A mãe do menino d’oiro

D. Dolores, Dolores Aveiro, é a mãe de Cristiano Ronaldo. Tem uma história de pessoa humilíssima que sonhou o sonho de ser feliz. As coisas simples vão bem com ela.

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Em resumo, foi esta a sequência: D. Dolores chega a casa, passa um iogurte grego e uma gelatina ao neto. Não tira os saltos de uns dez centímetros, apesar de ser fim da tarde e do cansaço. Pergunta: “Vai ser longa a história? Por causa da garganta. E quero ver o jogo.” Não viu o jogo. O Real Madrid ganhou por quatro a zero, Ronaldo não marcou mas assistiu dois golos. A história, a conversa, foi longa. Estava quase sem voz. Continuou com a voz abafada quando terminámos, hora e meia depois.

Não parece ter 60 anos. A pele é bonita, lisa. Não exibe os sulcos de uma vida pobre e triste. Nem se apagou um sorriso e uma candura que pareceriam impossíveis (atendendo ao tanto por que passou, o orfanato, os maus tratos, a carestia). Há nela, quando fala do gosto de lavar o quintal, de mangueira, descalça, uma espécie de milagre. Como uma criança que chapinha na água e que não conhece maior prazer. A água da sua mangueira, o seu quintal. Qualquer coisa que é sua depois de uma vida espoliada.

Espoliar: tirar ilegitimamente.

Foi espoliada pela vida (passe o tom melodramático da frase). Então lutou, quase desistiu, lutou. O seu testemunho é um retrato do que a pobreza faz. Do que é sobreviver a partir do chão. Há nele uma humanidade que comove e que se sobrepõe ao grito, à urgência, ao rude.

No final da entrevista, prestou-se às fotografias. Foi uma moça divertida com este papel. Uma vez ou outra brincou com o neto. “Como é que o pai faz quando marca um golo?” E o menino de quatro anos desliza pelo chão, de joelhos, como o pai, o melhor jogador do mundo, desliza pelo relvado, e culminam, um e outro, a celebração com um gesto de braço e punho erguido. Cristiano também imitou a pose do pai, aquela pose de gladiador, que antecede a marcação de um livre. Pernas abertas, cara furiosa, a arfar. A avó delirava. Este menino e o pai deste menino são os seus meninos d’oiro.

Não falámos de Messi nem de rivalidades. Não falámos dos outros filhos (além de pequenas referências). A entrevista foi combinada com as editoras da Matéria-Prima, que lançou o livro Mãe Coragem, escrito por Paulo Sousa Costa. Foi com uma delas que chegou a casa, e seguiu directa para a cozinha e o iogurte e a gelatina. A outra estava lá, à espera. Vinham de um evento, fora de Lisboa. Tinha chorado um pouco e os olhos estavam esborratados. Não chorou nunca na entrevista.

No Facebook, onde é seguido por mais de cem milhões de pessoas (é mesmo isso, cem milhões de pessoas), Ronaldo escreveu, ao lado dela, erguendo o livro: “A minha mãe é, sem qualquer dúvida, uma mãe coragem. Sinto-me muito grato e orgulhoso por ser filho dela e tê-la na minha vida.”

Eis aqui a D. Dolores, nesta terça-feira.

Comecemos por uma recordação da infância do Ronaldo. Uma brincadeira consigo. Uma história. O que é que lhe ocorre?
[muito prontamente] Quando ele era pequenino, eu chorava muito pela vida que levava. Ele dormia na minha cama. Dizia: “A mãe que não chore. Quando for grande, vou ganhar bastante dinheiro. Vou comprar uma casa e tirar a mãe do trabalho.” E foi verdade.

Quantos anos tinha quando dizia isso?
Uns cinco, seis anos. Foi uma coisa que me marcou para sempre.

