Versos limpos

Gostar de Adília Lopes é uma manifestação de maturidade. Apenas os que se aceitam estão disponíveis para a honestidade, ainda que performática, da sua poesia. Apenas os que descortinaram o lado trágico das disciplinas do riso suportam o confronto com a candura perversa de Adília.

Há muitos anos que tenho medo da Filipa Leal. Pressinto coisas no seu ar discreto e identifico-me como se fôssemos família da mesma angústia que nos leva ao bom e ao mau da vida. Temos medo daquilo que esperamos. Só temos medo daquilo que esperamos. Dimensionamos bem o terror que pode acontecer, ainda que a vida seja antipaticamente à deriva e cheia de acaso. A verdade é que um ínfimo instante com a Filipa Leal basta para que entendamos ter coincidido com alguém que nos pode demolir. Ficámos à sua espera. Não que isso se faça pelo lado predador do perigo, mas porque nos deparamos com o lado profundo de se ser alguém, que é igual a ganhar afecto ao perigo, aquilo que melhor nos mede.

Quem se aprofunda facilmente concebe o abismo. Os poetas são promessas de quedas infindas, tão responsabilizadoras quanto irresistíveis e irreversíveis. A Filipa Leal vem há muito a escavar diante dos seus e dos nossos pés uma lonjura que avidamente procura o tamanho daquilo a que, à falta de termo menos beato, podemos chamar de alma. Eu sempre soube que me competia a poesia porque ela não nos deixa incólumes. E quem não arrisca magoar-se também não intensifica a graça ou a felicidade. Lidarmos com a poesia da Filipa Leal, como com a de Adília Lopes, desenganem-se os distraídos, é um combate. Ainda que a estética e todo o seu esforço para o belo, muita harmonia e musicalidade, nos iludam um pouco, a poesia é uma nudez e nós estamos todos formatados para a dissimulação mais típica do vestir. Nem a ironização impede que o inusitado de algumas passagens, mesmo que um inusitado humorístico, crie em nós a evidência do poeta como ser em crise. O que quero dizer é que o leitor de poesia é também um ser em crise. Mas quem não vive assim, não vive.

Adília Lopes Lopes é a assunção de Filipa Leal. O que até aqui se colocou como matéria de verve e eloquência agora questiona-se frontalmente, o que implica sempre o saber acerca do ridículo, igual a ponderar se a importância da poesia vem do aparato solene com que se pode empertigar ou mais da constante sensação de domínio exercido. Ou seja, o texto que acontece como ensimesmado, deixando o poeta no lugar de simples instrumento. Talvez isso justifique porque todos os poetas são donzelas correndo riscos, não o diria apenas da Filipa Leal. Os poetas, ainda que por coragem se construam nos textos, são apeladores, mesmo que cépticos ou snobs, apelam, fundamentam-se pelas carências e queixam-se. O problema é que o leitor de poesia é tendencialmente igual ao poeta. Carente e necessitado da queixa. Mas, já o disse, quem não vive assim, não vive.

Compreendo bem porque Filipa Leal se encanta com Adília Lopes e a homenageia. Há um aspecto de simplificação na poesia de Adília que, incapaz de lhe retirar a profundidade, parece auxiliar a luz que se pretende de um texto ou do mundo. Dizer frontalmente as coisas, até que elas se tornem realidades evidentes, parece ser o jogo. Depois, assacar da evidência o seu significado. É sempre mais fácil entender, ou julgar entender, aquilo que se evidencia. O que acontece é que a luz do poema incide sobre o peito tornado um alvo. Para este jogo há que habituar o poeta à exposição. De todo o modo, o poeta que não expõe não acontece. É outra coisa que não um poeta. É porque todo este livro acontece enquanto alvo sobre o peito do poeta que ele nos sugere a confissão e a declaração já apaziguada da fuga. Filipa Leal não tem como se esconder atrás de Adília Lopes, ela está à frente de Adília Lopes e tudo quanto fica dito resulta mais como personalidade enfim explícita do que busca inesperada por si mesma. O poema longo que é Adília Lopes Lopes sabe quem é o sujeito poético a que diz respeito. É mais um livro declarativo do que questionador. Ele pressupõe as questões e tem o topete de apresentar as suas respostas. É este o sujeito poético ou, se quiserem, é este o poeta, a Filipa Leal, um poeta com topete.

Talvez tudo passe a valer a pena depois que a vida se torne um bicho forçado a dialogar connosco. Acho que é isso que acontece com toda a poesia de Filipa Leal. A vida foi forçada a dialogar com ela, como sentada diante de si numa cadeira da casa, eventualmente junto a um chá a ferver, até que alguma coisa sirva de sapiência mais perene ou, ao menos, não tão efémera. Quanto a mim, parte de esperar pela Filipa Leal e isso ser sempre uma questão também do medo, significa sobretudo que o que ela escreve me atinge. A vida com que dialogo pousa-me os livros de Filipa Leal ao peito tornado um alvo. Se ela for abatida, o mais certo é eu ser abatido também. Fico feliz. Morrer por amor é o único modo decente de morrer.     
 

