O fim não está próximo
Sempre estranhei que se pudesse tentar mobilizar gente com discurso apocalíptico: o planeta vai acabar, a democracia vai acabar, o estado social vai acabar. Não que, a manterem-se as tendências atuais, tudo isto não possa ser verdade. O problema está na diferença de escala entre cada um de nós e o conjunto das restantes coisas. Nós duramos pouco tempo; o planeta estava aqui antes de nós e ficará talvez para depois. A nossa história parece insignificante quando comparada com a História a que teimosamente pomos uma maiúscula para ficar maior ainda. Algumas pessoas podem angustiar-se com o resultado final. Para a maioria, parece que contamos demasiado pouco, quase nada, para podermos fazer a diferença.
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Sempre estranhei que se pudesse tentar mobilizar gente com discurso apocalíptico: o planeta vai acabar, a democracia vai acabar, o estado social vai acabar. Não que, a manterem-se as tendências atuais, tudo isto não possa ser verdade. O problema está na diferença de escala entre cada um de nós e o conjunto das restantes coisas. Nós duramos pouco tempo; o planeta estava aqui antes de nós e ficará talvez para depois. A nossa história parece insignificante quando comparada com a História a que teimosamente pomos uma maiúscula para ficar maior ainda. Algumas pessoas podem angustiar-se com o resultado final. Para a maioria, parece que contamos demasiado pouco, quase nada, para podermos fazer a diferença.
E passa-se o mesmo quando passamos para a escala intermédia. Nós somos pequenos, a crise é grande. Se nos parece que a economia está contra nós e o caos do país é demasiado grande para organizar, a reação natural é de desistência. Que poderíamos nós fazer? A mudança parece demasiado difícil, demasiado longínqua, demasiado complexa, demasiado arriscada para que a tentemos sequer. Se o fim está próximo, já não dá tempo, já não vale a pena, já não conseguimos. Uns deprimem, outros desistem, outros vão cuidar da vida. O sentimento do fim exacerba o desespero e o egoísmo entre nós.
Ora, as coisas devem ser vistas ao contrário: não pelo fim que ainda não sofremos, mas pelos princípios que deixamos. Digo “princípio” no seu sentido estrito de “começo” — as pontas soltas da nossa história que podemos ainda apanhar e seguir. Na verdade, a complexidade esteve sempre conosco. Os nossos problemas sempre pareceram intransponíveis. Durante milénios, a única forma de os encarar foi pensar que houvesse uma vida melhor depois da morte. Durante séculos não era sequer pensável viver sem escravatura; quando a abolição se tornou uma exigência, muita gente achou que não havia outra forma de organizar economias inteiras. E a lista de coisas que era “impossível” mudar é longa: era impossível viver sem tirania, era impossível viver sem castas, era impossível viver sem aristocracia, era impossível viver sem um deus único, era impossível viver sem exploração, era impossível viver sem desigualdade, era impossível viver sem domínio dos homens sobre as mulheres, era impossível viver sem colonialismo, era impossível viver sem violência.
Sim, as marcas desses passados estão ainda hoje conosco, ou são ainda realidade para demasiada gente. Mas muito do que era impossível tornou-se possível. Afinal era possível viver — e confortavelmente — sem escravizar o nosso próximo. Há cem anos, pertencer a um sindicato poderia ser arriscado; entretanto, países e indústrias inteiras aprenderam a negociar salários e tempos de descanso com os sindicatos — e a prosperar por isso. Onde era impossível viver sem um monarca absoluto comemora-se hoje já dois séculos das primeiras constituições. Onde o povo não estava preparado para viver sem um homem forte comemoram-se as primeiras gerações nascidas em democracia.
E tudo isso foi conseguido pelas tais pequeninas pessoas — nós e outros como nós. E muito mais será conseguido. Afinal, o começo está próximo e tu és indispensável.