Um lugar para estar com o resto do mundo
A biblioteca ocupa toda a casa de João Luís Lisboa e está viva. História, literatura, banda desenhada, uma biblioteca ecléctica. A razão é a mais simples: o prazer da leitura.
Talvez seja essa a biblioteca ideal: a biblioteca que nos afasta de nós próprios e simultaneamente nos aproxima.
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Talvez seja essa a biblioteca ideal: a biblioteca que nos afasta de nós próprios e simultaneamente nos aproxima.
Há muitas razões para João Luís Lisboa ter uma biblioteca que se espalha por todo o apartamento onde vive em Lisboa, e pelo outro onde já não vive: porque o seu trabalho implica ler, porque o seu trabalho – é historiador, professor universitário e investigador em História das Ideias e História do Livro – o leva a pensar o livro como objecto, porque cresceu com bibliotecas, tanto em casa da mãe como na do pai. Mas a razão mais relevante é apenas a do prazer da leitura.
É um coleccionador porque é um leitor. É o leitor que anda à procura de livros nos alfarrabistas ou na feira da ladra, às vezes sem querer nada de concreto. Anda à procura do que encontrar.
Um coleccionar pode ser um cego se for obsessivo e não tiver o que ele chama de “atitude de disponibilidade”.
O prazer da leitura, para ele, está ligado precisamente à liberdade da leitura. “Não leste o Anna Karenina?” é o tipo de comentário que parece querer dizer que há pessoas que sabem o que se “deve” ou não “deve” ter e ler. Desagrada-lhe o espírito de “aldeia gaulesa”: “Sei lá do que gostam os supostos amantes de livros. Sei do que eu gosto e do que gostam as pessoas de quem eu gosto.”
Tem, catalogados com a ajuda das duas filhas mais velhas, cinco mil livros de literatura e 11 mil de História, só neste apartamento. Já lhe perguntaram se lê os livros todos – e é uma pergunta que lhe parece conter logo uma censura. Mais uma vez, é como se implicasse que há uma forma certa de comprar livros e de os ler. Há livros que nunca lerá inteiros mas que consulta frequentemente. Há livros que relerá várias vezes porque “a cabeça tem coisas diferentes” a cada momento e então descobrirá algo novo num livro conhecido.
Muitos livros e três décadas depois de ter começado a sua biblioteca, continua a ter o mesmo prazer com um livro nas mãos: comove-se. Actualmente, passa muito tempo em Itália e faz muitas viagens de avião, entre cá e lá, a chorar e a rir: “Os livros têm esse poder. E eu divirto-me a ler e leio porque me divirto”, diz. “E mesmo quando leio por obrigação, por causa do meu trabalho, leio divertindo-me.”
Quando está em Itália, continua a comprar policiais italianos (tem várias colecções de policiais), e nunca deixa de se espantar com a forma como aqueles textos o transportam para a cultura do Sul do país e o deixam ver cenas que nunca veria de outra maneira: mulheres em cozinhas fazendo pastéis.
O apartamento que comprou há vários anos, porque precisava de uma casa maior para os livros, fica num andar alto e não se ouve o ruído das avenidas em baixo. Todas as paredes da sala, excepto uma, têm estantes com livros. Há prateleiras colocadas nas vigas do tecto ou no topo das portas, que foram sendo feitas ao longo do tempo por um marceneiro que o ajuda há muito tempo a resolver problemas de espaço. Como acontece noutros lugares com muitos livros, aqui deseja-se o recolhimento. Seria mesmo possível desaparecer aqui. “Uma biblioteca pode ser um lugar de isolamento”, diz. “Mas também pode ser um lugar de conversa. É uma forma de estar com o resto do mundo.”
Biblioteca de memórias
Conversamos junto da estante onde guarda os sermões, que foram importantes para ele quando estudou veículos de comunicação nos séculos XVII e XVIII. Mostra, como exemplo do seu interesse pela história e pela análise do livro como objecto, duas edições de um mesmo sermão (o Sermão da Puríssima Conceição da Virgem Maria Senhora Nossa, pregado em 1753 pelo Fr. José Malaquias e editado em 1754, o ano anterior ao terramoto de Lisboa) que diferem em certos pormenores físicos, como o tipo de papel. Quando entra luz directa pela janela larga, corre uma cortina sobre essa estante. “Isto podia ser um artigo sobre um maníaco”, brinca. Mas é uma mania curiosamente lúcida.
