Um documentário para voltar a pôr tudo em causa
Eis um documentário sobre a turbulência do mundo e de Portugal, numa altura em que a crise económica parece colocar em causa a própria democracia. Em Dreamocracy, a portuguesa Raquel Freire e a francesa Valérie Mitteaux partem à procura de novas formas de fazer política – e delas próprias. Entrevista com Raquel Freire.
No ano passado lançou um livro, Trans Iberic Love, e agora surge com um documentário, Dreamocracy, ambos partilhando o contexto de crise económica, social e política. Que outro tipo de ligações há entre os dois objectos?
São os dois objectos menos ficcionais que criei. Expresso-me muito através da ficção. Adoro brincar com a narrativa clássica grega. Mas em determinada altura da minha vida senti vontade de partir em direcções diferentes. Tanto o documentário como o livro exigiram outro tipo de disciplina e de criação, em particular o livro, por ter um lado de testemunho político e de reflectir movimentos sociais. Isso é o que têm em comum: essa vontade de partilhar com as pessoas momentos históricos nos quais acabei por participar também.
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No ano passado lançou um livro, Trans Iberic Love, e agora surge com um documentário, Dreamocracy, ambos partilhando o contexto de crise económica, social e política. Que outro tipo de ligações há entre os dois objectos?
São os dois objectos menos ficcionais que criei. Expresso-me muito através da ficção. Adoro brincar com a narrativa clássica grega. Mas em determinada altura da minha vida senti vontade de partir em direcções diferentes. Tanto o documentário como o livro exigiram outro tipo de disciplina e de criação, em particular o livro, por ter um lado de testemunho político e de reflectir movimentos sociais. Isso é o que têm em comum: essa vontade de partilhar com as pessoas momentos históricos nos quais acabei por participar também.
O documentário é aberto. Lança questões. É sobre o presente de Portugal e do mundo, mas também sobre algumas das pessoas que o povoam (como os activistas João Labrincha e Pedro Santos, ou a própria Raquel). É um filme sobre a procura de um sentido colectivo e individual.
Os filmes existem para interpelar as pessoas, para lhes colocar questões, não necessariamente para dar respostas. Estamos a viver um momento único, com a crise financeira transformada em crise política. Há desfasamento entre as pessoas e as elites e empobrecimento da classe média. Pela primeira vez nos últimos 30 anos, há uma crise democrática e as pessoas têm consciência disso. Há espaço para se pôr em causa o regime e para repensarmos o que é a democracia. O filme é exactamente isso. Interroga o que é e onde está a democracia. Aquelas pessoas estão lá, mas poderiam ter sido outras com percurso semelhante. Em 2011, o João e o Pedro convocaram meio milhão de pessoas, de forma não partidária, para se manifestarem na rua, contra a austeridade e a precariedade. Mais do que isso: escreveram num documento qual era o problema e qual era a respectiva solução, para ser entregue na Assembleia da República, numa altura em que ainda se acreditava no sistema. Um ano depois, perceberam que apenas dois deputados haviam lido o documento. O protesto foi completamente ignorado pelos representantes políticos. Daí a consciência de que a democracia parece já não funcionar e que é necessário encontrar novas formas de fazer política.
A energia despoletada por essa manifestação é muito referenciada ao longo do filme. É enaltecida, claro. Mas também é vivida como impasse, no sentido em que a pergunta que atravessa o filme é o que fazer, afinal, com ela.
O que tem acontecido nos últimos anos obrigou-nos, pela primeira vez em várias gerações, a voltar a pôr tudo em causa. Os nossos pais tiveram muitas lutas – contra a ditadura, pela democracia – e temos de os admirar por isso, mas somos a primeira geração a confrontar-se com uma besta que não tem nome e que se mascara. O neoliberalismo provoca a atomização da sociedade. A dor que as pessoas sentem é individual. É necessário dar nome a essa dor, para as pessoas não se perderem em livros de auto-ajuda, não se consumirem em drogas, em bebedeiras, em paixões frustradas e em todas as adições imaginárias, que é o que acontece à nossa geração. No filme Matrix pode-se escolher a pílula vermelha ou a azul. Se for a azul, está tudo bem, tomas as tuas drogas, vês os teus jogos e filmes, sais ao fim-de-semana e bebes até cair. Ou tomas a pilula vermelha e deparas-te com a realidade e vais questionar-te, porque o mundo obriga-te a uma responsabilização. Somos a primeira geração que está a viver pior do que os pais. Este retrocesso social nunca aconteceu. Assistimos a uma guerra, a uma guerra económica, com toda uma máquina de propaganda por detrás e com uma precarização das nossas vidas que nos torna vulneráveis. É difícil perceber o que se está a passar. Não é fácil desmontar a propaganda que tenta culpabilizar individualmente. É preciso voltar à política. É essa procura que está no filme. É esse voltar à política de uma forma nova. Não é um regresso à esquerda tradicional, que não é o espaço onde quero estar e onde quero por o meu filho. É um espaço novo que tem de se construir.
