A vida normal de dois sem-abrigo

Esta é a história de Vítor e João. Como emprego, arrumam carros no Campo das Cebolas. Um vive nas escadarias da Sé, o seu palácio, outro num buraco sem luz nem ar, o seu bunker. Foram atirados para a rua. Mas não desistiram de nada

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São 7 da manhã e chove torrencialmente no Campo das Cebolas. Uma daquelas cargas de água que, em meia hora, provocam uma inundação em Lisboa. Não há ninguém na rua, excepto um homem franzino e hirto como uma estátua, com uma barbicha e um boné de pano na cabeça, mas sem chapéu-de-chuva nem qualquer intenção de correr para um abrigo. Ele não me vê, mas eu sim, da minha janela. Ali está ele, como todos os dias, a aguentar, a aguentar. Ainda não chegou nenhum carro ao parque, mas o horário é sagrado: às 6 da manhã, João desce da catedral até ao local de trabalho. Varre as folhas mortas e todo o lixo que possa ter-se acumulado junto à oliveira de José Saramago (tarefa pela qual a Fundação da Casa dos Bicos lhe paga um euro por dia), distribui os pinos pelos lugares vagos do parque de estacionamento.

A sua função é arrumar carros, até às 3 da tarde, hora a que começa o turno de Vítor, que se estende até à noite. Dividem assim a gestão do território, que integra um pequeno quarteirão da Rua dos Bacalhoeiros e os dois lados do pátio da Casa dos Bicos, incluindo o da Rua da Alfândega, onde o estacionamento é proibido. De todos os lugares da zona, aliás, só dois são absolutamente legais, não contando com um reservado a deficientes, dois a motos, outros dois à Fundação.

À semelhança do modelo de negócio de todos os arrumadores urbanos, o de João, de 64 anos, e Vítor, de 46, consiste em tomar conta dos veículos, mediante o pagamento de uma gorjeta.

Se vêem aproximar-se um funcionário da EMEL, correm para o parquímetro e retiram um ticket de 30 cêntimos, que colocam à pressa no pára-brisas de cada carro à sua responsabilidade. Os clientes não têm de accionar os parquímetros, nem de pagar o valor correspondente ao tempo que deixam o carro estacionado. Além desta poupança, os fregueses habituais beneficiam de um serviço personalizado de reservas e ainda, graças à excelência da gestão de superfícies, de uma garantia extraordinária de espaço supranumerário last-minute.

Confiam nos arrumadores, ao ponto de lhes deixarem as chaves dos automóveis, apesar de nenhum deles ter carta de condução. João e Vítor são conhecidos e conhecem toda a gente, desde a esquina do restaurante Lua Dourada até à última mesa da esplanada do Solar dos Bicos. Dão-se com os moradores, os donos e empregados dos restaurantes e lojas, os outros arrumadores e sem-abrigo, os músicos de rua, os guias turísticos, os condutores de tuk-tuk, os vendedores de relógios e óculos de contrafacção, os traficantes de droga e até os polícias.

A praça conhecida como Campo das Cebolas, que na realidade é o largo circunscrito pelas ruas dos Bacalhoeiros, Arameiros e da Alfândega, é um foco de todos os contrastes da cidade, com as suas leitarias e lojas de souvenirs, restaurantes chiques e tascas, alojamentos de luxo e pensões degradadas. Contígua ao Terreiro do Paço, nas traseiras do Ministério das Finanças, é um antro de marialvas, fadistas, turistas, vagabundos, queques, ciganos, traficantes, comerciantes, músicos, mendigos, mafiosos, ociosos, bêbados, polícias, ladrões, gourmets e apreciadores de gin tónico de fim de tarde. Tudo isto como uma dança ritual em torno da árvore do Nobel, entre manifestações anti-troika, multidões a entrar e sair dos barcos do Tejo às horas de ponta, praxes académicas e filas de pobres à espera da comida que chega na carrinha dos voluntários, todos os dias, às 20h30, sem falta, e que, para João, Vítor e a maioria dos “pindéricos” que vagabundeiam em torno do Campo das Cebolas constitui a única refeição do dia.

“Pindéricos” é como Vítor chama aos sem-abrigo que enchem as ruas, da Penha de França à Almirante Reis, e daí até à Baixa e à Avenida da Liberdade, alastrando-se pelo Cais do Sodré e a zona de Santos, ou desde Santa Apolónia ao Parque das Nações e a Estação do Oriente, aos milhares, com os seus cartões, as suas trouxas, as suas manias, as suas histórias, a sua fome.

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A pequena casa que Vítor construiu com tábuas, do lado de fora do bunker. A cadela Crazy e o gato Boris são a sua família

O Campo das Cebolas é uma das estações da sua vagabundagem, por causa das carrinhas. São várias instituições (Comunidade Vida e Paz, Concha de Santiago, Frei Fabiano, etc.) e vêm em diferentes dias da semana, com particularidades que os utentes conhecem: uma, de Torres Vedras, manda todos darem as mãos e rezar, depois de receberem o prato. Uma repete sempre a ementa. A sopa de outra provoca diarreia. Outra, a que João está particularmente atento, traz roupas e mantas. Ao contrário de Vítor, que manda a roupa para a lavandaria uma vez por semana, ele usa-a até à última, e depois vai buscar outra.

À chuva, encharcado da cabeça aos pés, João começa a posicionar os pinos de plástico, abrindo espaço para os carros dos primeiros clientes — gerentes de alguns restaurantes, funcionários da Fundação Saramago.

Há um enorme parque de estacionamento no meio da praça, mas esse é controlado por outros arrumadores. É um negócio demasiado chorudo para que não estivesse controlado por tubarões. Movimenta centenas de veículos e rende outro tanto em euros, por dia.