Já dizia que ia ser um grande futebolista?
“O que é que queres ser quando fores grande?” “Quero jogar à bola.” Mas nunca julguei que chegasse ao patamar a que chegou. Com o passar do tempo, é que vi que o meu filho tinha dom para o futebol. Vi que ia dar alguém. Às vezes, penso que é um sonho.

E ele, imaginava que ia chegar onde está?
Não, não. Diz que se eu não o deixasse vir para cá [Lisboa] não dava jogador. Trabalhava na construção civil ou aprendia uma arte. Como o irmão mais velho. O irmão trabalhava em alumínio. Fazer janelas, portas.
Dizia que ia jogar à bola, ganhar muito dinheiro e ajudar a mãe. Mas nunca lhe passou pela cabeça. Dizia por dizer.

O que quero saber: ele sempre acreditou? Vemos hoje que tem, como dizia o meu colega fotógrafo, Nuno Ferreira Santos, “um querer gigante”. Todo ele é força de vontade...
E trabalha muito. Quando veio, aos 12 anos, passou por muito. A maneira de ele falar: gozavam.

Este sotaque que tem era o que ele tinha?
Sim, e talvez pior, como criança. Ele telefonava-me de uma cabine. Falava e chorava. “Mãe, vou desistir.” “Filho, se é disso que gostas, luta. Luta, que a mãe não te vai cortar [as pernas].” Ele foi percebendo aquilo que ele era. Havia um treinador que era da Madeira e comunicava-me: “O Ronaldo é um grande jogador. Tem vontade. Acaba o treino e vai outra vez para o ginásio. Criar músculo.” Quando ia à Madeira, de férias, pegava em baldes cheios de pedra para fazer musculação. Punha meias grossas cheias de pedra que amarrava contra as pernas [aponta para a barriga da perna].

É uma mistura de talento, vontade e trabalho?
São essas três coisas. Ele é uma pessoa que quer sempre mais. Trabalha para mostrar sempre mais.

Para mostrar a quem?
A todo o mundo. A ele próprio. A pensar: “Sou capaz, vou fazer.”

Nunca duvida?
Não. Ele mete na cabeça que é capaz e consegue.

Quando é que foi inseguro?
No princípio, quando chegou aqui. Para se adaptar. Na escola. Eu dizia-lhe: “A mãe vai aí no fim-de-semana, vais ficar bem.” “Venha, venha ver o jogo.” Vinha. Ficava comigo à noite. Já ficava calmo. A vontade de querer vencer mesmo: foi a partir dos 15, 16 anos.

Já foi duas vezes o melhor do mundo e agora está numa de bater recordes. Ser o melhor marcador... Fala desses objectivos?
Fala. Comigo, com os irmãos. O ano passado disse assim: “Bem, marquei 31 golos. Tenho esperança de receber a bota [de ouro]. Para o ano, a ver se consigo marcar mais.” A prova disso: ainda não está a meia volta dada e já tem 25 golos.

Sempre tiveram uma relação assim íntima? Para ele, sempre foi fundamental tê-la por perto?
Sim. Um rapaz assim que tenha ao lado um bom pilar ajuda muito. É um homem feito, hoje. Tem os pés assentes na terra. Mas gosta que esteja ao lado dele.

Porque é que acha que ele nunca se deslumbrou?
Porque dá valor àquilo por que passou. Foi uma criança que viu os outros ter coisas melhores do que as dele. Sabia que tinha consoante aquilo que eu podia dar. Tanto que disse: “Mãe, vou ser pai. Quero que a mãe dê uma educação ao meu filho como aquela que me deu a mim.”

Quando é que ele soube do tanto que a senhora passou na sua infância?
Sempre contei. Os meus quatro filhos e eu, à noite, quando se estava na cama, cantava para eles. Cantava músicas tristes. “Menina que estás fazendo, sentada no cemitério, sozinha...” Essas coisas assim. O Ronaldo sabia que eu tinha madrasta. Tratava-a por mãe, mas ele sabia que não era a minha mãe verdadeira. Nunca escondi nada dos meus filhos.

