acerca da infância de Francisco Nicolás Gómez Iglesias, nascido a 18 de Abril de 1994. Uma das primeiras informações que circularam foi a de que Nicolás seria neto de Vicente Gómez Iglesias, um ex-capitão da Guardia Civil que participou na tentativa de golpe de Estado de 23 de Fevereiro de 1981, quando um grupo de oficiais tomou o Congresso dos Deputados em Madrid durante um plenário. Apesar da coincidência dos apelidos, esta tese não foi confirmada. Dele também se chegou a dizer que seria um filho ilegítimo do próprio rei Juan Carlos I e que tudo não passaria de uma manobra da Casa Real para o descredibilizar na eventualidade de ele vir a desejar ser reconhecido.

O mais provável é que o “pequeno Nicolás” seja apenas um “filho” do próprio sistema que rege a vida política e empresarial espanhola. Algo que lhe é reconhecido de uma forma geral é o gosto pela atenção, sobretudo aquela que envolve as câmaras da televisão. Desde que foi detido, a sua cara tornou-se uma das mais conhecidas em toda a Espanha, mas a sua relação com a fama havia começado quase uma década antes.

Foi na noite de 2 de Abril de 2005, quando o miúdo de dez anos via pela televisão uma multidão na Praça Colón no centro de Madrid. Algo de importante tinha acontecido e Nicolás queria fazer parte disso. Obrigou então os pais a deslocarem-se até ao epicentro da acção e, sobretudo, das câmaras. O resto está conservado na Internet. Imagens da Telemadrid mostram, no meio da multidão, um jovem bastante compenetrado, com olhar fixo na objectiva, aguardando pacientemente o seu momento. Por fim, Nicolás fala pela primeira vez em frente a uma câmara, demonstrando desde logo um grande conforto e segurança. Falta apenas dizer que toda a comoção tinha sido gerada pela morte de João Paulo II.

O episódio é narrado pelo jornalista David Enguita no seu livro Manual para Convertirte en Pequeño Nicolás, publicado em Novembro. Em resposta por email às perguntas da Revista 2, Enguita faz questão de frisar que não são amigos, apenas “companheiros de trabalho”. Travaram conhecimento em 2009, quando Nicolás começou a participar no seu programa de rádio, para o qual “vinha recomendado por pessoas das Nuevas Generaciones do PP”, a estrutura juvenil do partido. Enguita recorda as primeiras impressões: “Chamava a atenção pela sua forma de vestir com fato, gravata e o cabelo muito penteado, ao início algo não encaixava, não é comum que uma pessoa tão jovem tenha essa forma de se arranjar.”

O livro de Enguita baseia-se naquilo que ele próprio testemunhou junto de Nicolás. Admitindo que se sentiu cativado pela sua “lábia”, escreve: “Sabia melhor o programa eleitoral do PP que o próprio Mariano Rajoy.” Reconhece que publicou o livro “porque os meios de comunicação em Espanha estão a falar das suas façanhas”, mas também porque pretende que “todos conheçam a sua forma de ser e como chega realmente a estes círculos de poder”. É o próprio autor, ele também um jovem que divide o tempo entre a rádio e a televisão, que se antecipa aos potenciais críticos, logo nas primeiras linhas. “Começo este livro por dizer que sei que muitos, neste momento, me chamam interesseiro, oportunista e muitas outras coisas que vos passam pela cabeça… pode ser que tenham razão. Mas garanto-te que este manual que apresento é tão útil que podes alcançar um futuro produtivo e mediático se o seguires na sua essência.”

Apesar do oportunismo que possa admitir, Enguita não duvida de que Nicolás terá ficado agradado com a publicação do livro. “Ele gosta de ser o centro das atenções em tudo, e também não o deixo ficar mal”, diz-nos. No Manual, o jovem jornalista apresenta uma visão ambivalente de Nicolás, ora chamando-lhe “ídolo” e justificando as acusações que lhe são feitas, ora dando a entender que manietava as pessoas que o rodeavam. “Fran tem uma filosofia que é ‘de todos se pode aproveitar ou retirar algo’. E por isso tinha tanta lábia e parecia tão bom, porque nunca sabia quando ia poder usar-te.”

