Tratado do Comércio de Armas entra em vigor sem os maiores exportadores do mundo
Pela primeira vez, um acordo internacional, subscrito por 128 países, regula as transferências internacionais de armas convencionais. Estados Unidos, Rússia e China, os três maiores produtores e compradores de armamento, ficaram de fora.
E não é só a ausência dos EUA que enfraquece o poder do documento, que é o primeiro acordo internacional que estabelece critérios globais para os fluxos comerciais e transferências de armas entre os países. Também a Rússia, segundo maior exportador global, e a China, detentora do maior exército do mundo, manifestaram a sua indiferença ou resistência face ao tratado, que não assinaram.
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E não é só a ausência dos EUA que enfraquece o poder do documento, que é o primeiro acordo internacional que estabelece critérios globais para os fluxos comerciais e transferências de armas entre os países. Também a Rússia, segundo maior exportador global, e a China, detentora do maior exército do mundo, manifestaram a sua indiferença ou resistência face ao tratado, que não assinaram.
Ainda assim, outros 128 Estados subscreveram o documento (bastava a ratificação de 50 países para o tratado se tornar lei internacional) e comprometeram-se a controlar todas as transferências de armamento, supervisionando qualquer contrato de venda de armas realizado no seu território, divulgando com transparência os fluxos e reportando explicitamente como e onde as armas serão usadas - tornando muito mais difícil a compra (legal) desse tipo de material por parte de países que estejam sujeitos a embargo ou que sejam suspeitos de violação dos direitos humanos.
Portugal e a maior parte dos países europeus - incluindo França, Alemanha, Reino Unido, Espanha e Itália, que integram o top 10 dos maiores fabricantes de armamento do mundo - assinaram e já ratificaram o tratado Arms Trade Treaty (ou ATT, na designação simplificada em inglês). Israel, outro dos países na lista dos maiores produtores de armas, fê-lo no passado dia 18, numa cerimónia em Nova Iorque. O embaixador, Ron Prossor, salientou a ligação do acordo aos “contínuos interesses de Israel em termos de segurança nacional e de combate ao terrorismo”.
O Presidente Barack Obama manifestou apoio ao tratado - que foi assinado pelo secretário de Estado, John Kerry, em Setembro de 2013 -, mas os EUA só ficarão vinculados à sua aplicação quando o documento for sancionado por dois terços dos membros do Senado. Desde o início do mês, as organizações norte-americanas que defendem o direito individual ao porte de armas, consagrado na segunda emenda da Constituição dos EUA, estão envolvidas numa campanha nacional de pressão: a bancada republicana, que em Janeiro dominará as duas câmaras do Congresso, já prometeu travar qualquer iniciativa.
A porta-voz do poderoso lobby das armas nos EUA, a National Riffle Association, disse que a organização receia que o Presidente exerça a sua autoridade executiva para ultrapassar o Congresso, “alegando o cumprimento das normas internacionais [do ATT] para racionalizar a adopção de políticas restritivas e de controlo das armas, nomeadamente no domínio da importação e exportação”. “Mesmo agora, com a implementação do acordo suspensa por falta de aprovação do Congresso, a Administração tem defendido internacionalmente a sua aplicação, o que consideramos escandaloso”, censurou Catherine Mortensen, ao site The Blaze, fundado pelo radialista e apresentador conservador Glenn Beck.
A igualmente conservadora Heritage Foundation, um think-tank de Washington, escreveu que, mesmo sem a ratificação do acordo pelos EUA, os entusiastas das armas no país sofreriam as consequências da sua aplicação, uma vez que 35% do mercado norte-americano de armas de fogo é constituído por material importado.
O secretário de Estado refutou todas essas críticas. “Nunca apoiaríamos um tratado incompatível com o exercício dos direitos garantidos pela Constituição”, frisou John Kerry, acrescentando que durante as negociações na ONU, ficou estabelecido que não haveria nenhuma “diluição” da legislação nacional ou do controlo soberano sobre a aquisição privada ou posse de armas de fogo. As regras do ATT, reiterou, são consentâneas com a Contituição dos EUA e reproduzem o “sistema rigoroso do controlo das transferências de armas” que o país estabeleceu. “Com o acordo, outros Estados e regimes vão elevar os seus critérios e proibir a transferência de capacidades para Estados pária ou grupos terroristas ou que pretendem desestabilizar certas regiões”, previu.
O texto final do tratado - que demorou quase duas décadas a ser negociado, até ser finalmente adoptado pela Assembleia-Geral da ONU, em Abril de 2013 - não limita ou condiciona o arsenal que cada Estado pode deter ou produzir, nem estabelece qualquer restrição ao tipo ou quantidade de armas que podem ser vendidas e compradas - aliás, até consagra a legitimidade deste tipo de negócio. O objectivo, lembram os promotores (e defensores) do acordo, é o aumento do escrutínio e a promoção da transparência no processo de transferência de armas convencionais, e a redução do comércio ilegal e do contrabando de armas por mercenários, organizações criminosas ou terroristas.
No entanto, os países signatários ficam sujeitos ao cumprimento de uma série de regras e critérios apertados na exportação de armamento, cuja venda deixará de ser autorizada quando o uso do material servir para a prática de crimes contra a humanidade, genocídio ou outros crimes de guerra, ou quando existir um forte risco de violação dos direitos humanos ou da lei humanitária internacional. Nesses casos, nos termos do ATT, o negócio (se for avante) será ilegal.
O tratado não regula apenas a venda de armas de fogo como revólveres, pistolas e espingardas e respectivas munições: abrange também granadas e sistemas de artilharia como morteiros, rockets ou mísseis, viaturas blindadas, tanques, drones, helicópteros e aviões de combate, navios militares e até submarinos - e ainda equipamento de apoio a combates e peças, componentes ou tecnologia para modificar ou reparar o armamento convencional.
Segundo os números da ONU, o valor das transferências globais de armamento aproxima-se dos 100 mil milhões de dólares anuais. Mas essa é apenas uma estimativa, que reconhecidamente sub-representa a real dimensão económica do negócio de compra e venda de armamento: como nota a Transparency Internacional, “o comércio internacional de armamento é um dos três negócios mais corruptos do mundo”.
Outras estimativas internacionalmente aceites apontam para a morte de meio milhão de pessoas por ano, ou duas mil pessoas por dia, em resultado do uso de armas de fogo e outro tipo de equipamento militar. E são muitos mais milhões as outras vítimas da “violência armada”: jovens ntegrados à força em organizações armadas; raparigas e mulheres que são violadas sob a ameaça de uma arma; populações obrigadas a abandonar as suas casas por tiros ou bombas.
Além dos terríveis custos humanos, a troca e circulação de armamento tem também um forte impacto em termos do desenvolvimento económico dos países mais pobres, cujos parcos recursos são muitas vezes canalizados para a aquisição de material bélico e para o financiamento das instituições militares, lembra a directora da coligação Control Arms, Anna McDonald. “O resultado inevitável é a ausência de investimento em serviços básicos, o que é devastador para as cerca de 1,5 mil milhões de pessoas que vivem em áreas afectadas pela fragilidade das instituições, pelo conflito ou pela violência criminosa organizada em larga escala”, conclui.