De onde nos sentamos, vê-se toda a literatura, poesia e ficção, que, aparentemente de forma milagrosa, conseguiu arrumar integralmente na sala. Depois, o escritório tem os livros de História, quer de Portugal quer mundial, e ainda os livros de política e da actualidade de cada momento da história que ele mesmo viveu. Há livros no hall de entrada e no corredor que vai dar a mais divisões, uma onde tem a banda desenhada, uma das primeiras colecções que fez mas que agora compra menos, outra onde tem várias colecções de revistas, tanto de literatura como de História, entre elas gazetas do século XVIII, tema também de investigações suas. No outro apartamento, tem os livros sobre Lisboa e Portugal e os livros de viagens.
“Não tenho uma colecção porque queria ter isto ou aquilo. São as coisas que me interessam e o que resulta daí é uma colecção.” Os interesses vão mudando e a biblioteca passa a ser não só um retrato de João Luís Lisboa agora, mas de quem ele foi e de quem eventualmente virá a ser. “É um espelho de interesses e gostos meus – embora um pouco embaciado, não é nítido.”
Há essa narrativa principal enquanto se anda pela casa-biblioteca. Depois, há os pequenos enredos. Levanta-se para ir buscar um livro do Rafael Alberti que está assinado pelo autor. Comprou-o há muitos anos em Barcelona, por acaso, numa livraria; era um livro recente que ainda não tinha lido. No mesmo dia, encontrou o próprio Rafael Alberti, ainda tinha o livro no bolso, e, por aquela coincidência, é um dos livros de que mais gosta na sua biblioteca.
Fala várias vezes do pai, de quem não herdou a biblioteca mas de quem herdou gostos e rotinas em redor dos livros. Aponta para a colecção Vampiro, no topo de uma estante da sala, perto da porta para a cozinha, que comprou quase inteira num alfarrabista e depois foi completando número a número. O pai, que tinha uma biblioteca mais pequena do que a sua mas mais feitio de coleccionador, tinha a colecção, e ele apercebeu-se de que ia refazendo partes da biblioteca da casa do pai.
Biblioteca de afectos
Da mãe, sim, herdou a biblioteca e incorporou-a na sua: muitos livros de literatura, a colecção das revistas Seara Nova. A parte da biblioteca da mãe sobre linguística ofereceu à universidade onde a mãe dava aulas. De um primo da mãe, professor de filosofia – um homem “rezingão”, com quem tinha uma relação por vezes difícil, mas que o “ajudou a pensar” – herdou muitos livros de literatura francesa. Outra biblioteca que incorporou na sua foi a de Alberto Ferreira, seu professor na universidade depois do 25 de Abril, um homem que tinha estado preso antes da revolução e que o tinha marcado logo no Liceu Camões, aonde ele ia assistir, sem sequer estar inscrito como aluno, àquelas aulas míticas. Gosta de ver as marcas de Alberto Ferreira e do primo da mãe nos livros. Remetem para as suas formas de ler, como se pudessem continuar a ensiná-lo.
A biblioteca cresceu porque pessoas de quem gostava partilharam livros com ele e agora cresce muitas vezes pelo desejo que tem de partilhar a sua biblioteca. Hoje em dia, compra muitos livros: não porque lhe interessam, mas porque sabe que podem interessar às filhas. Foram elas que fizeram as bases de dados da biblioteca do pai: uma dedicou-se à Literatura e a outra à História, conforme as preferências de cada uma. Sempre usaram esta biblioteca – liam, levavam livros, emprestavam a amigos. Há uns dias, João Luís Lisboa, encontrou o filho mais novo a brincar com os livros na sala. “Os meus filhos fazem parte deste universo”, diz. Nunca passou muito tempo a procurar e a comprar livros, mas passa muito tempo a arrumar, a limpar, a pensar como reorganizar e aumentar o espaço para livros novos. Essas rotinas fazem parte da casa e fazem parte do crescimento dos filhos como fizeram parte do crescimento dele. “O meu pai tinha conta aberta na Livraria Portugal e dizia que havia que ter os livros que eram necessários. Um livro não era uma coisa a mais, dizia. Acho que transmiti isso aos meus filhos.”
Sem que lhe pergunte, fala da possibilidade de deixar de haver livros, pelo menos como os conhecemos. É uma discussão que surge constantemente no mundo da edição e que não poderia deixar de fascinar alguém que estuda a maneira como a leitura foi mudando ao longo dos tempos.
Tem amor aos livros, aos objectos, com o seu peso, o seu toque, o seu cheiro. Quando pega num livro, tem um entusiasmo de primeira vez. E, no entanto, diz que não seria o fim do mundo se os livros desaparecessem, até porque os textos decerto continuarão. Não se sente a viver num lugar ameaçado nem num lugar único e reservado. Vive num lugar que não é infinito mas muito duradouro e onde o prazer de ler chegará para várias vidas.