O disco bem fresco de um corno maduro
O segundo longa-duração de um jovem futuro arquitecto é uma admirável colecção de canções clássicas sobre essa coisa de andar ressabiado com uma garota. O fuel dos melhores discos, como é por de mais sabido.
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Agora, se alguém puder que avance com uma explicação para o facto de um garoto de 23 anos, mal saído dos cueiros, parir tamanha colecção de cantigas sobre um assunto que é objecto de disruptivas discussões há milénios. Quer dizer, estamos a falar de um tema que tanto é debatido por admiráveis cabeças eruditas como pela mais porteira das sopeiras e que deu origem a cerca de um milhão e 300.043 cantigas e pelo menos cinco milhões de peças de teatro aborrecidas – como é que um miúdo em idade para ser palerma consegue ecoar as trôpegas deambulações de um Tom Waits ou de um Mark Hollis?
Bem, se quisermos ser exactos, este estudante de arquitectura sempre teve algo de precoce. Em garoto passava tardes na Pizzarte, um restaurante de amigos do pai, em Aveiro, a desenhar sob o olhar atento do progenitor, que desistiu de Arquitectura para seguir Belas-Artes. E quanto à música, já leva um LP (putos: googlem), vários EP e não sei quantos singles em carteira. Não é um puto qualquer – é um puto que cita Kurt Vonnegut.
“Eu gosto muito do Kurt Vonnegut e não faz sentido algum comparar-me a ele, mas apetece-me e vou fazê-lo por causa de uma coisa que li”, começa João (o seu nome não artístico), de modo a explicar como surgiu Corno Ressabiado – desculpem, Canções Mortas. “Uma vez li um texto em que diziam que o Vonnegut é como um Woody Allen que por um livro ou dois deixou de pensar só nele próprio e pensou na humanidade em geral. E comigo acontece o mesmo: nestes dois anos fiz dois discos e num sou eu e a minha vida amorosa enquanto o outro é a vida das pessoas, com o dinheiro e a educação por temas – quer dizer, não é um disco de intervenção, são só coisas da vida." Este é, portanto, o disco em que Coelho Radioactivo se pode dar ao luxo de ser Woody Allen. Woody Allenescamente, enquanto fala connosco ao telefone (do Porto, num churrasco da sua faculdade), uns putos apontam-lhe um laser verde, o que o enerva, porque se sente observado, ao ponto de começar a gaguejar.
Havia qualquer coisa nas canções que Radioactivo ia pondo on-line – como havia qualquer coisa nas canções que o seu compagnon de route, Luís Gravito, conhecido no universo das cantigas por Cão da Morte, ia pondo on-line. E não, isto não é piada: eles usam mesmo estes nomes artísticos e não fizeram pandã de propósito. “Eu conheci o Cão da Morte numa semana que passei em casa do Daniel [Ruivo, mais conhecido por João Coração, em Lisboa. Tocaram à campainha e ele disse 'Olha, vai aí abrir a porta ao Cão da Morte'. Mas nessa altura eu já era Coelho Radioactivo."
João tornou-se Coelho aos 16 anos, idade com que começou a fazer canções-canções, daquelas com princípio, meio e fim, por esta ordem. E se o fez, muito deve a João Coração – Coelho e Cão são duas das três pessoas convencidas de que Muda que Muda, o segundo disco de João Coração, foi a melhor coisa que aconteceu à pop nacional.
“Comecei a pôr o que fazia no MySpace – e foi aí que conheci o Daniel, que também morava em Aveiro. Nessa altura praticamente só tinha instrumentais. O Daniel naquela altura tinha três projectos: João Calado, João Grande e João Coração. E tinha um instrumental chamado A mil, do João Calado, que é a melhor faixa dele – só deve haver umas cinco pessoas que têm essa canção e o Daniel não é uma delas. Faz parte da maneira de ser dele – por exemplo, eu tenho o computador em que o Daniel gravou o Muda Que Muda. Ele não tem nada, só o disco."
Coração foi a primeira pessoa que puxou Coelho para cantar: “Eu já tinha tentado, mas achava abominável a minha voz. E lembro-me de ir a casa dele em Aveiro, mostrarmos canções uns ao outro – ele já tinha grandes temas, como a Dobra –, e de pensar: 'Este gajo também canta mal para caraças, se ele faz isto eu também posso'. E ele dizia-me que não era assim tão mau, que toda a gente odiava a sua voz." Coração tornou-se, para Coelho Radioactivo, “uma espécie de father figure”. O Cão Gravito é “um irmão”. “O Luís também me trouxe muita coisa. Apesar de ter lançado discos antes de mim, eu fui sempre acompanhando, além de tocar nos discos todos dele. Somos dois cachopos de mão dada numa filinha."