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Gostar de Adília Lopes é uma manifestação de maturidade. Apenas os que se aceitam estão disponíveis para a honestidade, ainda que performática, da sua poesia. Apenas os que descortinaram o lado trágico das disciplinas do riso suportam o confronto com a candura perversa de Adília.

Há muitos anos que tenho medo da Filipa Leal. Pressinto coisas no seu ar discreto e identifico-me como se fôssemos família da mesma angústia que nos leva ao bom e ao mau da vida. Temos medo daquilo que esperamos. Só temos medo daquilo que esperamos. Dimensionamos bem o terror que pode acontecer, ainda que a vida seja antipaticamente à deriva e cheia de acaso. A verdade é que um ínfimo instante com a Filipa Leal basta para que entendamos ter coincidido com alguém que nos pode demolir. Ficámos à sua espera. Não que isso se faça pelo lado predador do perigo, mas porque nos deparamos com o lado profundo de se ser alguém, que é igual a ganhar afecto ao perigo, aquilo que melhor nos mede.

Quem se aprofunda facilmente concebe o abismo. Os poetas são promessas de quedas infindas, tão responsabilizadoras quanto irresistíveis e irreversíveis. A Filipa Leal vem há muito a escavar diante dos seus e dos nossos pés uma lonjura que avidamente procura o tamanho daquilo a que, à falta de termo menos beato, podemos chamar de alma. Eu sempre soube que me competia a poesia porque ela não nos deixa incólumes. E quem não arrisca magoar-se também não intensifica a graça ou a felicidade. Lidarmos com a poesia da Filipa Leal, como com a de Adília Lopes, desenganem-se os distraídos, é um combate. Ainda que a estética e todo o seu esforço para o belo, muita harmonia e musicalidade, nos iludam um pouco, a poesia é uma nudez e nós estamos todos formatados para a dissimulação mais típica do vestir. Nem a ironização impede que o inusitado de algumas passagens, mesmo que um inusitado humorístico, crie em nós a evidência do poeta como ser em crise. O que quero dizer é que o leitor de poesia é também um ser em crise. Mas quem não vive assim, não vive.

Adília Lopes Lopes é a assunção de Filipa Leal. O que até aqui se colocou como matéria de verve e eloquência agora questiona-se frontalmente, o que implica sempre o saber acerca do ridículo, igual a ponderar se a importância da poesia vem do aparato solene com que se pode empertigar ou mais da constante sensação de domínio exercido. Ou seja, o texto que acontece como ensimesmado, deixando o poeta no lugar de simples instrumento. Talvez isso justifique porque todos os poetas são donzelas correndo riscos, não o diria apenas da Filipa Leal. Os poetas, ainda que por coragem se construam nos textos, são apeladores, mesmo que cépticos ou snobs, apelam, fundamentam-se pelas carências e queixam-se. O problema é que o leitor de poesia é tendencialmente igual ao poeta. Carente e necessitado da queixa. Mas, já o disse, quem não vive assim, não vive.

Compreendo bem porque Filipa Leal se encanta com Adília Lopes e a homenageia. Há um aspecto de simplificação na poesia de Adília que, incapaz de lhe retirar a profundidade, parece auxiliar a luz que se pretende de um texto ou do mundo. Dizer frontalmente as coisas, até que elas se tornem realidades evidentes, parece ser o jogo. Depois, assacar da evidência o seu significado. É sempre mais fácil entender, ou julgar entender, aquilo que se evidencia. O que acontece é que a luz do poema incide sobre o peito tornado um alvo. Para este jogo há que habituar o poeta à exposição. De todo o modo, o poeta que não expõe não acontece. É outra coisa que não um poeta. É porque todo este livro acontece enquanto alvo sobre o peito do poeta que ele nos sugere a confissão e a declaração já apaziguada da fuga. Filipa Leal não tem como se esconder atrás de Adília Lopes, ela está à frente de Adília Lopes e tudo quanto fica dito resulta mais como personalidade enfim explícita do que busca inesperada por si mesma. O poema longo que é Adília Lopes Lopes sabe quem é o sujeito poético a que diz respeito. É mais um livro declarativo do que questionador. Ele pressupõe as questões e tem o topete de apresentar as suas respostas. É este o sujeito poético ou, se quiserem, é este o poeta, a Filipa Leal, um poeta com topete.

Talvez tudo passe a valer a pena depois que a vida se torne um bicho forçado a dialogar connosco. Acho que é isso que acontece com toda a poesia de Filipa Leal. A vida foi forçada a dialogar com ela, como sentada diante de si numa cadeira da casa, eventualmente junto a um chá a ferver, até que alguma coisa sirva de sapiência mais perene ou, ao menos, não tão efémera. Quanto a mim, parte de esperar pela Filipa Leal e isso ser sempre uma questão também do medo, significa sobretudo que o que ela escreve me atinge. A vida com que dialogo pousa-me os livros de Filipa Leal ao peito tornado um alvo. Se ela for abatida, o mais certo é eu ser abatido também. Fico feliz. Morrer por amor é o único modo decente de morrer.