Das ruas de São Paulo a Copacabana, o Brasil desenha-se em quadrinhos
A edição nacional de dois belos livros é o mote que acende a pergunta: o que está a acontecer no Brasil? Uma ebulição de vinhetas e pranchas, apoiada no crescimento económico do país, sem escolas e estéticas dominantes. O encontro do Brasil com a sua banda desenhada adulta.
A par deste reconhecimento simbólico e institucional, eis o que de facto importa: a qualidade das obras, a diversidade de estilos e temáticas, a invenção gráfica. A relação com o real. Copacabana nasceu dos passeios nocturnos de Lobo pelas calçadas, os bares e as boates do bairro de Copacabana, entre putas, traficantes e travestis. É uma banda desenhada a carvão e a tinta-da-china com o traço nervoso e redondo de Odyr, que avança na noite empurrada pelo trabalho e pelos sonhos de Diana, mulata e prostituta. Ficção e real, imaginação e trabalho de campo fundem-se e dão conta de uma cidade em transformação. Já Cachalote, num desenho fino e frágil como a escrita Daniel Galera, lança cinco histórias paralelas que nunca se ligam. Preenchem-nas os “combates” e as emoções de homens e mulheres (um estrela do cinema chinês, um casal, um escultor, um escritor e a sua ex-mulher, entre outras personagens) em geografias anónimas ou diversas (São Paulo, Europa), com o realismo a acolher o fantástico. A estes livros podiam juntar-se Risco e Cumbe, de Marcelo D’Salete, Morro da Favela, de André Diniz (também traduzido em francês e editado pela Polvo), Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo, de Pedro Franz, ou Tungsténio, de Marcello Quintanilha (publicado em Espanha). Razão para que se faça a pergunta: o que está a acontecer no panorama brasileiro dos quadrinhos?
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A par deste reconhecimento simbólico e institucional, eis o que de facto importa: a qualidade das obras, a diversidade de estilos e temáticas, a invenção gráfica. A relação com o real. Copacabana nasceu dos passeios nocturnos de Lobo pelas calçadas, os bares e as boates do bairro de Copacabana, entre putas, traficantes e travestis. É uma banda desenhada a carvão e a tinta-da-china com o traço nervoso e redondo de Odyr, que avança na noite empurrada pelo trabalho e pelos sonhos de Diana, mulata e prostituta. Ficção e real, imaginação e trabalho de campo fundem-se e dão conta de uma cidade em transformação. Já Cachalote, num desenho fino e frágil como a escrita Daniel Galera, lança cinco histórias paralelas que nunca se ligam. Preenchem-nas os “combates” e as emoções de homens e mulheres (um estrela do cinema chinês, um casal, um escultor, um escritor e a sua ex-mulher, entre outras personagens) em geografias anónimas ou diversas (São Paulo, Europa), com o realismo a acolher o fantástico. A estes livros podiam juntar-se Risco e Cumbe, de Marcelo D’Salete, Morro da Favela, de André Diniz (também traduzido em francês e editado pela Polvo), Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo, de Pedro Franz, ou Tungsténio, de Marcello Quintanilha (publicado em Espanha). Razão para que se faça a pergunta: o que está a acontecer no panorama brasileiro dos quadrinhos?
Uma ebulição tímida
“Durante um largo período o nosso mercado esteve inactivo, machucado. Não tínhamos uma boa distribuição, sofremos com anos de crise e dívida. Mas nos últimos dez, 15 anos, aconteceu algo que estimulou o meio”, responde Rafael Coutinho. O autor refere-se ao crescimento económico e à melhoria das condições sociais trazidas pelos governos de Lula da Silva. A ebulição artística e editorial em torno das HQ foi um produto dessa realidade. “Sim”, anui o crítico Érico Assis, mas com ressalvas: “Pense em 100 milhões de pessoas a quem nunca sobrou dinheiro e agora sobra. O mercado editorial apostou no aumento do consumo cultural provocado por essa mudança. Mas ainda é um aumento tímido. Penso que a grande novidade é o surgimento de mais canais para a produção de quadrinhos, porque autores sempre existiram”. Os novos “canais” têm uma importância que, para Lobo, não é nada supérflua. “A tecnologia gráfica embarateceu os custos da impressão”, sublinha o autor, que apresenta na Internet, semanalmente, o programa Quadrinhos para Barbados (com a produção de Daniele Pimentel). “Os softwares vieram facilitar a vida dos desenhadores. E não se pode esquecer que os blogues são plataformas de baixo custo para a publicação de histórias. Hoje é mais fácil arriscar, formar públicos e produzir quadrinhos."
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O trabalho da Companhia das Letras, da Panini (com o projecto da Graphic MSP, que adaptou as personagens da Turma da Mónica a outros tipos de histórias e de desenhos), de editoras independentes como a Narval ou Veneta, tem um eco relevante nas secções de cultura da imprensa generalista, em publicações como a revista Antílope, de São Paulo, e o jornal Suplemento, dedicados à ilustração e à crítica de BD. Multiplicam-se as oportunidades em projectos independentes e editoras, mas rareiam os autores que, no Brasil, vivem só da banda desenhada adulta. Face à timidez do mercado, a maioria ainda se dedica exclusivamente à ilustração.