Durante algum tempo pensou-se que a crise iria atingir apenas os mais vulneráveis. As ocorrências do último ano, por exemplo em Portugal, mostram que nem os privilegiados estão a salvo. Entrámos numa nova fase da crise.
Estão a abrir-se brechas. Estamos a chegar a uma fase de ruptura sistémica. E não é só em Portugal. Temos a classe média a rebentar e a perder as esperanças no poder e na possibilidade de os seus filhos poderem vir a ter uma vida melhor. O neoliberalismo, que é o sistema que temos, sobreviveu até agora – para colocar as coisas de uma forma simples – a partir desse consenso existente entre as elites, a classe média e a classe trabalhadora, mas essa realidade está em ruptura. Estamos com um retrocesso social enorme e isso quer dizer que neste momento tudo pode acontecer e as pessoas que dirigem este país ainda não perceberam isso. É preciso uma transformação e uma resposta política, que pode acontecer de duas formas. Pela cidadania, construindo com as pessoas instrumentos de resistência ou de desobediência civil. Ou pode ser uma resposta política, criando partidos políticos, como em Espanha o Podemos ou na Grécia o Syriza. Num primeiro momento tivemos a indignação. Depois as pessoas saíram à rua e perceberam que não havia resposta. Num segundo momento, têm de ser os cidadãos a encontrar as suas respostas. E a Academia Cidadã tem aí também o seu lugar, porque é um grupo de pessoas que pensa soluções para o país.
Noutros períodos históricos convulsos, os artistas e os intelectuais tiveram um papel decisivo no imaginar de outros futuros. Em Portugal não existe silenciamento, mas tendo em conta a conjuntura seria espectável mais, não lhe parece?
Sim. E sinto outra coisa. Por exemplo, se o livro Trans Iberic Love fosse no registo da coitadinha, poderia bem ser um sucesso. Como não é coitadinha, mas foda-se!, foi silenciado. A mim interessam-me os momentos de mudança. Quero fazer parte deles. Algumas pessoas compararam o filme ao Torre Bela, sobre o 25 de Abril, no sentido em que ambos tentam perceber o que se passa em épocas distintas. O cinema também é isso. O Sérgio Tréfaut, que detesta filmes políticos mas que assistiu às misturas do documentário, às tantas dizia que havia gostado do que vira e que aquilo que havia sentido era proporcional ao que alguém teria sentido ao ver pela primeira vez o Torre Bela. Não são semelhantes, claro, mas ambos estão atentos a momentos históricos de transformação
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Como foram as condições de feitura do documentário?
Começou na forma de auto-investimento e depois foi necessário ir à procura de dinheiro. Em Portugal foi impossível. Mas como estava a trabalhar com um produtor francês para a adaptação do Trans Iberic Love em Paris, acabei por arranjar uma produtora lá que conseguiu verba para continuar a filmar.
A opção pela co-realização com a francesa Valérie Mitteaux deveu-se ao facto de entrar no documentário?
Também. Foi a primeira vez que co-realizei. Ela filmou as partes em que eu entro e não foi fácil porque não gosto de ser filmada… [risos]. Mas foi bom, porque era necessário um olhar exterior. E depois ela já tinha feito filmes sobre direitos humanos e questões fracturantes e é muito inteligente e critica.
A exibição fora do circuito comercial, em cineclubes ou escolas pelo país, resulta de uma opção ou é contingência?
O dinheiro que existia para o filme pagou-o e acabámos por adoptar o modelo de vários realizadores franceses, que tentam fazer o documentário sem o ceder às televisões. Ou seja, para terem alguma liberdade, fazem uma versão para TV e outra para cinema. Foi o que fizemos. A 25 de Abril passou na TV France a versão mais curta, que teve muita audiência. E depois viemos para Portugal, onde montámos o Dreamocracy.
Está também a trabalhar na nova longa-metragem de ficção, a adaptação do livro do ano passado. Em que fase é que está?
Está naquela fase em que o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) me disse que eu não percebo nada dos assuntos que quero abordar… [risos]. É isso. O ICA diz que trato os assuntos de maneira muito simplista e que não sei do que estou a falar. Portanto, não percebo de género, de movimentos sociais, de amor ou dos movimentos queer de Barcelona ou Paris. Enfim, acaba por ter graça.
Dedica Dreamocracy ao falecido Paulo Rocha. Porquê?
Há pessoas que mudam a nossa vida pela generosidade. Ele foi uma delas. O que faz a diferença é a forma como vivemos uns com os outros. Não posso estar aqui a dizer que sou progressista e que não durmo à noite porque existe uma pessoa na minha rua que tem fome e depois tratar mal quem está ao meu lado porque é emigrante. O Paulo Rocha era uma pessoa terna, que me amava e que eu amava. E tinha amor pelo cinema. Fez por mim aquilo que já pude fazer por outras pessoas e que é, num determinado momento, dizer: queres fazer cinema? Então, anda daí! Foi assim que acabei a fazer assistência de realização com ele. Para ele era importante a forma como se filma com as pessoas. Para mim também.