Diga à morte que estou escrevendo

1. Foi uma semana antes do Carnaval de 2005, lembra ela. Estavam juntos havia 15 anos e ele nunca ficava doente, mas dessa vez havia “uma sensação de congestionamento na garganta”, um pigarro persistente, perda de paladar. Portanto, apesar de ele sempre fugir de médicos, nessa semana foram juntos ver o que era. Quando a consulta acabou, ele vestiu-se à pressa, ansioso por ir para casa. Tinha um livro para acabar de escrever, na verdade mal começara, ia na página 89 e seriam mais de 500. Só que o médico tinha outra ideia, na verdade uma ordem, ele teria de seguir para um especialista nesse dia mesmo. E os exames confirmaram: era um cancro debaixo da língua, com metástases, já.
 
2. “Ia fazer cinquenta e sete anos e estava começando a escrever o livro mais importante da minha vida. Não podia me dar ao luxo de morrer.” É assim que ele lembra o que então pensou. Sim, fácil pensar a meio da escrita de um livro, não posso morrer agora, pelo menos não antes de acabar, e esse pensamento facilmente impele a escrita. Mas não tão fácil quando se seguem três meses de radioterapia diária e de quimioterapia semanal, porque a coisa está tão adiantada que operação já não resolve.
  
3. Então, durante três meses ele saiu de casa todos os dias para a “rádio” e à sexta para a “quimio”. Deixou de comer, não podia, ingeria calorias numa bebida a que carinhosamente chamava milkshake de carpete, vários ao dia apesar da garganta em ferida, depois de uma vida lauta a comer, beber, fumar, fora tudo o resto. Escrevia durante o dia inteiro, e todos os dias, conta ela, tão enlouquecido como nos outros livros, com intervalo só para aquela excepção “braba”, o tratamento: trinta e quatro sessões de “rádio”, sete de “quimio”, vinte e nove consultas, quinze idas ao dentista, cinco biópsias, cinco exames de sangue, duas ressonâncias magnéticas, duas chapas de pulmão, uma endoscopia, e enfim uma cirurgia, porque já não dava para operar antes mas ainda teve de operar depois, mais punções para esvaziar o líquido do pescoço, mais sessenta e uma sessões de fisioterapia.

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1. Foi uma semana antes do Carnaval de 2005, lembra ela. Estavam juntos havia 15 anos e ele nunca ficava doente, mas dessa vez havia “uma sensação de congestionamento na garganta”, um pigarro persistente, perda de paladar. Portanto, apesar de ele sempre fugir de médicos, nessa semana foram juntos ver o que era. Quando a consulta acabou, ele vestiu-se à pressa, ansioso por ir para casa. Tinha um livro para acabar de escrever, na verdade mal começara, ia na página 89 e seriam mais de 500. Só que o médico tinha outra ideia, na verdade uma ordem, ele teria de seguir para um especialista nesse dia mesmo. E os exames confirmaram: era um cancro debaixo da língua, com metástases, já.
 
2. “Ia fazer cinquenta e sete anos e estava começando a escrever o livro mais importante da minha vida. Não podia me dar ao luxo de morrer.” É assim que ele lembra o que então pensou. Sim, fácil pensar a meio da escrita de um livro, não posso morrer agora, pelo menos não antes de acabar, e esse pensamento facilmente impele a escrita. Mas não tão fácil quando se seguem três meses de radioterapia diária e de quimioterapia semanal, porque a coisa está tão adiantada que operação já não resolve.
  
3. Então, durante três meses ele saiu de casa todos os dias para a “rádio” e à sexta para a “quimio”. Deixou de comer, não podia, ingeria calorias numa bebida a que carinhosamente chamava milkshake de carpete, vários ao dia apesar da garganta em ferida, depois de uma vida lauta a comer, beber, fumar, fora tudo o resto. Escrevia durante o dia inteiro, e todos os dias, conta ela, tão enlouquecido como nos outros livros, com intervalo só para aquela excepção “braba”, o tratamento: trinta e quatro sessões de “rádio”, sete de “quimio”, vinte e nove consultas, quinze idas ao dentista, cinco biópsias, cinco exames de sangue, duas ressonâncias magnéticas, duas chapas de pulmão, uma endoscopia, e enfim uma cirurgia, porque já não dava para operar antes mas ainda teve de operar depois, mais punções para esvaziar o líquido do pescoço, mais sessenta e uma sessões de fisioterapia.