O traço que mais impressionou Enguita era a facilidade com que Nicolás conseguia entrar nos mais variados eventos, e parece ter sido essa uma das principais razões para ter escrito o livro — que contempla um capítulo dedicado apenas a fornecer dicas de como penetrar em vários tipos de acontecimentos. O ponto alto foi a presença do jovem na cerimónia de coroação de Felipe VI, em Junho, cujas imagens televisivas o mostram a beijar a mão do novo monarca. Segundo o El País, o nome de Nicolás não constava na lista de convidados, mas o jovem terá assegurado a sua presença como acompanhante da empresária Catalina Hoffman.

Mas antes de tudo isto há o percurso de Nicolás na órbita do PP e da vida política madrilena. Apesar da proximidade ao partido de centro-direita e à sua estrutura juvenil, Nicolás não chegou a estar filiado. A sua porta de entrada foi, então com cerca de 15 anos, a Fundação para a Análise e Estudos Sociais (FAES), o think tank de pensamento político ligado ao partido criado no final dos anos 1980 pelo ex-presidente do Governo, José María Aznar — a que actualmente preside. Aznar, a quem Nicolás diz tratar por “José”, é uma das personalidades que fazem parte do “álbum” de conquistas fotográficas do jovem, assim como a sua mulher e actual autarca de Madrid, Ana Botella. “Com José, a minha relação não era de amizade, mas estive na sua casa de Guadalmina várias vezes para o cumprimentar e almoçar”, disse Nicolás numa entrevista ao El Mundo.

Na FAES, Nicolás tornou-se próximo do secretário-geral da altura, Jaime García Legaz, actual secretário de Estado do Comércio do Governo do PP. O seu trabalho estava relacionado sobretudo com a organização de eventos do organismo, como debates e apresentações de livros. Nessa altura, Nicolás era apreciado pela forma como conseguia mobilizar jovens para participarem nessas iniciativas, durante as quais aproveitou para tirar as fotografias que documentariam, posteriormente, a sua influência. A Aznar e a Legaz juntavam-se a líder da distrital de Madrid do PP, Esperanza Aguirre, o presidente da Confederação de Empresários de Madrid, Arturo Fernández, a vice-presidente do Governo, Soraya Sáenz de Santamaría, e até o próprio Mariano Rajoy, entre outros. Aos poucos, Nicolás foi “coleccionando” selfies fora do mundo político, com a inclusão de um executivo da Google e do futebolista Radamel Falcao, na época ao serviço do Atlético de Madrid.

Na mesma proporção que crescia a sua agenda de contactos, crescia também a ambição de Nicolás, cada vez mais próximo dos círculos de poder. Tão próximo como é possível a um miúdo que, em 2011, sobe à varanda da sede do PP para festejar a maioria absoluta que o partido tinha acabado de conquistar, lado a lado com o núcleo duro da campanha. “Eu era algo como o miúdo do PP”, disse durante uma entrevista ao El Mundo.

E a partir daqui, tudo se torna mais discutível e problemático. Passam a coexistir, em simultâneo e de forma excludente, a versão que ele próprio tem dado e a posição das entidades oficiais, que tudo negam.

Nicolás tem afirmado que colaborou com o Centro Nacional de Inteligência (CNI), com o Governo e com a Casa Real, tendo assumido o papel de mediador em várias questões. Desde a questão catalã, passando pelo caso de fuga ao fisco do ex-presidente do governo catalão Jordi Pujol, até ao processo de corrupção que envolve a infanta Cristina, funcionava como uma espécie de joker omnipresente em alguns dos mais importantes assuntos de Estado.