João e Vítor chegaram a trabalhar lá, antes de a crise apertar, mas não resistiram à pressão das invejas. Agora, “sem uma guerra”, seria impossível, diz Vítor. A competição é feroz. Há lutas violentas, retaliações e golpes intimidatórios. Há uns anos, um arrumador foi morto aqui, em circunstâncias que a polícia não apurou.

De momento, Vítor e João dão-se por satisfeitos por controlarem o perímetro dos Bacalhoeiros. Não é uma grande quinta, mas chega a render 10 euros nos dias melhores, o que a torna também alvo de cobiças.

É preciso montar guarda o dia inteiro. O abandono do posto por meia hora seria suficiente para que algum arrumador no desemprego invadisse o território e se instalasse.

João e Vítor formam uma empresa, em que o primeiro, por ser mais velho, é o patrão (esta hierarquia nem sempre é consensual), e distribuem entre si o trabalho por turnos, a cumprir rigorosamente. Em certos fins de tarde sem movimento, Vítor gostaria de sair mais cedo, mas tem de ficar a guardar o posto. A menos que, na arrumação dos últimos veículos, consiga colocar estrategicamente atravessados aqueles que só sairão no dia seguinte, por forma a ocuparem todos os lugares. Assim não haverá negócio para eventuais usurpadores.

O expediente está assegurado desde as 6 da manhã, quando João desce do palácio, até às 8 da noite, quando Vítor sobe ao bunker. Mas não é um trabalho full-time para nenhum deles. João tem outro emprego, que exerce na própria residência. Vítor, durante a manhã, ocupa-se da família.

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O abrigo de João, 64 anos, é a escadaria da Sé Catedral, no canto superior direito, junto à entrada

São ambos sem-abrigo, embora, em rigor, a designação não seja correcta, observa Vítor. “Abrigo temos sempre. O que nós somos é homeless. O João vive no seu palácio, eu no meu bunker.”

No caso de João, o abrigo é a escadaria da Sé Catedral. É lá que vive, no canto superior direito, junto à entrada, na confluência de duas paredes, para obter protecção do vento e da chuva.

Guarda as coisas por cima da paragem do eléctrico 28, no Jardim Augusto Rosa, entrada da Rua das Cruzes. Roupa, cartões, um colchão, saco-cama e manta. Às 8 da noite, após serem fechadas as portas da catedral, leva tudo para o seu canto, para dormir. Acorda duas horas depois, para ir buscar comida à carrinha. Geralmente prefere esta à das Cebolas, “onde se junta a escumalha toda. Metem-se à frente na fila, insultam e agridem, deitam comida para o chão”. A carrinha da Sé é mais calma e selecta.

Até à meia-noite, holofotes iluminam o monumento e as escadas. Só depois João volta a adormecer, após ouvir um pouco de rádio, até às cinco.

“A minha casa foi construída em 1149”, diz ele. “É a mais antiga do país.” Nas arengas dos guias turísticos, nas inscrições da parede e também através das suas explorações pessoais, aprendeu tudo sobre o seu palácio, a antiga mesquita, a conquista de Lisboa, as relíquias de S. Vicente. “Há uma pedra em que está gravada a cruz de David”, diz com ar misterioso.

Durante a tarde, João tem outra ocupação, para arredondar o salário. Trata-se de um ramo totalmente diferente, que exige skills de outra natureza: uma verdadeira incarnação de personagem. Só tem de descer um pouco as escadas, afivelar uma expressão desgraçada, estender um copo com algumas moedas no fundo e confiar na caridade dos crentes.

A concorrência não é muita: apenas uma mulher um pouco mais velha e aparentemente doente, a pedir do lado esquerdo de quem sobe.

Entre turistas e frequentadores das missas, milhares de pessoas cruzam a escadaria. O problema é que, quando dão esmola, optam pela mulher. É um caso de sucesso da mendicidade beato-urbana, talvez por ter uma muleta pousada junto ao joelho, por levantar a camisola mostrando as cicatrizes da barriga, ou por lançar, entre sorrisos, umas frases invocadoras da culpa cristã. João, com o seu boné coreano e a sua barbicha à Ho Chi Minh, bem injecta os olhos verdes de toda a infelicidade que consegue sentir e imaginar, mas não chega. No máximo, faz dois ou três euros por dia, enquanto a mulher factura mais de 100.

Ao início da tarde, a animação está no auge no Campo das Cebolas. Vítor corre de um lado para o outro, chamando os carros com gestos espaventosos. “Só portadores de vistos dourados! Só vistos dourados!” João recolhe os pinos, arruma as suas coisas no hall da entrada do número 14, conclui os últimos negócios complementares.

São uma actividade paralela, mas fundamental. Na rua, tudo se vende e compra, há um fluxo comercial permanente. Os bens são sempre transaccionáveis, embora os preços raramente ultrapassem os dez euros. Se uma T-shirt apanhada no lixo for comprada por 20 cêntimos e vendida por 80, é um negócio que vale a pena. Quem encontrar um telemóvel, o limpar e vender por dez euros já ganhou o dia.

Vítor comprou um relógio por três euros e vendeu-o por 20. Outras vezes não se importa de perder dinheiro, só para escoar mercadoria. “Não temos armazéns para guardar stocks, por isso os bens circulam muito rapidamente”, explica ele. “Todos ficam a ganhar.” Por exemplo, como ninguém tem onde guardar roupas de um ano para o outro, é normal que no início do Inverno haja uma corrida ao comércio de agasalhos.

