E agora, temos de lhe chamar Rapariga com Brinco de Prata?
Novo estudo garante que, afinal, a mulher do célebre retrato de Vermeer não usa uma pérola e sim um pendente de metal, provavelmente prata. É tudo uma questão de luz.
Agora, Vincent Icke, astrónomo holandês, autor de uma nova teoria sobre o brinco da mulher desta pintura que é também conhecida como “a Mona Lisa do Norte”, parece estar em condições de propor nova alteração. Num artigo que acaba de publicar na revista de divulgação científica New Scientist (edição holandesa), Icke defende que não se trata de uma pérola, mas de um pendente de prata ou, noutra hipótese, de vidro veneziano coberto por uma fina camada de verniz.
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Agora, Vincent Icke, astrónomo holandês, autor de uma nova teoria sobre o brinco da mulher desta pintura que é também conhecida como “a Mona Lisa do Norte”, parece estar em condições de propor nova alteração. Num artigo que acaba de publicar na revista de divulgação científica New Scientist (edição holandesa), Icke defende que não se trata de uma pérola, mas de um pendente de prata ou, noutra hipótese, de vidro veneziano coberto por uma fina camada de verniz.
Para este professor de Teoria da Astronomia da Universidade de Leiden, também investigador nas áreas da Astrofísica e da Cosmologia, a maneira como o brinco de Vermeer reflecte a luz não condiz com a forma como deveria fazê-lo se, de facto, se tratasse de uma pérola natural. “Os reflexos que Vermeer pintou correspondem a áreas de luz aguda. Isto é algo que só acontece em superfícies que reflectem mais ou menos como um espelho. Tal superfície pode ser de metal polido ou, ocasionalmente, um líquido”, explicou ao PÚBLICO num breve email este investigador que é também artista e que aprendeu muito sobre pintura a óleo no atelier do pai.
Chamando a atenção para o facto de os olhos e os lábios da figura terem o mesmo tipo de brilho – em ambos os casos por terem superfícies húmidas -, Vincent Icke sublinha ainda que o tamanho da suposta pérola (mais de 2cm de diâmetro) também contribuiu para que se pusesse em causa o material do pendente da jovem do retrato. O tamanho foi, no entanto, “um factor secundário que, aliás, já tinha sido evocado por alguns conservadores do museu Mauritshuis [Real Galeria de Pinturas de Mauritshuis, em Haia, que tem a obra na sua colecção desde 1903] que também duvidam que seja uma pérola. O preço seria tão alto na época que, talvez só a imperatriz da China pudesse ter uma pérola como esta.”
O tamanho da pérola, aliás, é um dos aspectos que dois dos conservadores do museu de Haia, Quentin Buvelot e Ariane Van Suchtelen, já referiam no texto que escreveram para um catálogo lançado no início deste ano e em que analisam ao pormenor a indumentária desta jovem mulher: “A pérola da orelha da rapariga é extraordinariamente grande. Se hoje a maior parte das pérolas vem de quintas [cultivadas artificialmente], no século XVII eram naturais, formadas em ostras no mar. As pérolas grandes eram raras e acabavam nas mãos das pessoas mais ricas do planeta. No século XVII, pérolas de vidro mais baratas, habitualmente de Veneza, também eram muito comuns. Eram feitas de vidro, que era depois envernizado para lhe dar um acabamento mate. Talvez a rapariga esteja a usar uma dessas ‘pérolas’ artesanais.”
As camadas de cabornato de cálcio e de conchiolina (uma proteína secretada pelos moluscos) que formam o nácar ou madrepérola teriam de ser brancas, cor de pérola, o que não se verifica na obra de Vermeer, acrescenta ainda o astrónomo. “Pelo contrário, no quadro, as zonas escuras produzem um efeito de espelho”, algo que não aconteceria com uma pérola, porque a sua superfície é baça. “O mais provável é que se trate de [um brinco] de prata, ou mesmo de estanho, muito polido”, concluiu o investigador da Universidade de Leiden, aqui citado pelo diário espanhol El País.
Vincent Icke sempre se interessou pela pintura de Vermeer, que no seu email define como “um pintor muito preciso”: “Podemos ter a certeza de que ele só pintava o que via e que, por isso, não poria uma pérola a reflectir daquela maneira porque isso não é real.” O investigador teve oportunidade de reencontrar esta obra do mestre holandês no ano passado, na reabertura da galeria depois de um amplo projecto de renovação que custou mais de 30 milhões de euros, e foi aí que sentiu necessidade de escrever sobre o pendente: “Saltou-me de imediato à vista o facto de o brinco se assemelhar a um pedaço de metal reflector, muito mais brilhante do que seria uma pérola.”
Nada é o que parece
Para os conservadores do museu, este debate à volta do material de que é feito o brinco é mais um exemplo da riqueza da pintura holandesa deste período, em que nada é aquilo que parece.
O próprio Vermeer permanece um mistério, já que a sua biografia é escassa e o seu corpo de obras bastante mais reduzido do que o de alguns dos seus contemporâneos do século de ouro holandês. Que se saiba, este mestre da luz deixou apenas três dúzias de obras, tendo-se especializado na pintura de mulheres em ambiente doméstico, tal como esta Rapariga com Brinco de Pérola, que tem vindo a dividir os especialistas. Para uns trata-se de um retrato e o modelo pode ser uma das filhas do artista – teve 15 filhos – ou mesmo uma amante; para outros uma pintura imaginada, sem um referente real.
Segundo Emilie Gordenker, directora da Real Galeria de Pinturas de Mauritshuis, trata-se mesmo de um ‘tronie’, palavra usada pelo neerlandês do século XVII para “cara”, definindo muitas vezes “estudos de figuras com cabeça e ombros, vestidos de forma exótica”, explicou ao jornal inglês The Daily Telegraph, referindo-se ao “turbante” amarelo e azul que usa. Isto não significa, no entanto, que Vermeer não tenha recorrido a um modelo, quer apenas dizer que “o resultado é mais genérico, intemporal e misterioso”, como se estivéssemos perante “uma sibila ou uma personagem bíblica”.
O nome fica
Segundo o site do museu, a pintura de Vermeer – um óleo sobre tela com 44,5X39 cm – foi comprada em leilão no final do século XIX por pouco mais de dois florins (um euro) e estava em muito mau estado. Profundamente restaurada em 1994, recuperou grande parte do seu brilho original, a começar precisamente pelo seu brinco e os lábios vermelhos, entreabertos, como se esta jovem mulher surpreendida no seu dia-a-dia, estivesse prestes a dizer alguma coisa, olhando directamente para nós.
São múltiplas as histórias que este retrato pode sugerir – a norte-americana Tracy Chevalier ficcionou a partir dele num romance homónimo (Quetzal Editores, 2008) que viria a servir de base a um filme de Peter Webber com Scarlett Johansson e Colin Firth como protagonistas -, independentemente do que se disser sobre a roupa ou a jóia que a figura usa.
Garante Quentin Buvelot, o conservador chefe do museu holandês – é hoje a sua imagem de marca, embora esta galeria guarde uma das melhores colecções do mundo de pintura holandesa -, que a obra não deverá mudar de nome. Ao diário El País o especialista admitiu que chamar-lhe “Rapariga com um pendente que parece uma pérola” seria pouco atraente.