“Junte livros, misture bem e obtenha uma biblioteca"

Desfez-se do que não era essencial e ficou com a casa cheia. Ana Marques Pereira colecciona livros sobre alimentação, cozinha e mesa. Um trabalho que diz que não tem fim

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Ainda que se seguissem as instruções, nunca conheceríamos o verdadeiro sabor da sopa dourada de nata que se comeria no século XVII. Esta receita é tirada do primeiro livro português de cozinha que se conhece, Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, “Mestre de Cozinha de Sua Majestade”. O livro tem receitas de sopas a doces, passando por pratos de peixe e de carne, e ementas várias para oferecer em banquetes. Ana Marques Pereira tem mais do que uma edição deste livro, a mais antiga é uma terceira edição de 1693. Depois, tem a primeira edição do segundo livro de cozinha publicado em português, Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, de Lucas Rigaud, publicado em 1780, que começa assim: “O que me obrigou a dar á luz esta obra foi ver hum pequeno livro, que corre com o titulo de Arte de Cozinha, escrito no idioma Portuguez; o qual he taõ defeituoso, que sem lhe notar os erros, e impropriedades em particular, se deve rejeitar inteiramente como inutil, e incompativel com os ajustados dictames da mesma Arte.”

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Ainda que se seguissem as instruções, nunca conheceríamos o verdadeiro sabor da sopa dourada de nata que se comeria no século XVII. Esta receita é tirada do primeiro livro português de cozinha que se conhece, Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, “Mestre de Cozinha de Sua Majestade”. O livro tem receitas de sopas a doces, passando por pratos de peixe e de carne, e ementas várias para oferecer em banquetes. Ana Marques Pereira tem mais do que uma edição deste livro, a mais antiga é uma terceira edição de 1693. Depois, tem a primeira edição do segundo livro de cozinha publicado em português, Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, de Lucas Rigaud, publicado em 1780, que começa assim: “O que me obrigou a dar á luz esta obra foi ver hum pequeno livro, que corre com o titulo de Arte de Cozinha, escrito no idioma Portuguez; o qual he taõ defeituoso, que sem lhe notar os erros, e impropriedades em particular, se deve rejeitar inteiramente como inutil, e incompativel com os ajustados dictames da mesma Arte.”

Na biblioteca de Ana Marques Pereira não se descobrem apenas tradições de cozinha que estavam perdidas, mas também como é que essas tradições se foram transmitindo e modificando. É uma biblioteca que, livro a livro, se fez como uma escavação de um imenso terreno arqueológico e que agora, a partir dos achados, deixa ver como se comeu ao longo dos tempos.

Os dois primeiros livros de cozinha portugueses estão, junto com os livros mais antigos e raros que possui, nas prateleiras junto à secretária, ocupando um lugar central do escritório, a parte principal da sua biblioteca. É no escritório que tem os livros de receitas – impressos e manuscritos. É aqui que estão não só os livros de história de cozinha e da alimentação, mas também de história da mesa e de etiqueta. Compra livros de ourivesaria ligada a serviços de mesa assim como compra livros de arquitectura que mostram como foram mudando as concepções do espaço da cozinha nas casas. Tem livros portugueses e muitos mais estrangeiros, dos países europeus com maior produção de estudos sobre gastronomia e história da alimentação.

Na divisão ao lado do escritório tem os livros de história geral – de Portugal e internacional – e de história da medicina, especialmente naquilo em que a medicina se toca com a alimentação.

Tanto mudou ao longo dos séculos – a qualidade da água, a origem e fabrico dos ingredientes, os instrumentos de cozinha, a arte de cozinhar, e até o nosso paladar – que realmente não podemos saber a que saberia um prato do século XVII, XVII ou XIX. Mas a biblioteca de Ana Marques Pereira é um lugar – e não haverá muitos em Portugal – onde podemos chegar perto de o imaginar. Imaginar, afinal, só é possível com conhecimento. E é justamente isso – conhecimento e imaginação – que fez com que Ana Marques Pereira construísse uma biblioteca temática de cerca de cinco mil volumes e que continue a construí-la.

Chegou a um ponto em que um dos seus critérios para saber se um livro antigo nesta área é raro ou não é ver se ele já existe na sua biblioteca. Se ainda não está na sua biblioteca, provavelmente é raro. Às vezes compra livros repetidos, porque é impossível saber de memória tudo o que tem.

À satisfação de encontrar um livro, segue-se o desejo de procurar o próximo. Não pelo objecto, pela sua antiguidade ou raridade, mas porque, de repente, um livro pode trazer inesperadamente um pedaço de informação que lhe faltava para completar um cenário. “Pode até não ser um livro importante, pode ser, por exemplo, uma revista, que tem uma publicidade ou um artigo que me dá um pedaço de informação que não tinha – e isso dá-me tanto prazer como o objecto mais raro”, diz. “O que é preciso é ir juntando mais uma pedrinha para a construção de uma ideia.”

Aprendeu, por causa da sua biblioteca, que as ideias que temos como certas muitas vezes se provam erradas e que os conceitos de hoje não são os de amanhã. Já várias vezes se enganou. A biblioteca corrige-a.

