Música de protesto, música de vanguarda

O tempo em que no hip-hop o protesto era indissociável de invenção sónica.

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Public Enemy: entre a rua e o estúdio, a utopia do hip-hop Ronnie Randall

O hip-hop ainda é música de protesto? Num assomo de pessimismo, a reposta é não. As marchas a caminho de Montgomery esconderam-se sob os motores dos carros de alta cilindrada e os discursos de Luther King não resistem a tantas danças “sensuais” e palmadas no rabo. As rimas do hip-hop ficaram reféns da frase de Lampedusa. Não foi esta que se ouviu em Ferguson? Talvez seja preciso tempo para que chegue uma nova música. Nos finais dos anos 80, todavia, o hip-hop era essa música e os Public Enemy cantaram-na com uma raiva criadora em It Takes a Nation of Millions to Hold us Back (1988) e Fear of a Black Planet (1990), oportuníssimas reedições. O primeiro representa a maturidade dos Public Enemy. O disco em que as rimas de Chuck D. se recortavam numa voz dura, afiada no cansaço e na frustração, que só a energia e o humor do seu parceiro, Flavor Flav, ousavam contrariar. As palavras disparavam e à volta delas o som explodia com o sampling dos Bomb Squad. O culto da oralidade juntava-se à invenção sónica. A crítica rendia-se. A par da voz, o principal instrumento é o sampler. Fornece as principais batidas, faz de baixo e bateria e de forma tão perfeita, tão simples que, citando Goethe a propósito do ritmo, “chega a fazer-nos acreditar que o sublime nos pertence”. Em que faixas? Em Mind Terrorist ou em Caught, Can We Get a Witness?, pérola funk com o wah-wah a sapatear. A apropriação de sons preexistentes é mostrada sem vergonha, acto criativo impelido pelo amor ao acto de ouvir música. Os meios e os fins não se distinguiam. E isso sente-se nos loops dos instrumentos de sopro de Bring The Noise, nos samples do acorde de guitarra e do suspiro em Don´t Believe The Hype. Sente-se e ouve-se bem porque os Public Enemy exprimiam a beleza do som (não é isso que fazem no arranque de Terminator X To The Edge of Panic?).

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O hip-hop ainda é música de protesto? Num assomo de pessimismo, a reposta é não. As marchas a caminho de Montgomery esconderam-se sob os motores dos carros de alta cilindrada e os discursos de Luther King não resistem a tantas danças “sensuais” e palmadas no rabo. As rimas do hip-hop ficaram reféns da frase de Lampedusa. Não foi esta que se ouviu em Ferguson? Talvez seja preciso tempo para que chegue uma nova música. Nos finais dos anos 80, todavia, o hip-hop era essa música e os Public Enemy cantaram-na com uma raiva criadora em It Takes a Nation of Millions to Hold us Back (1988) e Fear of a Black Planet (1990), oportuníssimas reedições. O primeiro representa a maturidade dos Public Enemy. O disco em que as rimas de Chuck D. se recortavam numa voz dura, afiada no cansaço e na frustração, que só a energia e o humor do seu parceiro, Flavor Flav, ousavam contrariar. As palavras disparavam e à volta delas o som explodia com o sampling dos Bomb Squad. O culto da oralidade juntava-se à invenção sónica. A crítica rendia-se. A par da voz, o principal instrumento é o sampler. Fornece as principais batidas, faz de baixo e bateria e de forma tão perfeita, tão simples que, citando Goethe a propósito do ritmo, “chega a fazer-nos acreditar que o sublime nos pertence”. Em que faixas? Em Mind Terrorist ou em Caught, Can We Get a Witness?, pérola funk com o wah-wah a sapatear. A apropriação de sons preexistentes é mostrada sem vergonha, acto criativo impelido pelo amor ao acto de ouvir música. Os meios e os fins não se distinguiam. E isso sente-se nos loops dos instrumentos de sopro de Bring The Noise, nos samples do acorde de guitarra e do suspiro em Don´t Believe The Hype. Sente-se e ouve-se bem porque os Public Enemy exprimiam a beleza do som (não é isso que fazem no arranque de Terminator X To The Edge of Panic?).

Som de uma celebração, ressalve-se, mas quem dançava com Chuck D ou Terminator X, dançava de olhos/ouvidos bem abertos, com a cabeça levantado. Ou não dançava. A melancolia do sample de saxofone em Show Em Watcha Got, a urgência de Night of The Living Baseheads e o sarcasmo violento de She Watch Channel Zero (que grupo de hip-hop ousaria fazer agora uma canção assim?) não permitiam escapismos ou ilusões.

Em Fear of a Black Planet já não se ouviam os gritos do público que no álbum anterior pareciam inscrever os Public Enemy na história da música popular. Esse trabalho estava feito. Faltava agora mostrar o que queriam os Public Enemy dizer à América. Inspirados nas teses de Frances Cress Welsing e nas ideias de Loius Farrakhan, ruminam sobre o sucesso, a reacção do media, o apartheid cultural. Olham-se ao espelho e Chuck D. grita “I got so much trouble in my mind”. Às acusações de misoginia e à polémica provocada pelas declarações anti-semitas de Professor Griff, respondem com outra obra-prima, na qual a colagem resumiria a reunião de todos os géneros da música urbana negra: entre a rua e o estúdio, essa foi a utopia do hip-hop. Não se sabe bem por onde começar e acabar, tal a riqueza dos samples, a diversidade dos sons e das falas, a beleza da arquitectura das composições. Mas tente-se. Pollywanacraka anuncia o trip-hop enquanto Brothers Gonna Work It Out e Burn Hollywood Burn assaltam o ouvinte com uma fúria e alegria que se repetem na fabulosa Who Stole The Soul. Rap? Hip-hop? Avant-funk? Noise? É difícil descrevê-la e do mesmo “problema” padece B. Side Wins Again. São ambas irredutíveis a definições. 

Perante a criatividade de Fear of Black Planet, o lamento de Andre Torres soa justo. Diz o editor da revista Wax Poetics, no texto da reedição, que o álbum assinalou o fim de um período de liberdade artística na produção de hip-hop. Atentos ao uso dos samplers, advogados especializados em direitos de autor começaram a perseguir músicos e editoras, e o hip-hop recuou. Vale a pena perguntar se a sua capacidade de protesto não era afinal um reflexo da liberdade de experimentar.Fight The Power, o tema final, parece acenar afirmativamente. Até à chegada de uma nova música.