A João deram três sacos-cama. Entregou dois a Vítor, que os vendeu, por cinco e três euros, a arrumadores de carros. “Foi abaixo do valor real, mas eles precisavam dos sacos.” Entregou cinco euros a João e ficou com três. Todos ganharam.

Noutra ocasião, ofereceram a Vítor três euroticket de seis euros e 80 cêntimos. Vendeu dois a um sem-abrigo, por quatro euros, que chegaram para levar a roupa à lavandaria. Gastou o terceiro em comida no Pingo Doce — água, conservas e comida de cão.

Há compradores para tudo, os produtos nunca ficam encalhados. Uma vez, ofereci ao Vítor uma televisão usada. Ele e João carregaram-na escadas abaixo. Mal puseram um pé fora da porta, um cigano ofereceu-lhes dez euros. “Foi logo, cinco euros para cada um.” Na pior das hipóteses, iam aos africanos da Praça da Figueira, que compram tudo, porque dominam um circuito de distribuição, que inclui venda de quinquilharia para países africanos.

“Somos retalhistas de rua. Compramos e vendemos”, diz Vítor. “Se não fosse isso, como é que vivíamos? Fazemos entre nós um mercado. Com o sistema de trocas, conseguimos ter o que precisamos. Mas também é necessário dinheiro. Na nossa sociedade, não é possível viver sem gastar dinheiro, todos os dias. Até os sem-abrigo têm de gastar dinheiro.”

Para além dos bens tangíveis, funciona também na rua um dinâmico mercado de serviços.

Vítor, por exemplo, vai comprar drogas aos turistas, mediante o pagamento de uma comissão. Não é tráfico, apenas serviço de estafeta. O último foi com um tenente de um navio italiano. Além da comissão de 50 euros sobre o preço da cocaína, ainda ganhou uma gorjeta. Mas essa deu-a a João, “por generosidade”.

Outro serviço para que ele e outros sem-abrigo são frequentemente solicitados é a transferência de fundos para o estrangeiro.

Basta acompanhar o cliente a uma casa de câmbios e preencher os papéis em seu nome para o envio de 50 mil ou 100 mil euros, geralmente para a China. Não custa nada e recebe-se dez euros pelo serviço. Nem Vítor nem João fazem isto, porque acreditam que mais tarde ou mais cedo haverá investigações policiais sobre transferências de capital suspeitas.

Vítor deixou-se porém tentar por outro conhecido esquema da imigração ilegal: o casamento. Conheceu, há três anos, uma ucraniana de meia-idade que lhe fez uma proposta inesperada: “Quer casar com a minha filha?”

A jovem candidata à cidadania europeia lá veio para a encenação. Fizeram fotografias juntos, pediram a amigos que, sob juramento, confirmassem a autenticidade da relação. Mas no dia da cerimónia o conservador disse: “Não vamos avançar porque se trata de uma fraude.” Ficou tudo calado, e foi Vítor quem quebrou o gelo: “Tragam lá o papel para desfazer isto.”

Há dias, João também se encarregou de um matrimónio, embora apenas do sector do estacionamento, com idêntico insucesso. Organizou, mediante o honorário prometido de três euros, todo o parqueamento em frente à Sé, onde decorreu a cerimónia. Mal esta terminou, os noivos partiram para a lua-de-mel sem pagar o prometido.

Nos negócios da rua, as fronteiras da legalidade não são fáceis de distinguir. Como tudo é informal, poderíamos pensar que nenhuma norma ética se aplica, e que vale tudo, desde que dê lucro. Mas não é assim. Precisamente porque não são definidas pela lei, as regras dependem do critério moral de cada um.

João e Vítor recusam traficar drogas, comprar ou vender produtos roubados. Não se deixam enganar. “Se o João me aparecer com um iPhone novo para vender”, diz Vítor, “eu olho para ele e olho para o iPhone e vejo logo que ali houve descuido de alguém”.

É verdade que as transacções que fazem não pagam impostos, mas não é isso que lhes tira o sono. “Eu já pago IVA sobre tudo o que compro nas lojas”, diz Vítor. “Não preciso de pagar mais taxas, porque também não tenho direito a nenhum benefício do Estado.”

Não é que nas Cebolas e arredores domine a alta criminalidade. Organizada, sim. Por exemplo, as romenas que atacam em dupla — um elemento distrai o turista, outro surripia-lhe a carteira ou o telemóvel. Vivem em hotéis na Almirante Reis e percorrem a Baixa durante o dia, agora quase exclusivamente atrás de chineses, que, é hoje do conhecimento geral, se passeiam com avultadas quantias nos bolsos, em cash.

“Desculpem, posso interromper?” costuma Vítor avisar os turistas. “Têm quatro carteiristas atrás de vocês.”

Já os ciganos vendedores de droga, esses, estão completamente inocentes. Pelo menos é o que alegam quando são apanhados. O haxixe, “pó” e “cavalo” que vendem aos turistas são falsos, feitos à base de caldos knorr e farinhas, pelo que não incorrem em qualquer crime.

Quando os intercepta na Rua Augusta, o que a polícia faz é tirar-lhes o dinheiro que ganharam durante o dia. Numa dessas operações, que Vítor presenciou, os agentes encostaram-nos à parede e colocaram todo o dinheiro no chapéu do homem-estátua.

O artista de rua manteve-se imóvel, como é seu apanágio, embora esfregando as mãos imaginariamente, sob o olhar danado dos falsos traficantes.

Ao chegar a casa, ao fim do dia, não lhe importará mais como ganhou o dinheiro do que importará aos ciganos como o perderam. Na rua, os dias não deixam rasto e cada ser aceita o que lhe coube em sorte na grande tômbola da sobrevivência. E para todos, sem excepção, desde que não tenham desistido da sua humanidade, há um chegar a casa, ao fim do dia.

