O tempo perdido
Ágil e singular, este é o primeiro volume de um ambicioso projecto romanesco
“Escrever é retirar da sombra aquilo que sabemos. Escrever é isso. Não o que acontece aqui e acolá (...), mas sim o próprio aqui e acolá. É esse o lugar e o objectivo da escrita. Mas como lá chegar?” A Morte do Pai, primeiro dos seis volumes do ambicioso projecto romanesco do escritor norueguês Karl Ove Knausgård — com o título genérico A Minha Luta — é a resposta complexa a essa pergunta feita logo nas primeiras páginas do livro.
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“Escrever é retirar da sombra aquilo que sabemos. Escrever é isso. Não o que acontece aqui e acolá (...), mas sim o próprio aqui e acolá. É esse o lugar e o objectivo da escrita. Mas como lá chegar?” A Morte do Pai, primeiro dos seis volumes do ambicioso projecto romanesco do escritor norueguês Karl Ove Knausgård — com o título genérico A Minha Luta — é a resposta complexa a essa pergunta feita logo nas primeiras páginas do livro.
Dez anos após a morte do pai, Knausgård (autor, narrador e personagem, tudo se confunde), à beira de completar 40 anos, insiste desesperadamente em escrever o seu terceiro romance. Há quatro ou cinco anos que a tarefa se arrasta diariamente. Começa a duvidar do seu talento e, entre frustrações com as suas relações familiares actuais e as memórias da infância e da adolescência, escreve irónicos epitáfios para si próprio. E vai-nos dando conta de tudo isto em A Morte do Pai, cuja escrita o leitor vai acompanhando.
Para superar uma crise criativa, Karl Ove Knausgård iniciou uma narrativa ficcional em que mistura, sem pudor algum, memórias e divagações em estilo ensaístico, não respeitando a ordem cronológica dos acontecimentos. O resultado acaba por ser surpreendente e quase inclassificável. Usando um jogo de espelhos auto-referencial, o autor norueguês começa aos poucos a esboçar uma espécie de “investigação existencial proustiana” recorrendo a uma mistura de Bildungsroman, de auto-ficção desesperada, de exercício metaficcional detalhado, tudo isto enquanto tenta esconjurar a morte do pai, não poupando o leitor a pormenores — uma simples chávena de chá e a respectiva tisana, por exemplo, podem demorar uma dezena de linhas a serem descritas. Com um fluxo narrativo original e poderosíssimo, quase nunca interrompido, mesmo quando as descrições minuciosas a que recorre se arrastam (há uma festa de passagem de ano que se estende por mais de 50 páginas) ou quando faz saltos cronológicos, a finalidade do autor parece ser sempre a de responder a duas questões: “Como é que acabei aqui? Como é que as coisas aconteceram assim?” A recuperação do passado surge em Knausgård como uma maneira de se salvar. Para isso não hesita em convocar todo um manancial de memórias familiares e escolares, de pensamentos, de divagações sobre a arte, e de sentimentos actuais (sobretudo em relação a familiares próximos, como os três filhos e a mulher). A sensação de vazio a que chegou não o abandona: “Como se o vazio não estivesse só à minha volta mas também dentro de mim.”
Knausgård sente-se aprisionado na vida familiar — a sua recente função de pai que o obriga a mudar fraldas e a passear os bebés sem lhe deixar tempo para a escrita — e por vezes pensa em fugir; por outro lado sabe que aquela clausura lhe é essencial para poder chegar ao fim sem recear o passado. “Ao mesmo tempo vejo que a repetição, a clausura, o inalterável são necessários, que me protegem. Nas poucas ocasiões em que os deixei, as velhas feridas regressaram.”
Mas a ideia central deste primeiro volume de A Minha Luta é sem dúvida a morte. Aliás, a primeira frase do romance parece indicar logo o caminho: “Para o coração, a vida é simples: bate enquanto pode. Depois pára.” Knausgård dedica bastantes páginas às suas divagações sobre a morte e a razão de haver hoje tanta pressa em remover os mortos de diante dos nossos olhos, tapando-os ou fechando os caixões. Mais do que a morte a interromper o ciclo da vida, é a vida que surge como uma interrupção da morte. “Já não havia qualquer diferença entre aquilo que outrora fora o meu pai e a mesa onde jazia, ou o chão onde estava pousada a mesa, ou a tomada na parede debaixo da janela (…). Porque os seres humanos são apenas uma forma entre muitas outras formas (…). E a morte, que sempre tinha considerado a mais importante dimensão da vida, obscura, atraente, não era mais do que um cano que rebenta, um ramo que o vento quebra, um casaco que escorrega do cabide e cai no chão.”
Esta aparente obsessão com a morte está ligada à sensação contra a qual o escritor Karl Ove Knausgård luta, a da rápida passagem do tempo. Está perto de completar 40 anos, e sabe que daí até aos 50 e depois aos 60 o tempo passará sem contemplações. Sente como os seus dias escoam e com eles a possibilidade de escrever grandes obras. Não se trata, apenas, da morte física do pai (é a primeira pessoa que viu morta, tinha ele 30 anos), mas também, paralelamente, da sua morte como escritor, pois debate-se com uma crise criativa que o dever de cumprir os afazeres domésticos, agora que também é pai, vem sublinhar. De uma forma ou de outra, vê-se forçado a aceitar a estabilidade e a rotina numa corrida contra o tempo. Essa poderá ser a sua morte anunciada.
Knausgård apaga a linha entre ficção e autobiografia, um pouco ao jeito de W. G. Sebald em Os Anéis de Saturno; entre outras diferenças, ressalta o modo despudorado como o norueguês entra em campos da intimidade que nem a autobiografia comum tinha ousado entrar. Sem receio de parecer ingénuo, Knausgård torna a sua escrita ficcional (não deixa de o ser) quase isenta de ironia, substituindo-a pela “sinceridade”. E é isto que a torna tão viva.