As três instituições afastaram qualquer ligação ao jovem. Um antigo colaborador da Casa Real diz, sob anonimato, à Revista 2 que decidiu investigar se havia alguma verdade nas palavras de Nicolás e apenas descobriu que se trata de um “caradura”, um cara-de-pau. “Ele joga com mentiras e meias verdades e algumas delas fazem dano. Utilizava essas fotos e esses contactos para dizer que era verdade, que trabalhava para eles e que poderia conseguir coisas que na verdade não podia”, conta-nos.

A mesma fonte mostra-se convicta de que Nicolás teria de ter contado com a ajuda de um “padrinho”. “Quando se conhecer tudo e se souber o que está a ser investigado pela polícia, irá haver gente a cair”, assegura.

Provada ficou, porém, a relação próxima entre Francisco Nicolás e o secretário de Estado do Comércio, García Legaz. Fotografias e conversas na rede WhatsApp que vieram a público revelaram que os dois não só eram amigos de farras em badaladas discotecas madrilenas, como também discutiam negócios. Nicolás servia frequentemente de ponte entre empresas que tinham interesse em dialogar com o governante. Num dos casos, o jovem mediou reuniões entre Legaz e um fundo de investimento chinês que pretendia investir no falhado projecto da Eurovegas — um empreendimento megalómano de casinos em Espanha idealizado pelo milionário Sheldon Adelson, que acabou por abandonar a ideia.

Nicolás acolheu em várias ocasiões este papel de “facilitador” de negócios, cargo para o qual os seus contactos — ou a aparência de os ter — na cúpula da política espanhola seriam preciosos. Mas foi também por esta via que o “pequeno Nicolás” se viu enredado nas malhas da justiça.

O jovem logrou convencer o empresário Javier Martínez de Lahidalga de que era assessor da vice-presidente do Governo e que poderia interceder a seu favor junto do Executivo para que facilitasse a venda de uma propriedade em Toledo. Para isso, Nicolás utilizou todo o tipo de documentação — que a polícia afirma ser falsificada — para provar que trabalhava realmente para o gabinete de Soraya Sáenz de Santamaría. O alarme soou junto do Governo que, em poucos dias, fez chegar o caso à unidade de Assuntos Internos da polícia. Bastou uma pesquisa rápida na Internet para descobrir as ligações de Nicolás a “relevantes pessoas da política em Espanha, bem como importantes empresários, jornalistas, funcionários públicos, etc.”, segundo os autos do processo, citados pelo El País.

Daí até à detenção, o caminho foi curto e rápido, com o jovem a ser detido precisamente quando se deslocava para uma reunião com o empresário. Ao longo de quase nove horas, o jovem é interrogado pela procuradora e conta-lhe a sua versão dos factos. A narrativa deste estudante de Direito no elitista Centro Universitário de Estudos Financeiros é a de que a sua detenção se deve ao facto de ter tido acesso a muita informação do Estado e que agora é considerado um empecilho que deve ser descredibilizado.

“Esta magistrada não consegue compreender como é que um jovem de 20 anos só com a sua conversa pode aceder aos locais e aos actos a que acedeu, sem que ninguém alertasse para a sua conduta desde o início”, concluiu a própria.

Um exame forense realizado na mesma ocasião apontava para a observação em Nicolás de uma “imaginação florida delirante de tipo megalomaníaco”. Com efeito, foram muitos os que compararam a história do “pequeno Nicolás” à de Frank Abagnale, celebrizada no filme Apanha-me se Puderes, protagonizado por Leonardo DiCaprio, e que sofria precisamente de uma perturbação de personalidade. Há, porém, uma diferença importante entre a perturbação delirante, como é apontado pelo diagnóstico, e a simples perturbação de personalidade.

O médico psiquiatra Diogo Guerreiro admite que qualquer análise que possa fazer terá de ser cautelosa, uma vez que não conhece o caso de Nicolás em profundidade, mas nota uma importante contradição. “O pequeno Nicolás parece estar envolvido em burlas e esquemas que visavam utilizar a sua suposta posição para benefício pessoal. Ora, isto não é típico de uma psicose, como na perturbação delirante”, explica à 2. Esta trata-se de uma doença psiquiátrica “em que a pessoa não tem controlo sobre aquilo que faz”, diz Guerreiro, que faz uma analogia com a gripe: “Não tem objectivo nenhum. Tem os seus sintomas, que é o delírio megalomaníaco, mas não há nenhum objectivo.”