O de Vítor é difícil e furtivo. Depois das oito, passa pela carrinha para apanhar alguma comida, pelo supermercado para comprar vinho e velas, se necessário, ração para cães e gatos. Sobe a Almirante Reis e todas as ruelas até ao seu bunker, que se situa no buraco coberto de lixo do que outrora terá sido a cave de um edifício, hoje sem tecto.

A aproximação deve ser discreta, e é preciso esperar que não haja nenhum vizinho na rua, ou à janela de algum dos prédios em redor. Ninguém pode saber que Vítor vive ali.

A descida executa-se em três fases. Antes de mais, atravessa-se uma rede, por um rasgão de cima a baixo. Depois vem a escalada de um muro de tijolos podres. Os pés são colocados nos poucos tijolos que deram provas de solidez.

A segunda fase inclui um salto. O corpo, virado de costas, vai deslizando até as mãos atingirem o nível de uma barra de ferro atravessada entre duas pedras. Há que segurar a barra, ganhar balanço e deixar-se cair, sem torcer os tornozelos nos calhaus, garrafas partidas ou lascas de caixotes despedaçados.

Atravessando a enorme lixeira, atinge-se o ponto da terceira fase. Na parede do edifício, em ruínas e totalmente emparedado, abre-se, a um metro do chão, um buraco com pouco mais de meio metro de diâmetro.

Só há uma forma de entrar. Primeiro, uma perna, depois a cabeça, o corpo, a outra perna. Na parede interior há uma saliência onde nos podemos agarrar. E eis-nos no bunker.

Era neste corredor contíguo à abertura que Vítor inicialmente dormia, por estar mais perto da luz e do oxigénio. Mas uma noite caiu do tecto um grande bloco de pedras e estuque. Por milagre, não lhe acertou na cabeça. Foi necessário adentrar-se mais na escuridão, até um quarto repleto de lixo, onde preparou um canto, para dormir.

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O abrigo de Vítor: uma plataforma flutuante, criada com duas portas de madeira deitadas sobre o lixo e os excrementos de um ocupante anterior

Aqui é o abrigo de Vítor — uma ilha roubada à lixeira. Ou antes uma plataforma flutuante, porque foi criada com duas portas de madeira deitadas sobre o lixo e os excrementos de um ocupante anterior. “Não quero saber o que está por baixo”, diz Vítor. “Esta manta já cá estava.”

A superfície é exígua, mas tem lá tudo: no sector da toilette existe um garrafão de plástico cortado ao meio e dois panos, para os banhos; material para fazer a barba, um perfume, marca Star. Numa espécie de prateleira, estão guardados brinquedos, peças de rádios, telemóveis e lanternas, velas, pacotes de vinho do Pingo Doce, material para as ganzas. Roupas, sapatos, bugigangas, coisas encontradas no lixo.

Ao lado fica o “frigorífico”, um tupperware com restos de delícias do mar, um pouco de água, um pouco de refrigerante, a ração dos animais.

Vítor tem uma cadela rafeira, a Crazy, e um gato amarelo às riscas, o Boris. Encontrou-os ali quando chegou, e adoptou-os. São a sua família. Do dinheiro que ganha no parque de estacionamento, a prioridade é a compra de ração para eles. Só com o que sobra, quando sobra, compra comida e cigarros para si.

A Crazy tem um ar bem tratado, o Boris o pêlo sedoso, corpo esguio e patas ágeis. Passa o dia fora, embora volte sempre, ao contrário da Crazy, que não consegue, sozinha, sair do buraco.

Comem de manhã e à noite, leite e ração, que custam um pouco mais de um euro por dia. A comida não pode ficar à vista, para não ser roubada pelo rato que vive no lixo, no outro lado do quarto.

“Quando não consigo ganhar dinheiro suficiente para trazer comida para casa, tenho de ficar até mais tarde, ou fazer algum daqueles serviços extraordinários, de comprar droga para os turistas”, explica Vítor. Mas quando está frio tem de vir para casa mais cedo, para se deitarem os três e se aquecerem uns aos outros.

No aposento, o ar é rarefeito, o cheiro concentrado (apesar do spray que Vítor espalhou, antes da minha visita) e a escuridão total. A iluminação é feita com velas, que ficam acesas toda a noite, também para aquecer e para afastar mosquitos e melgas. É mais uma despesa: a 25 cêntimos cada vela, Vítor gasta 50 cêntimos por dia, 15 euros por mês. “Mais do que a conta de electricidade em algumas casas.”

À noite, Vítor brinca com Crazy e Boris, diverte-se com os jogos do telemóvel, fuma duas ganzas e bebe um litro de vinho, para conseguir dormir duas horas.

Sinto uma barreira de estranheza, quando tento imaginar aquele sítio à noite, o silêncio, a humidade, o sufoco, mas nesse momento Vítor mostra-me os livros que guarda por baixo do travesseiro: uma Bíblia, um manual da Igreja da Cientologia, o Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago… e um livro meu, Longe do Mar.

Mais escondido, à cabeceira, está a peça central de todo o sistema de defesa do bunker: uma espada de lâmina curta, disfarçada no interior de uma bengala.

Será usada apenas em último recurso. Uma série de armadilhas espera o eventual intruso: tijolos instáveis, tábuas soltas, buracos, lixo, já para não falar de Crazy e Boris. “Deixo objectos de plástico no chão, para fazer barulho, se alguém entrar durante a noite”, diz Vítor. O plano está bem delineado. Um plano terrível. “Se alguém vier aqui durante a noite, só pode ser para me lixar. Por isso, lixo-o eu.”