Dê-me um momento da sua infância com a sua mãe, feliz. Ela morreu quando tinha cinco anos.
Era bordadeira. Bordava com vizinhas, muitas senhoras. As toalhas eram muito grandes. Cada uma bordava numa ponta. Sentia-me feliz quando a minha mãe bordava e me punha no meio das pernas dela. Elas a cantar e a bordar. A minha mãe não tinha tempo de dar colo. Trabalhava muito para sustentar os filhos. O meu pai nunca foi um pai... São coisas da vida.

Sendo diferente, acabou por acontecer o mesmo consigo. Era a D. Dolores que levava o barco, que ganhava.
Pois. O meu marido não ganhava muito. Além de que, o pouco que ganhava, bebia. O ir para o Ultramar..., ficou revoltado. Tínhamos uma filha com um ano. Depois fiquei logo grávida do meu filho. Foi quando ele foi. Depois do 25 de Abril, quando a gente pensava que já não ia mais à tropa. Para Angola. Treze meses. Foi o suficiente.

Era um homem que falava ou que metia para dentro?
Falava. Quando estava lá, escrevia-se telegramas. Chegou a escrever muita tristeza nos telegramas. “Dolores, fui a tal sítio.” Era primeiro-cabo. “Fui buscar uma coisa e estava embrulhada a cabeça de uma pessoa.”

Conta no livro Mãe Coragem que sempre foi um bom pai.
Nunca foi de maltratar os filhos. Eu é que batia nos meus filhos. Quem dá o pão dá o ensino. Era assim: eles faziam qualquer asneira e eu castigava-os. Como trabalhava muito, sentia-me revoltada e batia.

Como é que lhes batia se tinha apanhado na infância?
Se tivessem de levar uma estalada na cara, levavam. Não era assim como eu levei, pancadas. Não tem comparação. Às vezes, calhava tirar o cinto. Cheguei a dar, cheguei. Eu achava que se desse com o cinto, eles melhoravam, [aprendiam]. Para eles, os castigos eram piores do que o bater.

Que castigos?
Fechados dentro do quarto. A fazer os trabalhos da escola. Se o Ronaldo quisesse jogar à bola com os amigos do bairro, não deixava.
Quando lhes batia, acabava por me arrepender. “Credo! Levei tanta porrada, porque é que vou bater nos meus filhos?”

Levou sobretudo da sua madrasta. E no orfanato, das freiras?
Pelas freiras, nunca fui maltratada. Eram castigos. Davam com urtigas no rabo quando fazia chichi.
([Entra o neto Cristiano]
A avó está a falar com a senhora, não pode brincar contigo. Vai lá para dentro.)
Os castigos: limpar os quintais. No ditado, se passava de cinco erros, andava com o caderno pendurado nas costas toda a tarde. Para os outros colegas verem os erros. Ia-se à missa todos os dias, à tarde. Dava-me o sono. Na sala do convívio das crianças, punham-me num cantinho, com um saco de papel na cabeça. Como quem diz: “Dormiste na igreja, agora dorme aí nesse canto.”

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O pai com a madrasta e os filhos (Dolores é a sexta, da esquerda para a direita); à porta do orfanato onde passou parte da infância;com Elma, a filha mais velha, e a fotografia do pai ausente; e na casa do pai, na Madeira

Foi recentemente visitar o orfanato, com o seu neto. Como é que foi?
Gostei! Lembrou-me. Apesar de eu ter sido castigada, matei as saudades. Muita coisa mudou. O quarto de dormir existia. Era para vinte e tal. Agora só tem seis camas. A minha cama ficava ao pé da janela. Coisas felizes? Quando chegava a Páscoa, tínhamos uns saquinhos de amêndoas. Torrões de açúcar. O convívio. Quando chegava o domingo e não tinha visitas, as minhas amigas tinham, e dividiam aquilo que recebiam. Comigo e com a minha irmã.