Entretanto, a voz de Coração está bem, obrigado, e Coelho herda qualquer coisa daquele trejeito entre o teatral e o banal que marca Muda Que Muda (melhor disco pop português de sempre). Nos sete anos que passaram, Radioactivo aprendeu a usar a sua – é admirável o que faz em Pistola, clássico imediato de uma simplicidade desarmante: uma bela sequência de acordes à guitarra com um piano a debruar e uma slide-guitar delicada em fundo.
“São canções clássicas, mas em termos de arranjos há claramente uma sensação de que a cada instante vai desabar tudo”, opina Coelho. “O Nick Cave e o Tom Waits são pessoas que ouço muito. E quando vais para uma canção vais com o que te parece honesto para a música, com aquilo que te é mais próximo." Depois faz uma pausa e com um certo tom cómico atira de supetão: “Oh pá, a instrumentação tem a ver com as coisas que fui ouvindo, o Mark Hollis, o Lewis... Sou grande ladrão, roubei-lhes essa merda toda. Roubo que me farto, mas eles também roubaram a outros, por isso não há problema."
Dois coelhos, a mesma cartola
Coelho Radioactivo pode ser um ladrão, mas é um ladrão inteligente: Pistola abre com um simples dedilhado de guitarra e o que parece ser uma melódica em modo vagamente western, que casa na perfeição com as palavras. O tom é mais ou menos este ao longo de O Corno Nunca Acaba, perdão, Canções Mortas, sendo que num par de temas – Deito e O juízo – há uma chama que se alteia. No primeiro caso é uma linha de guitarra arrastada, assim à Gun Club em lento, até que várias guitarras e órgão se juntam para o festim final (que tem qualquer coisa de 16 Horsepower); na segunda surgem uns coros que aquecem o tema e no finzinho guitarras digladiam-se, numa ascensão belíssima – que podia muito bem ser um tema dos Go-Betweens.
“Fiz tudo neste disco”, conta Coelho. “Compus, gravei, interpretei, toquei todos os instrumentos, produzi o som – tudo”. E depois, com graça: “Pelo que estou farto do disco." Algumas das músicas começaram a ser feitas em 2012, na altura em que saiu Estendal, a sua estreia na longa-duração. Desde então, “sempre que ia fazendo uma música ia achando que esta fica melhor em conjunto com aquela e a outra ao lado de uma quarta e assim acabei com dois discos, porque as músicas vão-se agrupando”. No próximo ele promete não incomodar ninguém a falar da sua vida pessoal: “O que tinha a dizer sobre este assunto disse nas canções. Está dito, está feita a catarse, não tenho mais nada a acrescentar, fim de história, acabou."
Mas como, a compor, Coelho parte de uma melodia à guitarra ou ao piano e depois vai acrescentando harmonias com os instrumentos que tem à mão, a dada altura viu-se com um excesso de faixas e um excesso de instrumentos em cada tema. “Acabei por me dividir em dois coelhos: o coelho que canta e o coelho que é técnico de som – e este, a uma dada altura, perguntou ao primeiro: 'Isto vai sair ou não?' Tive de me sentar e numas escassas semanas muito intensas decidir o que pôr e o que tirar de cada tema, porque se não isto arrastava-se e arrastava-se e nunca mais acabava o disco."
Agora Coelho – o que compõe, não o que produz – tem em mãos um milhão de projectos: os Flamingos, com Gravito, são “pop, mesmo”. Nos Xula Velhos, uma estranha banda que inclui saxofone, “acert[a] com a baqueta na tarola”. Nos Milpeto, um colectivo de free jazz mais ou menos improvisado por cima de peças compostas que varia entre as sete e as 12 pessoas, é o maestro. E na calha pode estar uma colaboração com João Mascarenhas, da Stealing Orchestra (que é fã). Pelo meio tem a seu cargo a parte gráfica da Gentle Records e da Favela, duas pequenas editoras do Porto.
Dois Anos de Corno, perdão, Canções Mortas não tem edição fisica – podem encontrá-lo em http://coelhoradioactivo.bandcamp.com/. “Tive uma edição física no Estendal e não correu muito bem. O próximo disco há-de sair a meio do próximo ano. Aí queria fazer um vinil. Portanto, preciso de poupar dinheiro, pelo que desta vez não há cá CD para ninguém."
Chega o momento de lhe fazermos uma provocação: e daqui a uns aninhos, com um par de divórcios em cima e uma estadia numa clínica de reabilitação, ele não tem medo de olhar para trás e achar a abordagem ao assunto amor, aos 23 anos, imatura? “O que aconteceu foi o que tinha de acontecer – se eu ficasse à espera de me tornar um tipo maduro nunca editava o raio do disco. E quando for mais velho farei os discos da maneira que me fizer sentido nessa altura. Não da maneira correcta, mas da que fizer sentido – neste momento é isto que me faz sentido."
E com toda a razão, porque, apesar da sua tenra idade, este Coelho está no ponto.