Confirmada a presença do adventício, será apagada a vela. Vítor não precisa de luz, porque conhece de cor cada centímetro de chão. Já o outro é certo que irá tropeçar e cair. Numa luta corpo-a-corpo no escuro, Vítor não terá dificuldade em dominá-lo. Depois, é só puxá-lo para dentro, matá-lo com a espada, sair e tapar a entrada com tijolos. O atacante ficará lá sepultado.

A segurança é uma das preocupações centrais dos sem-abrigo. “Viver nas rua é difícil”, diz João. “As pessoas vêm à noite para roubar.” Aconteceu-lhe várias vezes, geralmente com murros e pontapés, por isso dorme calçado, para não lhe roubarem os sapatos, e com uma barra de ferro à cabeceira. “Acordo várias vezes durante a noite, para ver se a minha comida ainda lá está. Muitos sem-abrigo não vão às carrinhas, preferem roubar à noite a comida dos outros.” É mais vantajoso por isso dormir em grupos, fazendo turnos de vigilância, como acontece na estação velha do Terreiro do Paço, ou nas arcadas da Almirante Reis. Pelo contrário, nos albergues institucionais, a concentração de sem-abrigo apenas torna a experiência mais perigosa. João evita-a a todo o custo.

Quando dormia no Terreiro do Paço, Vítor acordou uma vez sob uma chuva de pedradas. Um bando de rapazolas decidia armar-se perante as miúdas, à saída do karaoke, competindo a ver quem acertava nos sem-abrigo.

Vítor e João são pessoas normais. Há quem, por muito menos, tenha abdicado da sua dignidade, mas não eles. Não estão na rua por serem inadaptados. Ao contrário, o que fizeram foi “adaptar-se”, explica Vítor. E agora vão ter de enfrentar um novo desafio de adaptação, por causa desse monstro que ameaça as suas vidas, a grua que está prestes a chegar ao Campo das Cebolas.

João, que ainda consome drogas, recusa-se a traficar. E, se tem acumulado agasalhos nas malas que guarda na Casa dos Bicos, é para os distribuir no Inverno por outros sem-abrigo.

Vítor desenha, lê, tem uma página no Facebook, a que acede através do wifi do telemóvel e de passwords roubadas. Está a par das notícias, “porque a vida não pode ser apenas arrumar carros”.

Quando estamos juntos e algum pobre nos vem pedir esmola, eu não dou, mas eles dão, mesmo que seja a última moeda que têm no bolso.

Porque fazem eles isto? Para me provocar? Só depois de me aproximar muito consegui perceber esse sentimento de estarem na mesma luta, não obstante todas as rivalidades e agressões. Não na luta pela sobrevivência, que essa é solitária, mas pela sanidade.

A vida na rua enlouquece. “Tudo o que passamos, as drogas e o álcool que é preciso consumir”, explica Vítor. “As pessoas passam-se. Isto só se aguenta com muito vinho. Mas esse hábito destrói-nos. Alguns começam a beber logo pela manhã, para parar de tremer.”

João está de acordo: “Isto faz com que um gajo vá à loucura mesmo. Não acredito que todos os que vemos assim sejam malucos de nascença.”

Um, por exemplo, só se ri, “parece um boneco”. Anda sempre atrás de alguém. “Uma vez dei-lhe um cigarro e ele veio atrás de mim”, conta Vítor. “Sozinho não se consegue fazer à pista. Tem menos de 30 anos.”

Outro começou a esquecer-se de tudo. Deixou de se calçar, ia ao supermercado e não comprava comida, mas coisas esquisitas, de que não precisava. “Era preciso dizer-lhe o que fazer”, conta João. “Era um pau-mandado. Até tinham de lhe dizer quando tinha de ir à casa de banho.”

Vítor contactou uma associação, arranjaram-lhe um psicólogo, foi internado. Pouco depois, morreu. “Da última vez que o vi, ele já não conhecia ninguém”, recorda Vítor. “Dei-lhe um pacote de leite, mas ele nem sabia para que servia a palhinha. E era um tipo supervivido. Tinha 36 anos.”

Há ainda um que esvazia todos os caixotes do lixo que encontra, outro que come coisas do chão. Todos os dias chegam novas pessoas à rua, e é vê-las como lutam, para se adaptar. Vítor conta que nos últimos quatro dias viu chegarem quatro. Entre elas uma rapariga, que se aproximou de um grupo na Almirante Reis. “Posso dormir aqui? Para não ficar sozinha?”, perguntou ela.

Percebia-se facilmente que era o seu primeiro dia. A partir daí, quase será possível contar as marcas do seu percurso, como as camadas de líquenes que confirmam os milénios numa ponta de sílex. O que nunca se saberá é o que lhe ditou o destino, os níveis de violência a que foi submetida, as portas que, atrás dela, deixou fechadas para sempre.

Vítor apanhou a primeira sova do pai aos sete anos, por lhe ter deixado cair a garrafa de vinho. Pelo menos dessa vez sabe qual foi o motivo. O vinho era importante já para o avô, que veio da zona rural de Alcochete para o bairro Alfama, onde conheceu a avó de Vítor.

Este passou a infância lá, em Alfama. Os pais conheceram-se na Rua dos Correeiros, ela vendia ao balcão, ele era estafeta, bebia e batia nos filhos e na mulher. Vítor lembra-se de, desde muito cedo, se tentar colocar entre os dois, para proteger a mãe, e levar por tabela.