O menino consegue perceber o que foi a sua infância?
Não. Com quatro anos, ainda não dá para explicar. Faz cinco em Junho do próximo ano.

No fundo, era pouco mais velha do que ele quando foi internada no orfanato.
A minha mãe morreu a 13 de Dezembro e fiz seis a 31 de Dezembro. Olho para ele e penso muito. Nos netos todos. Vou partir um dia. Quero vê-los grandes [para ter a certeza de] que não passam aquilo por que passei. Que ficam bem.
Mas, com a idade do Cristiano, lembro-me da minha mãe. Por exemplo, a minha mãe foi uma mulher que casou aos 16 anos. Ficou viúva duas vezes. O [primeiro] marido era pescador e morreu no mar. Casou segunda vez. O marido morreu no mar, também. Eu era criança e ouvia-os a falar. A minha mãe tinha cara de sofredora. A força que eu sinto, a mulher que hoje sou, tem que ver com a minha mãe.

Explique melhor isso.
A minha mãe foi para o hospital com o seu juízo. Morreu com a dor de deixar cinco filhos menores. Acho que pediu pela gente. Como eu era a mais velhinha, talvez tenha transmitido a força dela para mim. Ela apareceu-me. Dizia-me: “Olha sempre pelos teus irmãos.” Foi o que fiz.

Conte do momento em que ouviu a voz dela.
Foi no orfanato. Ouvi uma voz à distância. As freiras, no princípio, não acreditaram. No fim acreditaram. Quando fui para casa do meu pai, é que passei a vê-la. Aquela voz: quanto mais me aproximava, mais a ouvia falar. Era um eco.

Via-a como?
Na casa do meu pai não existia água canalizada. Íamos à fonte. Vi um vulto ao longe. Aproximava-se. De blusa branca e xaile escuro. O cabelo muito apanhado. A minha mãe usava assim. Dizia ao meu irmão: “Não estás a ver? É a mãe!” E ele: “Que nada!” Ele não via. Mas acreditava pelo espanto que eu fazia. Em casa dizia ao meu pai. O meu pai batia-me. Um dia comentou: “A miúda, para estar sempre a dizer aquilo, é porque vê alguma coisa.” Falou com o padre. O padre disse que podia ser verdade. Para eu dizer: “Mãe, põe-te a sete léguas de distância, diz-me o queres e não me metas medo.” A minha mãe disse-me assim: “Diz ao teu pai para ir a Machico pagar um litro de azeite à Senhora dos Milagres. A mãe pediu, morreu e não pagou [a promessa].” Fomos a Machico na altura da festa. O meu pai pagou. E dessa altura para cá nunca mais vi a minha mãe.

A sua mãe morreu aos 37 anos com um ataque de coração.
Deu-lhe uma dor e ficou muito negra. Levaram-na para o hospital. Morávamos no Caniçal. Chegar ao Funchal demorava muito tempo. Morreu três ou quatro dias depois de estar internada. Eu estava no quintal da minha avó a brincar. Uma vizinha disse assim: “A tua Matilde já lá foi.” Percebi o que tinha sido. O meu pai nunca foi um homem responsável pela vida. O padre da freguesia quis levar-nos para o orfanato. O meu pai: “Fico com o mais velho. Os outros quatro, o senhor padre faça o favor de os internar.” Comigo ficou a Laurentina. A Florentina e o Jorge ficaram noutro orfanato por causa da idade.

Nunca pensou desistir?
De?

Da vida.
Pensei. Passou-me pela cabeça dar fim à vida. Depois de ser mãe. Também quando vivia com a minha madrasta e ela me deu uma sova de fio de luz [com o fio eléctrico]. Pôs-me com o corpo todo cortado. Tive uma infância triste. Casei aos 18 e pensei que ia ter uma vida feliz. Depois não foi. Tinha uma filha, ia ter o segundo filho... Depois pensei: “Não. Não pedi para vir ao mundo, também não vou pedir para morrer.” Vou lutar enquanto puder.

