Quando o fotógrafo não fotografa

Daniel Blaufuks regressa a Terezín, a Sebald, a Perec, numa nova exposição no Museu do Chiado. O Holocausto tem sido o território no qual o fotógrafo se confronta com o poder e o logro das imagens.

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Em 1944, a Cruz Vermelha Internacional fez uma visita de inspecção a Terezín, o que motivara, meses antes, uma “acção de embelezamento da cidade” decretada pelas SS: a densidade populacional foi aliviada, plantaram-se flores, pintaram-se as fachadas das casas, cafés e lojas foram recuperados, abriu-se um banco e um centro comunitário com auditório, biblioteca e sinagoga. O relatório final da Cruz Vermelha foi tão positivo que a organização desistiu de inspeccionar outros campos nazis.

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Em 1944, a Cruz Vermelha Internacional fez uma visita de inspecção a Terezín, o que motivara, meses antes, uma “acção de embelezamento da cidade” decretada pelas SS: a densidade populacional foi aliviada, plantaram-se flores, pintaram-se as fachadas das casas, cafés e lojas foram recuperados, abriu-se um banco e um centro comunitário com auditório, biblioteca e sinagoga. O relatório final da Cruz Vermelha foi tão positivo que a organização desistiu de inspeccionar outros campos nazis.

O filme que Blaufuks criou para a exposição tem quatro horas e meia porque, segundo os relatos, foi esse o tempo de duração da visita da Cruz Vermelha Internacional a Terezín (Theresiendstadt, em alemão). O fotógrafo não espera que “as pessoas vejam o filme todo”, nem isso será obrigatório para o espectador se dar conta de que Terezín é hoje um lugar bucólico, aprazível – bonito, até – onde raparigas de fato-de-banho deitadas na relva apanham sol.

“Quando pensamos em Auschwitz”, diz Blaufuks, “pensamos sempre que estava frio e chuva. Mas pior do que isso: havia dias lindos de sol e estava calor. E um céu azul. A nossa própria imaginação é sempre gloomy [sombria]. Mas o sítio não é gloomy. Felizmente, quando fomos a Terezín tivemos sorte nisso: primeiro estava a chover, mas depois ficou bom tempo. Eu queria isso, queria ter céu azul. Matam-se pessoas em qualquer lado. O filme termina com a nossa partida de comboio e uma sequência de excertos de vários filmes com as partidas de comboio para Auschwitz. E em todos os filmes o comboio está sempre a partir à chuva. Há uma necessidade de intensificar ainda mais o que já é um sofrimento. Mas imagine-se a partida para Auschwitz num dia de sol. O que é que é pior? Não sei. Mas isso interessa-me.”

O Holocausto tem sido um tema central e recorrente no trabalho de Daniel Blaufuks (Lisboa, 1963) na última década, desde o documentário Sob Céus Estranhos (2002), onde cruzava a sua história familiar e pessoal – Blaufuks é neto de judeus alemães que se refugiaram em Lisboa em 1936 – com a história oficial.

O fotógrafo já se tinha focado em Terezín num trabalho anterior com o mesmo nome (exposição no Centro Cultural de Belém em 2007, livro editado pela Steidl em 2010), e este regresso, agora, ao mesmo local e às mesmas preocupações (debruçando-se sobre eles de outra forma), denota, por um lado, um desejo de totalidade, de compreensão integral, e, ao mesmo tempo, a frustração deliberada desse empreendimento – daí o título “irónico” desta nova exposição, Toda a Memória do Mundo, parte um. “Se me perguntarem ‘Mas a parte dois onde é que está?’, não sei responder”, resume Blaufuks.

O interesse do fotógrafo no Holocausto ultrapassa a questão biográfica. Ele tem sido o território a partir do qual Blaufuks vem investigando e confrontando-se com a função, o poder e o logro das imagens. Já era assim em Terezín, cujo ponto de partida foi uma imagem de uma sala em Terezín que o escritor alemão W. G. Sebald incluiu no seu livro Austerlitz (2001). Parte do fascínio da obra escrita de Sebald tem a ver com o seu uso de fotografias e a forma como estas dialogam com o texto. Austerlitz é uma ficção e, no entanto, as fotografias parecem instalar uma veracidade. Ou, como diz Blaufuks: "Quando duvidamos do texto, o Sebald mete uma fotografia e pensamos: ‘Afinal, é verdade.’ Mas a fotografia ainda é mais mentirosa do que o texto. Porque as pessoas acreditam na fotografia.”