Às águas furtadas onde viviam não chegava a água canalizada do prédio, pelo que era preciso encher garrafões na fonte e subi-los até ao 5.º andar. Uma noite, Vítor acordou com sede, viu um garrafão, tirou a tampa e bebeu. Era lixívia, foi em coma para o hospital. Tinha seis anos e quase morreu.

Vítor andou na escola até ao 7.º ano. Como reprovou duas vezes, o pai mandou-o trabalhar.

Vinte anos antes, na Cruz de Pau, na margem sul do Tejo, a infância de João não foi muito diferente. O pai bebia e batia na família toda. Trabalhava nas obras, era analfabeto, como a mulher. Dos seis filhos, só um estudou. Mas todos apanhavam pancada.

Mal chegava a casa, bêbado, o pai gritava para a mãe: “Minha puta! Onde é que eles estão?” Referia-se aos filhos, recorda João. “Dava pontapés em tudo, destruía tudo.” João fugia de casa e só regressava após se certificar de que o pai já dormia. “Quando não estava bêbado, era um bom pai. Mas estava quase sempre bêbado.” Morreu alcoolizado, num choque da sua motorizada contra um carro.

João também só estudou até ao 8.º ano. Foi trabalhar para as obras e pouco depois, tal como Vítor faria uma geração mais tarde, iniciava o consumo de drogas.

Vítor teve várias profissões. Trabalhou na limpeza do centro comercial Dolce Vita, na Amadora, na construção da Ponte Vasco da Gama, como fiscal das betoneiras, foi tipógrafo e depois operador de computador na mesma gráfica, operador de manutenção da mata de Monsanto.

Sempre a tentar equilibrar-se, sempre a reerguer-se. Pouco depois dos 20 anos, teve um filho. Mais tarde uma filha. Viveu em quartos, em apartamentos, ou na rua, durante o primeiro mês de um emprego, antes de receber o primeiro salário. À hora do almoço, quando os colegas iam todos ao restaurante, ele, cheio de fome, dizia: “Vou ali dar uma volta, vou ter com um amigo”, porque não tinha para onde ir, nem dinheiro para comer. “Vivo em casa de uma tia”, mentia, quando lhe perguntavam.

Noutros períodos, chegou a arrendar um apartamento de três quartos, com um salário de 380 contos limpos e conta no Barclays. “Não é qualquer sem-abrigo que tem conta no Barclays!” Mas sempre em intermitências com a heroína, tratamentos, recaídas, contratempos. Sempre alguma coisa corria mal. “Quando estou a endireitar a vida, acontece qualquer coisa.”

Durante o trabalho em Monsanto, teve um acidente. Segurava um tronco de eucalipto que um colega cortava com uma motosserra. Ao puxar o tronco para a frente, a motosserra atingiu-lhe a mão. O osso ficou exposto, o pulso quebrado. Os colegas entraram em pânico, mas não fizeram nada. Foi Vítor que se arrastou até um restaurante, onde uma mulher lhe deu guardanapos para estancar o sangue. Vítor segurou a sua própria mão, para a manter no lugar, até chegar ao hospital. “Eu é que salvei a minha mão”, diz ele. “Já tive situações em que, se entrasse em pânico, estava lixado.”

Tal como é sempre ele que se condena, também é ele que se salva. Sem no entanto alguma vez se afastar decisivamente da vulnerabilidade fundamental que é a sua, como se qualquer imprevisto o atirasse sempre para fora, para a margem a que pertence.

João, quando atingiu a idade de cumprir o serviço militar, foi mandado para Angola. Como faltou à primeira chamada, fez a recruta em 1972 e seguiu para a guerra em 1973.

O 25 de Abril apanhou-o lá, em Bolongongo, província do Cuanza Norte. Integraram-no no 2.º Bart (Batalhão de Artilharia) 6222, que esteve em Piri, a 30 quilómetros de Luanda, e depois em zonas onde os “turras” lançavam ataques de retaliação contra fazendeiros, depois da revolução em Lisboa.

“Cheguei a ir a fazendas onde estava tudo morto”, lembra João. Foi um período de confusão, traições e vinganças. “Os turras faziam emboscadas, túneis, ataques a civis. Quando os apanhávamos, entregávamo-los à PIDE. Na cadeia, davam-lhes porrada até dizerem onde estavam os companheiros.”

Foi um tempo fora do tempo, um buraco negro aspirando João de um mundo mesquinho para outro mundo mesquinho, sonegando-lhe a Primavera de 1974, todo esse alimento onírico que à desilusão futura daria algum sentido e alívio. “Não percebi logo que o 25 de Abril significava acabar com as colónias”, diz ele.

Ainda antes de partir, na recruta, conheceu uma mulher, com quem casou, obrigado. “Desonrei-a, e explicaram-me que, ou casava, ou apanhava dois anos de prisão.” No dia em que regressou, em 1975, disseram-lhe que a tinham visto com outros, e ele decidiu separar-se. “Nunca me divorciei. Recebi uma carta do Registo Civil, mas não apareci.”

A certa altura, perguntei a Vítor e a João qual tinha sido o melhor período das suas vidas. Para João, foi quando viveu em Espanha, durante quase 15 anos.

Partiu em 1977, com a mulher com quem vivia e que estava grávida. Arranjaram emprego na casa de uma viúva rica, antiga cantora de ópera, em Madrid. Ele era mordomo, ela cozinheira.

Era um prédio todo em vidro, junto à Plaza del Rey. A viúva dava festas e João servia à mesa, fardado. Tinha um dia de folga por semana, ia às compras de carro, com o motorista, passava temporadas na vivenda de campo da família. A viúva gostava dele e até queria que tirasse a carta de condução, para ser seu chauffer.