Continua a acreditar que os livros abrem horizontes. Nesse sentido, e embora se tenha desfeito dos livros de romances que tinha para arranjar espaço para os livros de gastronomia e de história da mesa, há semelhanças: no gesto, no prazer, na vontade de continuar a ler.

Não acontece com todos os livros, mas de vez em quando aparece um que contém não só a possibilidade de se conhecer algo que não se sabia antes, mas de abrir uma porta para todo um novo caminho de investigação. Quando isso acontece e descobre um universo novo, seja de um sabor ou de um cheiro, isso vai implicar, é claro, comprar mais livros. “Não tem fim – é isso que é bom.”

 

Um hobby para uma vida

O pai de Ana Marques Pereira recebia o ordenado à semana – como recebiam quase todos os trabalhadores da Covilhã naquela época, quando ainda era uma cidade industrial – e, numa espécie de efeito dominó, os miúdos recebiam semanada em vez de mesada. Ana Marques Pereira lembra-se perfeitamente de um dia pedir ao pai que lhe desse um extra na semanada – só para livros. Foi assim que começou a comprar – livros proibidos passados debaixo do balcão, romances que devorava e que depois partilhava muitas vezes com o pai, que tinha entretanto deixado de comprar. Em casa, tinham uma grande estante de livros e isso era já uma biblioteca.

Foi em Lisboa, muito mais tarde, enquanto estudava e começava depois a exercer medicina, que começou a frequentar alfarrabistas. Viam-se poucas mulheres nos alfarrabistas (e ainda continuam a ver-se poucas). Interessou-se, durante algum tempo, por etnografia e por livros sobre Lisboa. A identidade da sua biblioteca – e a força para tratar dela transformando um hobby numa actividade que tomou conta da sua vida – só apareceu nos anos 1990, porque um amigo a desafiou a ajudá-lo a escrever um livro sobre a cozinha da família real (foi publicado com o título Mesa Real). Ela acabou por escrevê-lo sozinha, nas horas vagas que sobravam das muitas dezenas de horas semanais que trabalhava no hospital, e nunca mais quis parar. Publicou vários livros, o último, sobre licores de Portugal, publicou-o sozinha sem saber se alguma vez vai recuperar o dinheiro.

Por causa da biblioteca e dos projectos para escrever, deixou de ter férias: viajava para comprar livros e fazer investigação. Nada disso, garante, foi ou é um sacrifício.

 
Horror ao vazio


A biblioteca de Ana Marques Pereira fica na casa dela, num apartamento de tectos altos e trabalhados, num prédio antigo entre o Chiado e o Cais do Sodré. Quando se mudou, os amigos perguntaram-lhe como iria encher a casa. Parecia de facto enorme só para ela e para o marido.

O apartamento tem uma disposição em quadrado e dá a sensação de se estar a andar à volta. Os corredores são labirintos de onde podemos não mais sair: de uma divisão a outra, passam-se por mais livros, revistas, colecções de efémera - como anúncios de café ou rótulos de alimentos -  e de todo o tipo de objectos relacionados com cozinha e alimentação.

A sala, ampla e com o charme próprio da decoração com mobiliário antigo, faz lembrar lojas de velharias, daquelas que são irresistíveis na infância, onde o tempo parece que não vai terminar. Apenas os sofás estão reservados, vazios. Há livros por toda a parte. Numa parte da sala, uma grande mesa está repleta de objectos, grande parte deles, frascos de licor que colecciona. “Eu devo ter horror ao vazio”, diz. “Já não cabe mais nada e ainda tenho muitas coisas em armazém.”

Para ela, a colecção de livros e as outras colecções – seja de utensílios de cozinha ou de efémera – estão ligadas. “Se me saísse o Euromilhões, fazia uma fundação onde pudesse expor todos estes objectos e onde toda a gente pudesse consultar os livros.”

Estar na casa de Ana Marques Pereira é como estar num museu pequeno ou num gigante gabinete de curiosidades, um pouco menos organizado, é certo, mas onde a cada movimento de cabeça se vê qualquer coisa que nos remete para um mundo não tão distante, mas já perdido.

Depois de mostrar o apartamento, regressa ao escritório, para mostrar alguns manuscritos: vários cadernos de receitas desde o século XIX até à segunda metade do século XX. Alguns não têm data, mas pode-se perceber de que épocas são pela ortografia. Alguns começam com uma letra e terminam com outra, porque terão passado de mão em mão como herança de família. Um deles tem partes escritas em português e outras em inglês e faz um inventário de tradições goesas. Num outro, descobre-se uma receita de “costeleta de porco Potsdam”: “Vê-se que pertenceu a pessoas que viveram na Alemanha”, diz. “Através dos manuscritos consegue-se saber sobre a vida das pessoas, quem seriam.”

Entre os manuscritos, estão, já encadernados, o livro de receitas da sua mãe e o seu próprio, como se soubesse que um dia poderão ir parar às mãos de um futuro coleccionador.
 

 

Amanhã : a biblioteca particular de José Ferrão.