A maior parte da sua vida foi de muito sofrimento.
É verdade. Só depois de o Ronaldo ir para Manchester é que a nossa vida mudou.

Antes de Manchester. Conte do tempo em que veio viver para Lisboa, para tomar conta dele.
Ele tinha 16 anos. Eu tinha 46. “Mãe, vou para a equipa A, a equipa principal. Vou ganhar mais qualquer coisa. Vai dar para orientar a nossa vida aqui e na Madeira.” Vivíamos numa casa da câmara. “A mãe passa-me a ferro. Já não fico no Sporting. Tenho aquela coisa de ter ao meu lado a mãe.” Vim para este apartamento. Ele ia treinar. Vinha e tinha o almoço feito. Eu ia ao [centro comercial] Vasco da Gama às compras. O meu passatempo: bordava. Não foi fácil deixar o meu trabalho e pôr-me aqui, onde não conhecia ninguém.

A comida que fazia, almoço e jantar, era a sua comida ou tinha de ser de acordo com as indicações do clube?
Não, era a minha comida. O clube nunca disse o que é que ele devia ou não devia comer. Sempre tive boas mãos para cozinhar. O Ronaldo gosta de um bacalhau à Brás, cozido à portuguesa, feijoada à minha maneira.

Ainda continua a cozinhar?
Sim. Em Madrid, quem faz o meu comer sou eu. Vivo numa casa separada da do Ronaldo. Quando faço uma coisa diferente, vem à minha casa. “Filho, a mãe vai fazer bacalhau. Apetece-te?” “Faça, mãe. Faça que tenho saudades.” Ele agora tem mais cuidado com a alimentação e nem sempre come o que faço. É um atleta de alta competição.

E uma coisa é ter 18 anos, outra é ter 28.
Faz 30 para Fevereiro. Ele agora tem os empregados, que fazem [as refeições]. Cheguei a viver na casa dele. Em Manchester, vivi com ele. Nunca tive empregados.

Naqueles anos, já de milhões, não tinha ninguém que a ajudasse?
Não! Não porque eu tinha de ocupar o tempo. Não sabia falar inglês, não conhecia ninguém. Sentia-me bem a fazer a minha vida. A empregada da casa era eu.

E hoje?
Tenho uma empregada que faz tudo em casa, mas o comer eu faço. O meu comer é sagrado. Eles fazem o comer típico de Espanha. Eu faço à portuguesa. E faço a sopa para o meu neto como fazia para o Ronaldo. Uma massinha, um arroz.

Já viu a felicidade de ter um neto que é um filho, com esta idade...
É uma alegria. Não está o tempo todo comigo. Vai para a escola de manhã. Sai às quatro da tarde. Está um pedaço com o pai. Está um pedaço comigo. O Ronaldo está muito tempo ausente. E então fica comigo. Ele sente a minha falta. Quando vou à Madeira dois ou três dias, noto o menino triste. Falamos ao telefone: “Anda. Senão não és mais a minha avó.” Magoa-me muito.

Ele às vezes chama-lhe mãe?
Não. Mas diz assim: “A minha mãe está no céu. E tu és a minha mãe. Podes ser minha mãe e avó.” Digo que sim.

A que é que ele gosta de brincar consigo?
À bola. Para fazer a vontade ao meu neto, vou dando uns pontapés na bola.

E com o Ronaldo, jogava?
Jogava.

Como é que lhes chama?
O neto é Cristiano, o filho é Ronaldo.

Cristiano ou Cristianinho?
Cristiano.

São os dois muito parecidos consigo.
Acha?

Acho. Sobretudo a boca.
Digo ao Ronaldo: “Estás dentro do campo. A cara que fazes lembra-me a minha cara.” Ele responde: “A senhora queria, mas não sou parecido consigo!” “Mas és parecido com a mãe...”