Assim, e apesar da projecção de Cachalote e de Copacabana (que em breve será adaptada ao pequeno écran numa série de animação) e do reconhecimento do trabalho da dupla Fábio Moon e Gabriel Bá nos Estados Unidos, talvez seja cedo para falar de uma internacionalização da banda desenhada brasileira. “Há, sem dúvida, maior receptividade ao quadrinho da América do Sul no mercado europeu e dos EUA, e os nossos autores estão a aproveitar esse momento”, reconhece Érico Assis. “Mas o contexto do quadrinho autoral brasileiro ainda é muito esparso quando comparado com a indústria franco-belga, japonesa ou norte-americana." Marcelo D’Salete, que tem vindo usar a banda desenhada para recontar narrativas do contexto social e histórico do Brasil, é mais céptico. “Acho interessante ver artistas brasileiros no mercado internacional, mas não sei se é um processo forte e contínuo ou se apenas algo sazonal, ligado a outros factores, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas."
O livro é caro
Não se pode falar de uma escola, de um estilo, nem sequer de um género a unificar as obras apresentadas. O que as liga é uma história comum aos seus autores. Quase todos começaram a publicar histórias curtas, em fanzines e editoras independentes, antes de chegarem à edição de álbuns na Companhia das Letras, na Barba Negra (chancela da LeYa) ou na Conrad. “Essas editoras aperceberam-se da importância do sucesso da graphic novel no mercado anglófilo e ofereceram aos autores brasileiros a oportunidade de trabalharem nesse formato”, diz Érico Assis. Cachalote nasceu assim, como recorda Rafael Coutinho: “A Companhia das Letras já publicava os livros do Daniel [Galera] e queria criar um selo de quadrinhos. Lembro-me que não tinham nada muito estruturado, mas avançámos e ainda tivemos o apoio de uma produtora de cinema, com a qual o Daniel negociara os direitos de adaptação de um livro."
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Odyr Bernardi corrobora a importância do modelo da novela gráfica e a consequente enfâse no livro e na livraria, mas não sem um lamento, familiar liás aos mais atentos leitores portugueses de banda desenhada: “É uma tristeza, pois [esse modelo] foi acompanhado pelo total abandono da banca de revistas. Ou seja, praticamente nada de valor de quadrinho pode ser encontrados nas bancas. Isso é muito, muito ruim. O livro no Brasil ainda é vergonhosamente caro para o rendimento médio do brasileiro. Quando se investe quase que somente nesse formato, está-se a deixar de fora a maior parte da população brasileira."
Mas volte-se a essa geração de autores que trilhou caminhos semelhantes, utilizando a linguagem da banda desenhada sem a caução de cenas e estéticas. “Vejo neles uma voracidade em termos de referências que é própria do país. Como não temos indústria de quadrinhos, consumimos todas as outras. Vêem-se as influências da Marvel e da DC, do quadrinho autoral dos EUA, da fantasia franco-belga, dos experimentalistas italianos, espanhóis, argentinos, do mangá japonês. É uma miscigenação."
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A força desta “antropofagia” veio enriquecer uma paisagem antes solitariamente habitada pelo registo anárquico ou humorístico de Laerte, Angeli e Glauco que, diz Érico Assis, “ não perdeu vitalidade, continua a ter os seus descendentes”. Vingou uma pluralidade de opções de género e de estilo. Os desenhos de Rafael Coutinho inspiram-se na banda desenhada europeia, o traço de Odyr recorda o do americano David Mazzuchelli. O realismo duro das histórias de Marcelo D’Salete contrasta com o teatro de sombras cartoonesco das personagens André Diniz. Se há um ponto de vista que aflora a maioria destas BD, é aquele que se projecta sobre a vida dos brasileiros, na Avenida Atlântica, nas favelas do Rio ou nos subúrbios de São Paulo. Neste âmbito, o trabalho de Marcelo d’ Salete é dos que mais se destacam, reivindicando na banda desenhada um lugar para as narrativas da história negra no Brasil. “Quando comecei a ler quadrinhos, a ausência de histórias tratando a cultura negra não era impensada em nossa sociedade. Resultou de uma estratégia de apagamento. A elite brasileira sempre quis apresentar o Brasil como uma nação branca de herança europeia, mas ele é um país de maioria negra, com grande desigualdade social e altas taxas de homicídio, principalmente de jovens negros. Essa história, essa desigualdade, tem de estar nos quadrinhos.” Cumbe (2014) e Risco (2014) inscrevem-na, reflectindo, respectivamente, sobre a resistência dos negros escravizados no século XVII e a violência policial no século XXI.
Mas não se fale de movimentos, de uma banda desenhada genuinamente brasileira. Nenhum destes livros é porta-voz do que quer que seja. Só uma coisa é certa, nas palavras de Rafael Coutinho: “O Brasil está genuinamente interessado em quadrinhos e fazia muito tempo que não estava."