A pequena guerra patriótica pela sagrada mãe Rússia
A Rússia. Quem diria? Enganaram-se os que pensavam que a queda da União Soviética tinha deixado órfãos organizações, militantes e activistas que, deste lado do muro, passaram décadas a defender o Bloco de Leste e outros faróis vermelhos. A Rússia dos nossos dias ainda consegue, apesar das alianças e amizades políticas de Putin com a extrema-direita europeia, mobilizar os que, durante o xadrez da guerra fria, torciam pelo “Segundo Mundo”.
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A Rússia. Quem diria? Enganaram-se os que pensavam que a queda da União Soviética tinha deixado órfãos organizações, militantes e activistas que, deste lado do muro, passaram décadas a defender o Bloco de Leste e outros faróis vermelhos. A Rússia dos nossos dias ainda consegue, apesar das alianças e amizades políticas de Putin com a extrema-direita europeia, mobilizar os que, durante o xadrez da guerra fria, torciam pelo “Segundo Mundo”.
A velha divisão da diplomacia em três (nós, eles, os outros) mantém-se, 25 anos após o desaparecimento da Cortina de Ferro, como padrão de pensamento de muitos dos que se interessam pelas relações internacionais. Tal como, inquietantemente, se continua a segmentar a política na pobre e inquinada dicotomia esquerda-direita, geradora de rancores, de traidores, infiéis e abstencionistas, e que mais não é do que uma forma de provocar reacções, e de nos deixar de fora do fundamental, entrincheirados a discutir o acessório.
Vemos isto acontecer, mais ou menos declaradamente, em discursos oficiais e vêmo-lo também, naturalmente, em certo discurso popular que a Internet acolhe e propaga.
Os comentários online, não sendo espelho fiel da sociedade (estão mais sujeitos a paixões, disponibilidades e acções subterrâneas), são uma estimável aproximação ao que nos rodeia e tolhe – sobretudo nas urnas de voto, de onde saem directivas cada vez mais inquietantes para as democracias europeias. O populismo e a demagogia estão a ganhar terreno em França, Itália, Reino Unido, Holanda, Finlândia, Suécia, Grécia, Hungria, e percebe-se porquê.
Desde logo pela dúvida generalizada que os eleitores (!) tão afoitamente espalham através dos comentários, que de certa maneira são uma forma de participação cívica. Pelas constantes teorias da conspiração. Pelas sugestões maliciosas. Pela arrogância com que, não poucas vezes, se dirigem aos autores dos artigos que comentam, pondo o seu conteúdo em causa tão assertiva e decididamente – os comentadores nunca se enganam e raramente têm dúvidas – que o leitor seguinte já não é capaz de o ler sem assumir uma postura igualmente hostil.
Regados pela ideia de um agitamento social fictício, os sentimentos de incerteza, insegurança e ameaça são terreno fértil para o populismo – et pour cause, um perigo para a democracia. A esmagadora maioria dos comentários submetidos no PÚBLICO são aceitáveis dentro do conjunto de regras estabelecidos para o efeito. Mas quantos deles são fruto da vontade genuína de debater, de acrescentar, e não da promoção ou da prossecução de confrontos sobranceiros e sectários? Eis uma conta interessante. Como exigir abertura de espírito – digamos – na Assembleia da República, se nem numa caixa de comentários conseguimos tê-la?
Da Política à Ciência, o problema é transversal a todas as secções do jornal. Contudo, em 2014, não foram Passos, Sócrates ou os avanços da neurociência que mais comentários instigaram. Nada provocou mais discussão do que a Rússia e a Ucrânia, que fizeram o pleno no balanço dos textos mais comentados: dez em dez. Uma tempestade perfeita, na qual se cruzaram a retórica e a polarização do século XX, a sempiterna rixa esquerda vs. direita, a combatividade dos participantes e o desdém pelas opiniões alheias. Com duas agravantes: a disseminação de informação não confirmada, uma campanha de desinformação que denunciava a “censura” dos media “ocidentais”; e a constante descredibilização de comentadores e jornalistas.
Campanha é uma palavra forte e não é usada por acaso. Em Maio, o editor de comunidades do Guardian, Chris Elliott, dizia que os moderadores de comentários do diário britânico criam que o “trolling” pró-russo que lhes estava enxamear as caixas de comentários era uma “campanha orquestrada”. Eles não tinham provas, “acreditavam” nisso, e nós não vamos tão longe. Pode provar-se uma ingenuidade – ou, no limite, um paternalismo ridículo –, mas por cá optamos por não alimentar mais uma teoria conspirativa e preferimos procurar causas mais… naturais.
Os artigos sobre a Palestina, Cuba ou a Coreia do Norte já nos tinham mostrado que o debate sobre as grandes narrativas, sobre o comunismo, o capitalismo, o imperialismo, etc., podem aquecer muito depressa. Ainda assim, o fenómeno russo apanhou-nos de surpresa. Há dias, a propósito do reatamento das relações diplomáticas entre EUA e Cuba, um comentador escrevia – num tom acintoso, claro – que a guerra fria nunca tinha acabado. E, se a insinuação é contestável no plano da realpolitik, é mais do que certo que ainda a temos muito presente. Tanto os defensores da sagrada mãe Rússia como os que vêem comunistas por todo o lado e como uma espécie de cancro social cuja eliminação resolveria o essencial dos problemas.
A crise política ucraniana juntou a fome com a vontade de comer e deu à luz inúmeras conversas de surdos. Como concluem vários estudos que vêm sendo conduzidos na última década, em particular o trabalho desenvolvido por Brendan Nyhan nos EUA, procuramos ser coerentes connosco próprios e tendemos a enquadrar os factos nas nossas convicções, e não o contrário, sobretudo no que toca a questões políticas e religiosas. Simplesmente não estamos disponíveis para alterar os nossos pontos de vista nas caixas de comentários dos jornais por muito que sejamos confrontados com factos que contradizem crenças que temos por verdade. E tendemos a ser ainda mais veementes nos argumentos que nos põem em causa.
O que não é um fenómeno propriamente novo: qualquer um já se envolveu em discussões nas quais percebe a meio caminho que não está a fazer sentido, e no entanto mantém-se firme no seu ponto. Quando há uma “reputação” pública a manter, como na comunidade do PÚBLICO, essa necessidade de consistência agudiza-se e as explicações e os contra-argumentos multiplicam-se em intermináveis comentários. É o que tem acontecido nos artigos relacionados com a Rússia – de um lado e do outro do “muro”. O problema é que os comentários são lidos por muitos que encontram nessas diatribes alimento para as suas próprias discussões, num processo virtualmente infinito de contaminação da opinião pública.
Nunca tivemos tanta informação disponível, nunca foi tão fácil estarmos errados e nunca estivemos tão certos de nós próprios. Eis como o futuro se apresenta: comunicante, mas esquizotímico. Ainda está para chegar o tempo em que a dúvida e a inquietação regressarão às nossas vidas como objectos vintage. Talvez mais tarde do que cedo.