Gosta que ele seja parecido... Que cara faz dentro do campo que é parecida com a sua?
Quando marca o golo e faz aqueles gestos. Ou aquela cara carrancuda. Ou aquela cara de mau. Lembra-me de quando eu era jovem.

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Cristiano Ronaldo no Nacional da Madeira; foto de quando ingressou no Sporting; com o filho e o neto, que sempre ajudou a criar; a primeira bota de ouro de Ronaldo, quando ainda jogava no Manchester

Mudaram-se para Manchester em 2003. Em dez anos, a vida deu uma volta.
Quando foi para Manchester, começou a ganhar bem. Com o primeiro ordenado que recebeu, mandou-me escolher uma casa. Para comprar a casa à mãe, como tinha prometido. Não foi escolhida por mim, foram as minhas filhas que andaram vendo.

O que é que quis que a casa tivesse: espaço, uma vista bonita?
Tenho uma boa vista, mas não pensei nisso. Pensei num bom conforto. O conforto era ter casas de banho com chuveiro, que não tinha. Na casa onde vivia era preciso aquecer a água no fogão e tomar banho numa banheira. Sonhava ter uma casa de banho e tomar banho de chuveiro. Ter uma banheira. Um quarto de dormir grande. Ter uma cozinha grande. Adoro cozinhas grandes! Uma cozinha com azulejos. Ter a coisa de limpar os azulejos. A brilhar. O conforto vale muito.

A sua cara muda quando fala disso. Ilumina-se.
Ter aquele quintal que posso lavar de mangueira, descalça. Sentia um prazer enorme ao lavar o meu quintal. São coisas que não se esquecem. A primeira casa que o Ronaldo comprou: a minha filha mais velha é que vive lá. Chego e se for preciso ligo a mangueira e lavo o quintal. No Natal, no Verão. Agora é raro. Mas no princípio fazia isso. Matava as saudades.

Já está habituada a esta vida de conforto em que o dinheiro não é um problema?
Claro que agora já posso ir jantar. Em jovem nunca ia jantar. Trabalhava na cozinha do hotel mas nunca tinha ido a um restaurante. Vou à Madeira e ligo a uma amiga: “Queres ir jantar comigo? Vai-se à espetada.” Pago de bom agrado. Posso. Se tiver de fazer bem, faço. Porque posso. Mas penso no dia de amanhã. Não sou mulher que abre a mão e derrete tudo. Podia comprar uma bolsa cara, e não faço isso.

Esta sua bolsa cara (a Birkin da Hermès está sobre o balcão da cozinha), quem é que a comprou?
Foi o meu filho. Tenho coisas de marca. Que eu compre?, não compro. Não tenho coragem. O Ronaldo amanhã vai fazer a vida dele. Penso que ele não muda, mas às vezes uma mulher muda um homem. Poupo. Não se sabe o dia de amanhã. O meu filho não me deixa faltar nada. Nada mesmo. Se me der mil euros, gasto 500 e guardo 500. Vai para o escuro! Está guardado no escuro, ninguém vê! [riso] De hoje para amanhã, vou partir e tenho os meus netos para ficar [com o que poupei]. Têm alguma coisa para a universidade deles... Penso nisto. Ele diz: “Devia gastar mais. Gozar.” “Mas a mãe é assim.” A boca leva tudo.

“A boca leva tudo”?
Quer dizer: há pessoas que ganham cem e gastam 110. Eu vou ao supermercado e escolho as coisas mais baratas.

Compara preços para poupar dez cêntimos aqui, 30 acolá?
Faço isso. É a minha maneira de ser.

Pensei que procurasse os produtos de que gosta, independentemente do custo.
Antigamente, dava aos meus filhos iogurtes naturais. Nem tinham sabor nenhum. Hoje não faço isso. Vou ao supermercado e compro aos meus netos iogurtes com aromas bons. Um bife: compro carne melhor do que antigamente. Mas o que puder poupar, poupo.