  
4. O copo do milkshake de carpete era igual ao do Bob’s, conta ela, igual ao dos milkshakes do Bob’s que ele adorava. O Bob’s é uma espécie de McDonald’s brasileiro, nunca parei para pensar no Bob’s nos meus anos de vida brasileira, quanto mais entrar. Mas entretanto acabo de ler o que ela conta sobre o milkshake de carpete e aterra no Rio um amigo que adora o milkshake de Ovomaltine do Bob’s, e, de repente, à meia-noite, estamos em Copacana a partilhar um milkshake de Ovomaltine, o primeiro Bob’s da minha vida, o meu primeiro milkshake de Ovomaltine, para estrear os meus 47 anos. Pois no dia seguinte, ao descer da ladeira do Cosme Velho onde morei, lá estava o Bob’s ao dobrar da esquina, sempre estivera, eu é que não via. Agora, nunca mais poderei olhar um Bob’s sem me lembrar do milkshake de carpete, que para mim sabe a Ovomaltine.

 5. Só chamar o milkshake de carpete já manda a morte bugiar. Sempre a rir, com aquela sua queixada estúpida, a morte não tem nuance, e portanto não tem humor.

6. Um dia, depois da brabura do tratamento, veio o teste da empadinha. A ver se ele conseguia comer aquilo, se tinha sabor. Quem passa por um cancro destes perde muitas vezes a capacidade de produzir saliva e torna-se difícil comer algo seco, explicou-me ela. A massa esfarelada da empadinha era um bom teste. E foi.

 


7. Outro dia, conta ela, o telefone tocou, era ele. Porque eles moram em casas separadas, embora durante a brabura ela meio que se mudou para casa dele. Mas nesse dia o telefone tocou e ele disse que tinha acabado. Então leu para ela o último capítulo. Ela tinha lido todos, um a um, à medida que foram sendo escritos. O último parágrafo dizia assim: “Como afluentes humanos que desaguavam pelas transversais de Botafogo, gente de todas as idades, cores e categorias sociais continuava engrossando o cortejo — ao todo seriam centenas de milhares —, cantando os sambas e marchinhas. Nos braços do povo, Carmen Miranda vivia o seu maior Carnaval.”

8. É isso aí. Ruy Castro escreveu quase toda a biografia de Carmen Miranda (sua mais recente obra-prima biográfica, depois de, por exemplo, Nelson ‘Anjo Pornográfico’ Rodrigues e de João ‘Chega de Saudade’ Gilberto) enquanto levava doses cavalares de veneno para matar o cancro, além de todo o elenco médico que citei. “Eu tinha de conseguir. Não podia decepcionar a Carmen.”

9. Agora, em 2014, Ruy é o herói que joga com a morte, como no Sétimo Selo de Bergman, no livro de sua mulher, Heloísa Seixas. O livro chama-se O Oitavo Selo e a autora descreve-o como um “quase romance”. E, para começar 2015, ela publicará uma biografia juvenil de Carmen Miranda. É o chamado casamento bem a quatro mãos, até hoje em duas casas. Encontram-se todos os dias para caminharem juntos pela orla, Leblon-Ipanema.

 10.  Como vai a sua saúde, perguntei-lhe ao chegar, óptima, respondeu ele, tem mais de dois anos que quase não morro. Continua, portanto, de calção e pronto para mandar a morte bugiar. Uma das coisas que lhe custa quando tem de enfrentar TV paulista é isso de quererem que o cidadão bote calça comprida, etc. Paulista é outro planeta, e isto, e aquilo, descemos ao piso de baixo a ver a biblioteca, só de livros do Rio de Janeiro é toda uma parede. Como dizem os cariocas, morri. Eu que acho que estou a escrever um livro do Rio de Janeiro. Uma pessoa cai em si e pensa que está lixada, mas só até deixar de pensar, que é quando volta a desfaçatez da ignorância. Entretanto, arrumando-me por completo, Ruy guiou o caminho até às estantes de Nelson Rodrigues como se fôssemos ver a caverna de Alibabá. Tive assim na mão uma primeira edição de Suzana Flag, essa pepita pseudónima que morava num lobo cerebral do grande Nelson, e fez derramar lágrimas tão cariocas. Uma, duas, todas as primeiras edições em geral. Tudo em geral.

11. É que eu tinha um novo disco de Carmen Miranda (Real Combo Lisbonense, Saudade de Você, 2014) para dar a Ruy Castro, longa história que não vou contar aqui mas por acaso começou no apartamento dele. Porque, abreviando, e em suma, esse disco nasceu da leitura da biografia de Carmen. O tal livro de mais de 500 páginas em que Ruy jogou com a morte e ganhou. E eu apostaria em como a história, com seus possíveis rebentamentos, não acaba aqui.