A filha nasceu e ficou com um casal amigo, em Portugal. Terá sido essa uma das razões, ou “saudades da família” em geral, que os fizeram voltar, em 1993. Ainda que não tenham iniciado nenhum relacionamento com a família, nem com a filha, que ficou daí em diante entregue à mãe de João.

Este voltou a trabalhar nas obras, a consumir heroína e a sair com outra mulher. A legítima desconfiou, montava-lhe vigilância. João não gostou disso e abandonou-a. A outra deixou-o pouco depois.

Procurou apoio da família, mas não quiseram saber. “Meteram-se todos contra mim. Estou na rua por causa da minha família”, diz ele. Foi há dez anos.

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Vítor completou o 9.º ano, nas Novas Oportunidades, a viver na rua, depois inscreveu-se num curso de programação de computadores

O melhor tempo da vida de Vítor foi o do tratamento de recuperação. Mais de uma centena de ex-toxicodependentes viviam numa quinta de oito hectares no Alentejo. Trabalhavam, faziam desporto, tomavam conta uns dos outros. Os mais velhos na instituição responsabilizavam-se pelos mais novos. Falavam sobre os problemas, em reuniões diárias, distribuíam tarefas.

Vítor, que viveu lá cinco anos, estava incumbido da saúde e da farmácia. “Se alguém precisava de um Ben-u-ron, era eu que dava.”

Era uma comunidade de recuperação e entreajuda. “Dávamo-nos todos bem. Se um tinha frio, outro tirava a T-shirt para lhe dar. Cá fora, se eu fizer isso, sou considerado um otário. Foi um tempo muito fixe, enriqueci-me muito.”

Neste centro, Vítor arranjou uma companheira. E foi por ela que decidiu sair, com o plano de construírem uma vida em comum. Ele à frente, para encontrar emprego e casa.

A primeira coisa que fez foi telefonar ao pai. Encontraram-se no meio da rua, à chuva. O pai chegou, saiu do carro, não cumprimentou, atirou três contos em notas para o chão e disse: “Tu não és meu filho.” Meteu-se no carro e arrancou. Vítor, encharcado, foi ter com ele a casa, de táxi, mas ele não abriu a porta.

Quando Vítor arranjou trabalho, numa empresa de catering, a companheira veio ter com ele. Pouco depois, ele apanhou-a a consumir heroína e recaiu também. Fizeram os dois o desmame, sozinhos, a sangue-frio. Conseguiram, Vítor está limpo, até hoje, mas ela adoeceu, com toxoplasmose, e morreu.

Vítor completou o 9.º ano, nas Novas Oportunidades, a viver na rua, depois inscreveu-se num curso de programação de computadores, que lhe daria o 12.º ano. Ganhava 200 euros por mês, pagava 175 de renda por um quarto. Vivia com 25 euros, mas estava disposto a tudo para fazer o curso. “Se conseguisse, arranjaria depois um estágio. E queria que o meu filho um dia dissesse: ‘O velho pode ter sido isto e aquilo, mas aos 45 anos foi tirar o 12.º ano’.”

A renda do quarto foi aumentada, Vítor não conseguiu pagar, foi despejado. Viveu na rua, mas não interrompeu o curso. Com um grupo de 15 sem-abrigo, ocupou uma mansão abandonada.

Tinham água, uma puxada de electricidade, um quintal com legumes e flores. Mas a polícia chegou um dia e deu dez minutos a todos para abandonarem a casa. Vítor encontrou, numa pensão, um cubículo sem electricidade, que o obrigava a fazer os trabalhos de casa numa loja de indianos.

Entretanto, a mãe tinha morrido, e o pai, que é diabético, foi submetido a uma cirurgia, na qual lhe foram amputadas as duas pernas.

Ficou em casa sozinho, numa cadeira de rodas, e Vítor foi viver com ele. Cozinhava-lhe as refeições, levava-o à casa de banho, mas nem por isso ele deixava de o maltratar. “Batia-me, como se eu tivesse cinco anos. Ele ali, sem pernas, e eu com as mãos atrás das costas a gritar: ‘Se quiser dar, dê.’ Mas não ia bater no meu pai.”

Na véspera do exame final do curso, Vítor estava desesperado, a estudar, mas o pai insistia em tirar-lhe o computador, que queria usar para ver a Sport TV.

“Porque passas tanto tempo ao computador?”, perguntava o pai.

“Então, se fosse carpinteiro, precisava de martelo e pregos, como sou programador, preciso do computador. E tenho o exame amanhã.”

O pai não se importou, tirou-lhe o computador. “Ele, que quando eu tinha 12 anos me tirou da escola porque os meus testes não eram bons, agora, aos 45 anos, não me deixava fazer o último teste.”

Vítor ainda tentou, mas, segundo o professor, a resposta à pergunta mais importante estava incompleta. Reprovou, por meio valor.

Dias depois, aproveitando o momento em que o pai foi a um tratamento, no hospital dos Capuchos, Vítor saiu de casa e deixou a chave. “Agora, não sei como ele se safa. Se rasteja até à cozinha e à casa de banho. Nem quero saber. Toda a gente tem o que merece. Nem mais nem menos.”

Vítor é diabético, como o pai. Foi ao médico, que receitou uns comprimidos que deveria tomar sempre, mas não toma. “Deixavam-me com uma grande moca. Também tinha uma maquinazinha para controlar a insulina, mas perdi-a. Como um gajo anda sempre em mudanças… Às vezes, sinto-me um bocado esquisito. Mas pode ser da fraqueza. É raro tomar pequeno-almoço. Há muitos dias em que a primeira coisa que como é uma sopa do Exército de Salvação, às 7 da tarde.”

