Arquitectura e lamento
O mundo continua a precisar de bons arquitectos e, não havendo um corte disciplinar e epistemológico, Portugal continua a ser um centro de excelência.
É impossível não concordar com partes deste discurso e partilhar até alguns dos seus aspectos sentimentais. Porém, no essencial, penso que há falta de amplitude no campo de análise, e pelo contrário, parece-me que a arquitectura atravessa talvez um dos momentos mais ricos e fascinantes desde o Esprit Nouveau.
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É impossível não concordar com partes deste discurso e partilhar até alguns dos seus aspectos sentimentais. Porém, no essencial, penso que há falta de amplitude no campo de análise, e pelo contrário, parece-me que a arquitectura atravessa talvez um dos momentos mais ricos e fascinantes desde o Esprit Nouveau.
O fenómeno da globalização e da sociedade do conhecimento não trouxe apenas miséria e trabalho infantil; revelou arquitectos e regiões de onde nunca esperámos ver uma produção qualificada, revelou possibilidades tecnológicas e campos de linguagem de uma riqueza e diversidade inauditas. Criou também oportunidades de inesperada rebeldia e inconformidade com os contextos normativos. É certo que, como Souto de Moura refere, muitas revistas de arquitectura estão a fechar mas, na verdade, nunca o acesso à divulgação digital foi tão democrático, tão rápido, tão amplo. É certo também que neste universo há novos rituais de sedução construídos exclusivamente no prestígio da imagem e onde a experiência da arquitectura, outrora fenomenológica, bem como a palavra escrita, é substituída pelo nanossegundo em que o pixel se fixa na retina. Paradoxalmente, talvez nunca tenha havido tanto escrutínio informado, como demonstram, por exemplo, as violentas críticas ao estádio olímpico de Tóquio de Zaha Hadid ou à sede da fundação Louis Vuitton em Paris, de Frank Gehry, e que representa, em parte, uma certa reacção “99%” ao protagonismo a qualquer preço do star system, em nome de uma liberdade autoral e estatutária muitas vezes absurda.
Souto de Moura refere também que “....os arquitectos portugueses, se querem construir, têm que deixar Portugal”. Ora, se uma das prerrogativas da globalização é justamente a abertura de um imenso campo de oportunidades pela livre circulação de bens e serviços, a outra é a manifesta impossibilidade das economias desenvolvidas continuarem a garantir localmente essas mesmas condições. O fenómeno que permite a Siza construir na China ou a Souto de Moura fazer concursos para Abu Dhabi é, ainda que muito indirecta e inversamente, o mesmo que faz com que tenham pouco trabalho em Portugal. Longe vão os anos da “profissão poética” e do bonjour tristesse - uma espécie de internacionalização ideológica -, se pensarmos nos contextos de estrito mediatismo imobiliário para que são hoje convidados os star-architects. E nesse capítulo, apesar da excepção portuguesa, os Pritzker prosperam universalmente; nalguns casos até um pouco mais do que a disponibilidade do seu talento permite.
Não me parece, por isso, que este seja um momento de lamento, mas um momento de reinvenção. Um momento doloroso, complexo e de fim de ciclo, mas também de redefinição de escalas e estratégias e que antecipa resultados auspiciosos. Manuel Mateus montou uma pequena rede de jovens ateliers com quem concorre com sucesso a concursos no mundo francófono; José Adrião parece ter sabiamente ajustado a sua escala de atelier a um tema que há muito persegue - a escassez -, com resultados notáveis na reabilitação; também em Lisboa, a meritocracia floresce com o pequeno atelier Barbas Lopes a ganhar o concurso de um grande edifício de escritórios em Picoas; Ricardo Camacho, que tinha o seu atelier no Algarve agonizante, envia-me imagens de um imenso parque equipado que tem em construção em Kuwait City, além de ser curador do país na anterior Bienal de Arquitectura de Veneza; a jovem dupla Barão-Hutter desfaz finalmente o feitiço dos portugueses não conseguirem ganhar concursos na suíça-alemã, fazendo-o aliás com obras de dimensão respeitável; Pedro Reis entrou no mercado unifamiliar de luxo com projectos na Alemanha, Nicarágua e Dubai; Camilo Cortesão estava recentemente a recuperar o campus desportivo de Le Corbusier no Iraque; e no campo do ensino, a Porto Academy posicionou-se como um summer camp de arquitectura epicurista sem paralelo. Enfim, haveria muitos mais exemplos a corroborar estas novas dinâmicas, mas quero aqui resistir a pintar um quadro de optimismo “panglossiano”. Pior, nenhum destes exemplos é parte de uma grande marcha ou tendência de recuperação; são tudo situações relativamente instáveis e até bizarras no contexto da profissão. Porém, parece-me que a saída da crise na arquitectura portuguesa desta vez não será resultado de um grande mandato de António Costa nem de uma nova dose de encomenda pública, como clamam Siza e Souto de Moura. A recuperação será feita por uma pulverização de pequenas oportunidades na reabilitação e em novos negócios, pela criação de inteligência em áreas especificas exportáveis, pela pura obstinação de investimento em mercados dificílimos, pela argúcia e sensibilidade na gestão de novos contextos e programas, pelos cruzamentos de experiências entre diferentes gerações de arquitectos expatriados, nalguns casos já líderes em ateliers internacionais.
Se nem Kierkegaard sobrevive de lamento, muito menos Siza e Souto de Moura. É por isso fundamental transmitir a todos os arquitectos uma palavra de esperança sobre o futuro de uma profissão para a qual as oportunidades não são tão evidentes como o terão sido no passado. Saindo da zona de conforto, as possibilidades são inúmeras e estimulantes porque o mundo continua a precisar de bons arquitectos e, não havendo um corte disciplinar e epistemológico, Portugal continua a ser um centro de excelência.
Arquitecto, sócio do ateliê Promontorio