Ficou uma marca muito grande da fome e da pobreza.
Pois. E acontecendo alguma coisa — oxalá que não! [bate no sofá três vezes] — tenho ali o que poupei. E, se acontecesse alguma coisa ao meu filho, ia buscar tudo o que poupei e dava-lhe. Tudo o que tenho ali foi ele que me deu. Digo aos meus filhos: “Está escondido em tal parte. Se acontecer alguma coisa à mãe, dividam por todos.” O Ronaldo oferece-me jóias de muito valor. Digo às minhas filhas: “Já têm a vida organizada. Se eu morrer, dêem aos vossos filhos. Não é para vocês!” Já tenho tudo destinado.

Porque é que fala tanto da morte? Está a dias de fazer 60 anos.
Eu estava com aquela coisa que aos 37 morria. Ultrapassei. Faço 60. Agora vive-se um dia de cada vez.

Já lutou contra um cancro da mama. Teve muito medo de morrer?
Tive. Já era uma mulher feliz. Foi em Inglaterra que o descobri, fui operada na Madeira e vim fazer o tratamento ao Porto. “Meu Deus, tenho tudo agora. Será que Nosso Senhor se vai lembrar de mim e vou embora?”

Era muito injusto.
Pois era. Mas graças a Deus estou aqui. O Ronaldo diz que aguento até aos 90!

O que é que hoje lhe dá mais felicidade?
Os netos. Os filhos, bem ou mal, criei-os.

Acha que criou bem ou mal?
Criei bem. Porque lutei pelos meus filhos. Trabalhava as minhas horas de trabalho, chegava a casa e ainda ia a casa dos vizinhos passar a ferro, lavar quintais. Não era dinheiro o que me davam. Eram restos de comer deles. Sobras. Um quarto de quilo de massa. Duas ou três batatas. Umas cenouras. Para mim, tinha valor. Lutei para que nunca faltasse nada aos meus filhos. E para que eles nunca tirassem nada a ninguém. Os meus filhos às vezes iam para as fazendas roubar fruta. Também cheguei a fazer isso. Mas chamava-lhes a atenção [voz ríspida]: “O teu pai não tem fazenda!” Considerava um roubo ir a casa de uma pessoa roubar fruta.

Está a dizer que se esforçou pelos seus filhos e lhes deu valores.
Sim. A coisa que eu mais queria era que estudassem. Essa era a herança que eu podia deixar — eles terem estudos. Qualquer um deles andou até ao 9.º ano. Não quiseram mais. Os dois mais velhos quiseram trabalhar porque eu não tinha televisão. Queriam ter melhor vida e ajudar-me a comprar coisas melhores para casa. Por isso, considero-me uma mãe de coragem, lutadora.

O Ronaldo ainda passou por essas dificuldades?
Não passou tanto. Quando nasceu, as coisas já estavam melhor.

O seu pai e a sua madrasta ainda são vivos. Emigraram para a Austrália. Os seus filhos, o Ronaldo, perdoam-lhe o mal que (em especial a sua madrasta) lhe fizeram?
Perdoam! Ai, ele tem muita consideração pelos avós. Até eu, não tenho raiva à minha madrasta. Coitadinha. Hoje sou mulher: também lhe devo a ela. Quando saí do orfanato, tinha 11 anos. Além de ser maltratada, transmitiu-me muita coisa.
Quando dei a entrevista ao Manuel [Luís] Goucha e à Júlia [Pinheiro], o meu pai viu lá. “O pai gostou?” “Filha, estás tão bonita.” “O pai desculpe de eu ir buscar o passado.” “Não levo a mal porque aquilo que disseste é verdadeiro.”
Um dia disse à minha madrasta: “A mãe era muito má.” “Eu sei. Mas nunca me levantaste a mão. Nunca me faltaste ao respeito. E os meus próprios filhos já me faltaram ao respeito.” Para mim, é um orgulho muito grande ela dizer isto.