Outro problema é os dentes. Vítor conseguiu uma placa, da Segurança Social mediante um respeitável argumento: “Trabalho na restauração, o sorriso é fundamental.” Mas a placa rapidamente se partiu em três. Quando a levou ao técnico, ele foi claro: “Não pagou nada por esta placa, pois não? É que o material é fatela. Foi comprada nos chineses.”

João já teve quistos no cérebro. “Começava a ver tudo enevoado, e caía. Amigos levaram-me para o hospital, cheio de sangue. Fiquei internado dois anos.” Acredita que foi consequência dos comprimidos que lhe deram quando se queixou de sequelas psicológicas da Guerra Colonial.

Agora tem uma hérnia. No hospital, durante uma crise, disseram-lhe que tem de ser operado. Mas isso implica passar dois dias no hospital, perdendo o “salário” do parque de estacionamento.

“Só tens uma hipótese”, sugere Vítor. “Vais poupando, até teres o dinheiro de dois dias.”

Mas há o problema da grua. Pode chegar a qualquer momento. O prédio ao lado da Casa dos Bicos está em obras, e uma gigantesca grua vai ocupar a via pública, diz João. Isso significa que não haverá lugares de estacionamento e os dois sócios perderão o emprego.

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Quando a grua ocupar a via pública, João terá que se dedicar a tempo inteiro ao seu segundo emprego

João fala da grua como um monstro mitológico. Tudo nela é desmesurado e assustador. Vai ocupar todo o quarteirão, durante um ano e meio, pagando uma taxa de 15 mil euros por dia. “A grua vai chegar amanhã, já está aqui a polícia”, diz ele, todos os dias, num exercício de pensamento mágico.

Há uma estranha mas intensa apropriação dos espaços da cidade por quem vive na rua. Habitando a margem, eles são, de certa forma, os verdadeiros cidadãos. Vêem coisas que aos outros passam despercebidas.

Nas escadas da Sé, há duas semanas, João deparou-se com uma luz muito intensa, um círculo branco, a uns 200 metros de altitude. Girou no céu, em torno de outro círculo luminoso mais pequeno, antes de desaparecer. “Mas não acredito que sejam extraterrestres. Inclino-me mais para coisas de espionagem”, diz João.

Já Vítor acredita que as 100 ou 200 pequenas chapas metálicas que observou a voar em formação são manifestações de vida intergaláctica. “Os americanos há muito que viajam para outros planetas. Porque é que no Google Maps não se vê a área 51, em Roswell? Alguém esconde algo.”

Para Vítor, há outros mundos, acima e abaixo de nós. No fundo dos mares há uma civilização de sereias. Está provado. Foram encontrados esqueletos dentro de baleias. Crânios e membros no estômago de tubarões. “Os gajos das petrolíferas andam a mapear o fundo do oceano e divulgaram imagens de uma mão estranha colada à janela do submarino. A mão de um ser metade humano, metade peixe.”

Vítor passa horas na Internet à procura de coisas inexplicáveis. “Foi encontrado um martelo com 650 milhões de anos. Datado com Carbono 14. Há vestígios de sandálias com 300 milhões de anos.”

Tem um telemóvel sem saldo, mas com acesso à Internet, por wifi, num sistema que desenvolveu para acompanhar a vida do filho, através do Facebook.

Viu-o apenas uma vez, num funeral. “É um rapaz alto e magro, de óculos. Não tive coragem de lhe falar.” Pediu-lhe amizade no Facebook, mas ele nunca respondeu.

Quando a grua chegar, será preciso “fazerem-se à pista”. Vítor tenciona ocupar um pedaço de passeio do outro lado da rua. O plano de João é dedicar-se full time ao segundo emprego. A seu pedido, dei-lhe uma muleta que me sobrou de um entorse. Colocou-a a seu lado, na escadaria, para competir com a outra pedinte na corrida da desgraça. Mas desistiu. “Não sou capaz, não é honesto.”

Com o avanço do Inverno, Vítor apanhou um susto. A chuva e o vento provocaram a queda de um enorme pedregulho junto à entrada do seu refúgio. “E se eu fico lá dentro?”, pensou. E meteu-se a construir uma pequena casa com tábuas, do lado de fora do bunker.

A estrutura está periclitante, porque pregar pregos despertaria a curiosidade da vizinhança. As placas equilibram-se por um sistema de forças. Tudo está pensado com minúcia de engenheiro. A tábua superior, inclinada para que a água da chuva escorra, apoia-se num pacote de vinho tinto moldado na perfeição e fechado de forma a que a pressão do ar no interior produza um efeito de almofada, absorvendo as vibrações da estrutura.

A calafetagem é feita com sacos térmicos do Pingo Doce (“criei um efeito de estufa”) e todas as entradas de ar foram controladas colocando um cigarro aceso no meio do recinto, e registando as direcções em que o fumo se movimentava. “Assim posso dormir num ângulo desviado de todas as correntes de ar”, explica Vítor. Para garantir os banhos, meias garrafas de plástico foram espalhadas pela lixeira para captar água da chuva.

As condições melhoraram muito. A um canto da casa nova, Vítor colocou até um menino Jesus, um pequeno burro de barro e um galo de Barcelos — o seu presépio. Mas eu senti mais frio e desconforto do que na primeira visita.

Pousei um joelho na cama, deixei que a Crazy viesse brincar comigo na manta áspera e senti que a minha pesquisa da história de Vítor e João tinha chegado ao fim da linha, ao limite da minha utilidade como repórter. Agora que somos amigos, como posso viver com isto?