Mais consistente com aquilo que é conhecido do percurso de Nicolás são as perturbações de personalidade de tipo narcísico e anti-social. “São traços de personalidade exagerados, que podemos considerar normais em pequenas quantidades, mas quando se tornam predominantes criam uma personalidade diferente da média estatística.” O tipo narcísico aparece associado a “indivíduos presunçosos e arrogantes, que sobrestimam as suas capacidades e exageram os seus feitos”, explica o psiquiatra. Já na perturbação de tipo anti-social, o padrão é a “incapacidade de ser empático, não conseguindo avaliar os sentimentos dos outros” e uma “ausência de culpabilidade ou remorsos”. A mesma pessoa poderá apresentar os dois tipos, nota Diogo Guerreiro.

Uma outra diferença particularmente importante para a reconstrução do caso de Nicolás era a boa impressão causada pelo jovem junto dos seus interlocutores, como presenciou David Enguita. “Nas perturbações de personalidade, uma característica destes dois tipos é que se tratam de pessoas que têm tendência para ser manipuladoras, para dramatizar (…) são pessoas muito sedutoras no contacto inicial”, observa o médico.

Na origem das perturbações de personalidade tem mais peso o percurso de vida da pessoa face ao factor genético ou biológico. “É muito comum [estas pessoas] terem traumas com violência durante a infância, situações de abuso ou negligência”, diz Diogo Guerreiro.

Sobre Nicolás, muito fica em aberto e abundam as teorias abonatórias e acusatórias acerca da sua história. Em Espanha, entre os que vibram com a história e os que a condenam, não há muito espaço para a indiferença. Nas ruas de Madrid vende-se já merchandising em torno do “pequeno Nicolás”, com destaque para o caganer (pequenas estátuas muito populares de personalidades em posição de defecação). O sociólogo Jorge Benedicto Millán considera o caso “anedótico”, mas apercebe-se dos ingredientes que o tornam popular. “Aparece num ambiente de grande alarme social por causa da corrupção e tem uns traços que fazem com que os meios de comunicação social possam jogar muito com ele — aproxima-se muito da frivolidade, da revista, etc.”, diz à 2 por telefone a partir da capital espanhola.

No entanto, há “problemas graves” da democracia espanhola que o aparente fait divers não consegue esconder. O sociólogo refere “a falta de responsabilização dos titulares de cargos públicos” como um deles. “Os cargos públicos em Espanha não têm uma necessidade de responder por comportamentos que, apesar de não serem ilegais, não parecem, à primeira vista, cobrir todos os requisitos da honestidade política”, explica.

Uma outra dimensão quase omnipresente do princípio ao fim deste caso tem que ver com o peso das relações de amizade na gestão da vida pública. “Deveria reforçar-se a lógica institucional frente à lógica pessoal. É isso que favorece a proliferação da corrupção.”

Independentemente do desfecho, Francisco Nicolás foi, com toda a certeza, uma das personalidades do ano e promete continuar a agitar a vida pública espanhola em 2015. Depois de ser ouvido pela polícia, a juíza de instrução decidiu não aplicar a prisão preventiva, por considerar não haver perigo de fuga. Entretanto, a vida de Nicolás tornou-se bem mais recatada, sendo raras as grandes farras pela movida madrilena. Restam-lhe as entrevistas que tem dado a alguns dos principais canais de televisão, em que reafirma a sua defesa e ameaça revelar importantes segredos de Estado. Sobre ele continua a acusação de roubo de identidade e falsificação de documentos. Se ao “pequeno Nicolás” tudo lhe falhar, há algo com que poderá sempre contar, como nos diz o ex-colaborador da Casa Real: “Em Espanha, sempre gostámos muito dos impostores.”

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