Sebald e Austerlitz voltam a ser convocados para esta nova exposição, a par do francês Georges Perec e do seu W ou le souvenir d’enfance (1975), nunca traduzido em Portugal. Sebald e Perec são escritores dilectos de Blaufuks, e tanto um como outro tinham marcado presença em projectos anteriores (A Perfect Day, em 2003, combinava postais com textos telegráficos de Perec), mas o fotógrafo não encontrava necessariamente uma ligação entre os dois. “As suas obras são de naturezas muito distintas e não existe qualquer influência conhecida de Perec, mais velho, na escrita de Sebald. Os dois não partilham nacionalidade nem religião. Sentimos a poesia de Sebald, que nos pode faltar em Perec”, escreve Blaufuks num dos textos do livro da exposição.

Mas a obra dos dois é assombrada pelo Holocausto – no caso de Sebald, isso resulta numa narrativa errante, delicada, em surdina; no caso de Perec, a detecção é mais oblíqua (diz-se que La Disparition, o romance que escreveu deliberadamente sem utilizar a letra e uma única vez, representa o desaparecimento dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial). Blaufuks diz que cada vez mais descobre semelhanças entre os dois. “Acho que são irmãos separados à nascença”, diz. A exposição no Museu do Chiado está ligada ao doutoramento que Blaufuks está a fazer na University of Wales sobre a fotografia nas obras de Perec e de Sebald e a sua relação com a memória e o Holocausto.


Travar o fluxo
Os dois escritores são as figuras tutelares de Toda a Memória do Mundo, parte um, a partir das quais tudo o que está na exposição irradia. Ela termina com uma série de painéis compostos por imagens dispostas em cadeia, com ligações entre si, inspiradas em Austerlitz e W ou le souvenir d’enfance. “É uma transformação das palavras do Sebald e do Perec em imagens”, resume Blaufuks. “Aquilo é quase um poema para cada um dos escritores que eu escrevo.”

Grande parte dessas imagens foram encontradas na Internet. Apesar de não ser uma novidade no percurso de Blaufuks, esta exposição parece fortemente motivada pelo seu confronto com uma era pós-fotográfica. A fotografia é um elemento residual em Toda a Memória do Mundo. “À medida que a fotografia se vai democratizando – o que não é necessariamente mau –, vai perdendo a sua força”, explica o fotógrafo. “Temos um enorme manancial de imagens em arquivos, na Internet, etc. Mas, como diz o [historiador de arte] Didi-Huberman, o que é que vamos fazer com essas imagens todas? De que é que nos servem? A tarefa de um fotógrafo, hoje, é não fotografar. É saber parar. É saber travar o fluxo.”

Um dos painéis da exposição, intitulado O Caminho Para Auschwitz, é composto por filas de imagens de arquivo de judeus a entrarem para carruagens de comboios. Pela forma como estão dispostas, as imagens parecem ter como destino final os portões de Auschwitz, que se vêem no topo do painel. Depois de transpostos os portões, não existem mais imagens, entra-se “numa zona não-fotográfica”, como assinala Blaufuks, porque praticamente não existem imagens de Auschwitz durante o Holocausto.
“As imagens que conhecemos dos campos de concentração ou são feitas posteriormente, depois da libertação, ou são recriadas em filmes americanos. Durante o acto não houve fotografia. Não temos fotografias da realidade. Esse painel é sobre o Holocausto, sim, mas também é um painel sobre o poder e a capacidade da fotografia. Que, se calhar, não conseguiria fazer com fotografias minhas.” (O fotógrafo nunca visitou Auschwitz, nem tem particular interesse em fazê-lo.)

Daniel Blaufuks contrapõe Auschwitz – “um sítio do qual não temos imagens” – com a Síria – “um sítio de onde temos imagens a mais e que não tem solução”. As imagens não salvam. Mas não podemos viver sem elas.