Muito orgulho gay e algum preconceito
Um dos prémios Arco-íris 2014, da Associação ILGA Portugal, foi atribuído a um banqueiro português que lidera o HSBC no Reino Unido. É fácil perceber a escolha: um banqueiro que assume a sua homossexualidade ao mais alto nível é visto como um exemplo. Mas exemplo de quê e para quem? Para quem aspira chegar a banqueiro, para quem deseja mas não ousou assumir a sua homossexualidade, ou para quem acha que não se importaria nada de dizer ao mundo que é homossexual se um dia chegasse a banqueiro, em Londres? Um operário da construção civil que fizesse, na sua aldeia, perante os seus conterrâneos, exactamente o mesmo que fez o banqueiro António Simões, seria sempre um exemplo de muito maior coragem e aquele que importaria de facto mostrar. Não são obviamente os banqueiros em Londres quem mais sofre — se é que sofrem alguma coisa — pela discriminação baseada na orientação sexual. Só que o gesto de um simples operário não tem poder nem dignidade para ser amplificado. E dificilmente as suas palavras iriam soar bem na cerimónia. Provavelmente, iria descobrir-se que o herói premiado não tem outra aspiração senão largar os tijolos e o cimento, deixar a aldeia e ir viver em Lisboa, para poder passear no Chiado e frequentar os bares nocturnos do Bairro Alto e do Príncipe Real. Tudo aspirações legítimas e emancipadoras (não há aqui nenhuma ironia), muito conformes, aliás, ao roteiro gay friendly que o governo municipal, à semelhança do que fazem todos os governos das grandes cidades europeias, promove e publicita. Não por um compromisso civil para com as vítimas de discriminação, mas porque há uma elite homossexual que viaja muito, consome muito e instala-se mesmo no centro das grandes cidades (é, portanto, o turista ideal). De tal modo que o hedonismo consumista e a subjugação cosmopolita aotrendy se tornaram as representações comuns que grande parte da gente tolerante e liberal faz dos homossexuais. Actualmente, todas as grandes cidades europeias têm um bairro nobre e central, saturado de comércio, luxo e lazer, que é território conquistado pelos gays. Nestes lugares, respira-se toda a tolerância do mundo: são lugares de indiferenciação cultural, onde se exibe, como numa vitrina, a reificação dos corpos. Aí, instala-se uma liberdade sexual ilusória, já que a maior parte da gente sofisticada que por ali deambula sonha com outra coisa: sonha com a realidade dos corpos inocentes, que estão a milhas dali. Aquele lugar onde se faz a vida social está tão saturado de convenções, imagens e mercadorias, tão massificado culturalmente, que só serve para o potlach festivo, o gasto primitivo e religioso das noites e dos dias de folga. Ora, aqui começa uma questão — eminentemente política — suscitada pelo prémio atribuído ao banqueiro português da City de Londres, já que é difícil não associar esta escolha da ILGA (provavelmente foi sempre assim, mas quando se trata de um banqueiro a coisa torna-se mais óbvia) a uma imagem completamente despolitizada, muito trendy, de um cosmopolitismo frívolo, onde se reorganizam a homologação e o nivelamento totalitários do mundo por uma cultura de massa. Vislumbra-se aqui, em suma, essa indiferenciação cultural contra a qual podemos — e devemos — proclamar os direitos persistentes da intolerância política. Repito: da intolerância política. Não, certamente, à maneira heróica e cheia de furor e de imprecação de um Pasolini (porque outros são os tempos e há gestos que não são para imitar), não certamente proclamando o velhoslogan de que “o coito é político”, mas, ainda assim, não ignorando a lição fundamental de Foucault.
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Um dos prémios Arco-íris 2014, da Associação ILGA Portugal, foi atribuído a um banqueiro português que lidera o HSBC no Reino Unido. É fácil perceber a escolha: um banqueiro que assume a sua homossexualidade ao mais alto nível é visto como um exemplo. Mas exemplo de quê e para quem? Para quem aspira chegar a banqueiro, para quem deseja mas não ousou assumir a sua homossexualidade, ou para quem acha que não se importaria nada de dizer ao mundo que é homossexual se um dia chegasse a banqueiro, em Londres? Um operário da construção civil que fizesse, na sua aldeia, perante os seus conterrâneos, exactamente o mesmo que fez o banqueiro António Simões, seria sempre um exemplo de muito maior coragem e aquele que importaria de facto mostrar. Não são obviamente os banqueiros em Londres quem mais sofre — se é que sofrem alguma coisa — pela discriminação baseada na orientação sexual. Só que o gesto de um simples operário não tem poder nem dignidade para ser amplificado. E dificilmente as suas palavras iriam soar bem na cerimónia. Provavelmente, iria descobrir-se que o herói premiado não tem outra aspiração senão largar os tijolos e o cimento, deixar a aldeia e ir viver em Lisboa, para poder passear no Chiado e frequentar os bares nocturnos do Bairro Alto e do Príncipe Real. Tudo aspirações legítimas e emancipadoras (não há aqui nenhuma ironia), muito conformes, aliás, ao roteiro gay friendly que o governo municipal, à semelhança do que fazem todos os governos das grandes cidades europeias, promove e publicita. Não por um compromisso civil para com as vítimas de discriminação, mas porque há uma elite homossexual que viaja muito, consome muito e instala-se mesmo no centro das grandes cidades (é, portanto, o turista ideal). De tal modo que o hedonismo consumista e a subjugação cosmopolita aotrendy se tornaram as representações comuns que grande parte da gente tolerante e liberal faz dos homossexuais. Actualmente, todas as grandes cidades europeias têm um bairro nobre e central, saturado de comércio, luxo e lazer, que é território conquistado pelos gays. Nestes lugares, respira-se toda a tolerância do mundo: são lugares de indiferenciação cultural, onde se exibe, como numa vitrina, a reificação dos corpos. Aí, instala-se uma liberdade sexual ilusória, já que a maior parte da gente sofisticada que por ali deambula sonha com outra coisa: sonha com a realidade dos corpos inocentes, que estão a milhas dali. Aquele lugar onde se faz a vida social está tão saturado de convenções, imagens e mercadorias, tão massificado culturalmente, que só serve para o potlach festivo, o gasto primitivo e religioso das noites e dos dias de folga. Ora, aqui começa uma questão — eminentemente política — suscitada pelo prémio atribuído ao banqueiro português da City de Londres, já que é difícil não associar esta escolha da ILGA (provavelmente foi sempre assim, mas quando se trata de um banqueiro a coisa torna-se mais óbvia) a uma imagem completamente despolitizada, muito trendy, de um cosmopolitismo frívolo, onde se reorganizam a homologação e o nivelamento totalitários do mundo por uma cultura de massa. Vislumbra-se aqui, em suma, essa indiferenciação cultural contra a qual podemos — e devemos — proclamar os direitos persistentes da intolerância política. Repito: da intolerância política. Não, certamente, à maneira heróica e cheia de furor e de imprecação de um Pasolini (porque outros são os tempos e há gestos que não são para imitar), não certamente proclamando o velhoslogan de que “o coito é político”, mas, ainda assim, não ignorando a lição fundamental de Foucault.