O dia mais feliz da sua vida qual foi?
Quando fui mãe. Todas as vezes. Falar a verdade: engravidei [quatro vezes] e nunca por vontade. Mas depois de dar à luz era a maior alegria. Quando vi o meu filho na selecção. Tocar o hino e vê-lo no meio daqueles jogadores. (Eu gostava, gosto do Luís Figo.) E o dia em que nasceram os netos.

Conta no livro que pensou abortar quando estava grávida do Ronaldo. É muito duro para um filho ouvir isto.
Ele acha graça! Com o passar do tempo, viu o pai que tinha. Eu era muito maltratada. (Ele já morreu, não quero falar.) Quis abortar. Ele hoje diz, a brincar: “Já viste, mãe, tu quiseste abortar e eu agora é que os sustento a todos.”

Disse que isto tudo parece um sonho. Pesadelos, tem?
Não. Deito-me na minha cama tranquila. Se tiver de fazer bem, faço. Se tiver de dizer não, digo. Recebo muitas cartas a pedir ajuda. Quando vou à Madeira, vão muitas vezes a minha casa. Há pessoas que me fizeram mal que vêm à minha beira, pedir. Não esqueço. Digo que não. Para sentirem. Quando precisei, viraram-me as costas. Deus não me castiga por causa disto.

Vou contar-lhe o começo desta entrevista. Foi em Junho. Em Nova Iorque, um taxista contou-me que o seu filho tinha pago a operação a uma criança. Que tinha bom coração. E pensei na mãe que o tinha educado. Foi então que pedi para a entrevistar.
Ele tem bom coração. Quando foi para Manchester, saía em muitas revistas que fazia isto e aquilo. Às vezes era mentira. Ganhou muito dinheiro em processos. Dizia: “Não quero este dinheiro. Pegue nele e faça o quiser.” Dei-o a instituições.

Quais são os maiores defeitos do seu filho? Só temos falado das qualidades.
O maior defeito dele é não gostar de perder.

Porque é que isso é um defeito?
Tem de compreender que não pode ganhar sempre. Estou dizendo uma coisa, e sei que tenho razão, e ele entende que é como ele está a dizer: teima! Tem de saber perder dentro e fora do campo. Era muito teimoso, muito teimoso.

E vaidoso?, que é aquilo de que as pessoas o acusam.
Vaidoso? Gosta de se arranjar. Se tem possibilidades de ter tudo de bom, porque é que não há-de ter?

Não é vaidoso em relação à imagem. É a maneira como no campo...
Sente orgulho quando marca. O Ronaldo não é essa coisa que dizem. O Ronaldo é muito humilde. Sente vaidade de mostrar aquilo que sabe. E que consegue fazer melhor do que fez.

E os seus defeitos, são quais?
Sou também muito teimosa. Sou amiga do meu amigo, mas quem me magoar no dedo mindinho que saiba que me magoa no resto [mostra a mão toda]. Perdoo. Mas não sou a pessoa que era dantes.

Quais são os seus medos?
O meu medo é morrer e deixar os que mais amo na vida.

O Natal, como é que vai ser? Imagino que vá para a cozinha...
Vou! E vão as filhas. Não passo o Natal com o Ronaldo. Ele vai para o Dubai, passá-lo com a namorada e o filho. Ele disse-me para ir, mas não vou. Quero passar o Natal na minha terra. O frio lembra-me o Natal. No Dubai está quente. Já estive lá. Gostei. O fim do ano também passo na Madeira. Depois então vou para Madrid, com ele. Faço os anos na Madeira.

Grande festa?
Ele já organizou a minha festa. É surpresa, mas eu já sei. Vai ser num barco, em alto mar.

Chega aos 60...
Espero chegar. Como diz o outro: para morrer, basta estar vivo.

Chega aos 60 uma mulher feliz?
Sim, sim.