O mar nunca cala, fala sempre. Esta opereta também

Na noite mais longa do ano, 21 de Dezembro, o antigo presídio da Trafaria recebe uma opereta com "vozes" da região.

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A onda de um acordeão, para cá e para lá, sem som é, afinal, o barulho do mar. Uma corda de violoncelo é uma gaivota. Um clarinete sem bocal é vento que entra dentro da capela à entrada de um espaço abandonado que foi em tempos prisão (mas também lazareto, para onde no século XVII eram levados doentes de quarentena) na Trafaria, em Almada. Também há sons reais, como o da sirene dos Bombeiros da terra, que todos os domingos toca em honra dos mortos da II Guerra Mundial. O director musical ordena que entrem, para acompanhar, sussurros, cantorias, leituras.

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A onda de um acordeão, para cá e para lá, sem som é, afinal, o barulho do mar. Uma corda de violoncelo é uma gaivota. Um clarinete sem bocal é vento que entra dentro da capela à entrada de um espaço abandonado que foi em tempos prisão (mas também lazareto, para onde no século XVII eram levados doentes de quarentena) na Trafaria, em Almada. Também há sons reais, como o da sirene dos Bombeiros da terra, que todos os domingos toca em honra dos mortos da II Guerra Mundial. O director musical ordena que entrem, para acompanhar, sussurros, cantorias, leituras.

“A opereta quer pegar no que é de cá, nas vivências, nas conversas, e fazer um espectáculo disso”, conta Artur Moura, 28 anos. É o sonoplasta da Opereta A Mar, que desde Agosto recolheu sons – água, vento, sinos - no raio de acção que viria a dar vida a este espectáculo: Trafaria, Bairro do 2.º Torrão, Terras da Costa, Costa da Caparica, Cova do Vapor e Monte da Caparica. Foi por aqui que andou nos últimos meses Loreto Martínez Troncoso. Nascida em Vigo, a artista de 36 anos apaixonou-se pelo Porto e agora por estes territórios mais a sul, mas também mais perto do mar. Na opereta que começou a nascer na sua cabeça depois de participar no projecto de construção da Casa do Vapor, Loreto definiu apenas isto: queria falar de amor. E o mar? “A temática do mar não é realmente uma temática. Mas estamos num lugar que está cheio de mar. O mar nunca cala, fala sempre. Tem uma ligação com o desejo de tornar audíveis as nossas palavras. E torná-las públicas. E gritá-las”, explica.

Uma bolsa da Fundação Fenosa, que apoia artistas galegos residentes no estrangeiro, ajudou a dar corpo à ideia de uma opereta com uma génese popular, que não cantasse grandes desgostos de amor mas antes vidas do quotidiano. A poucos dias da estreia, a 21 de Dezembro, no jardim do antigo presídio da Trafaria, dois actores ensaiam com Loreto discursos que não lhes pertencem: “O meu amor é conhecer-te ao milímetro, sem pressas. É olhar o teu sorrisso. Amor é arriscar que não morras porque te amo.” Frases recolhidas durante as oficinas de escrita criativa e expressão dramática com alunos da Escola Profissional do Monte da Caparica, em Almada. Zé Bernardino e Madalena Marques são os únicos actores a participar na Opereta e beberam da espontaneidade do processo de criação. A Pedro Rocha, professor de música na Academia de Música de Almada, coube unir todas as peças de puzzle: instrumentos, gravações, vozes.

A restante equipa, no total cerca de dez pessoas, é feita de músicos amadores e profissionais, de curiosos, de pessoas que nunca pensaram estar aqui, numa capela escura a rir, a gritar, a viver histórias de outros. Como Daniel Miranda: “Sempre gostei de música que tenha um pouco de cultura africana, são as minhas raízes. E o hip-hop que é indispensável no meu contexto musical. Tem sido um desafio aprender outras melodias”, conta. Ao som do violino, violoncelo, acordeão, da flauta – a que se juntarão a dada altura um didjeridu, um bansuri e uma flauta eslovaca - além dos sons gravados por Artur – Daniel lê uma história de homens que perderam a vida no mar, um episódio contado pelo filho de um pescador.

E não está tudo aqui, nesta opereta. “Vai sair um libreto e há outro tipo de recolha mais ampla, com mais material, num registo de arquivo”, explica Loreto. A entrega das pessoas com quem se cruzou, diz, marcou-a. Mais difícil foi trazer essas mesmas pessoas até à recta final, até ao dia do espectáculo. Muitas que participavam nas oficinas não acompanharam depois o projecto. Um morador do bairro terras das Costa, na Costa da Caparica, era um dos mais activos e criativos. Emigrou, mas as suas palavras andam por aqui, pela opereta. Mas a participação está aberta até ao próprio dia do espectáculo.

No domingo, às 16h30, na Praça da República, na Trafaria, três pequenos bancos de madeira servirão de palanque para quem quiser dizer o que lhe vai na alma. Dali partirão integrantes da opereta e espectadores – e espectadores feitos participantes, se assim o desejarem – numa marcha ao ritmo do som da banda filarmónica, pelo passeio marítimo, alguns metros até à capela. É lá que se vão encontrar com os pensamentos e desejos de outros, que viajaram até ao interior de uma capela quase em ruínas, para que todas as vozes sejam escutadas. Todas as vozes.