Álvaro Cunhal e a Magna Carta de 1215
Quando crescem na Europa os discursos contra as elites empresariais e os políticos eleitos, convém recordar as palavras de Álvaro Cunhal.
A primeira resposta de Cunhal, como recordei na semana passada, é para atacar os socialistas: “Um pacto com os socialistas, como o que fizeram (os comunistas italianos em 1948) Nenni e Togliatti, não nos serve. Já assinámos esse pacto com o MFA.” (p. 58). Mais à frente, dirá: “E o que me importa a mim o que diz Soares? Ele também diz que existe um imperialismo soviético” (p. 72).
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A primeira resposta de Cunhal, como recordei na semana passada, é para atacar os socialistas: “Um pacto com os socialistas, como o que fizeram (os comunistas italianos em 1948) Nenni e Togliatti, não nos serve. Já assinámos esse pacto com o MFA.” (p. 58). Mais à frente, dirá: “E o que me importa a mim o que diz Soares? Ele também diz que existe um imperialismo soviético” (p. 72).
É ainda mais interessante a explicação de Cunhal para essa recusa de um pacto com os socialistas: “Nós, os comunistas, não aceitamos o jogo das eleições. (…) Não, não, não: não me importam nada as eleições. (…) Se pensa que o Partido Socialista, com os seus 40% e o Partido Popular Democrático, com os seus 27%, constituem a maioria, está enganada!” (p. 58).
Esta recusa dos resultados eleitorais tinha sido introduzida por Lenine na Rússia, em Outubro de 1917, quando promoveu um golpe de estado comunista e minoritário contra um parlamento eleito livremente, após a revolução democrática de Fevereiro desse ano. Álvaro Cunhal retoma o argumento leninista contra as eleições e a favor da chamada “dinâmica revolucionária: “As eleições pouco ou nada têm a ver com a dinâmica revolucionária. O processo eleitoral não passa de um complemento marginal dessa dinâmica” (pp.58-9).
Cunhal deixa em seguida muito claro que não só não respeita as eleições como não respeita as leis. Para ele, o que conta é o capricho sem entrave da vontade minoritária, a vontade da vanguarda politicamente correcta: “A solução para os problemas reside na dinâmica revolucionária; o processo democrático burguês, ao contrário, pretende vincular essa solução aos velhos conceitos de eleitoralismo, invocando a legalidade. (…) Fala de leis a respeitar. Mas, no processo revolucionário, as leis fazem-se: não se respeitam. Entende? A revolução não respeita a lei — cria-a” (p. 61).
O objectivo de Cunhal era a completa estatização e centralização da sociedade portuguesa, a abolição da sociedade civil descentralizada e independente do Estado: “Hoje não existem bancos privados em Portugal, todos os sectores fundamentais estão nacionalizados, a reforma agrária está prestes a realizar-se, o capitalismo foi destruído, os monopólios estão em vias de ser destruídos e tudo isso é um processo irreversível. (…) Nós não esperamos o resultado das eleições para mudar as coisas e destruir o passado. O nosso sistema é revolucionário e nada tem em comum com o vosso” (p. 64).
A entrevistadora, estupefacta, pergunta então “o que diabo entende você pela palavra democracia?”. É bom que a resposta fique gravada na memória de todos:
“Não certamente o que vocês, os pluralistas, entendem. Para mim, democracia significa liquidar o capitalismo e os monopólios. E ainda lhe digo mais: Portugal já não tem qualquer hipótese de estabelecer uma democracia ao estilo das que vocês têm na Europa ocidental (p.61). Garanto-lhe que em Portugal não haverá um parlamento (p.59). Não queremos uma democracia como a vossa (p. 62). Portugal não será um país com as liberdades democráticas e os monopólios. Não será companheiro de viagem das vossas democracias burguesas. Porque não o permitiremos. Talvez voltemos a ter um Portugal fascista (ainda que eu não acredite nisso). Mas seguramente que não teremos um Portugal social-democrata. Jamais. Deixei isso bem claro?” (pp. 73-4). E assim termina a entrevista.
Dir-se-á que os tempos mudaram e que as palavras de Álvaro Cunhal estão datadas. Talvez. Mas, quando crescem na Europa — a começar pela vizinha Espanha e passando pela Grécia, as duas democracias que nasceram logo após a nossa, em 1974-75 — os discursos contra as elites empresariais e contra os políticos eleitos, contra as regras gerais da democracia parlamentar e contra as instituições autónomas da sociedade civil, convém recordar as palavras de Álvaro Cunhal.
E convém recordar os princípios da democracia liberal: os princípios de um Estado limitado pela lei, claramente separado de uma sociedade civil livre e descentralizada, protegida por leis gerais, abstractas, iguais para todos e independentes de objectivos particulares. Estes são os princípios de um Estado de direito que presta contas ao Parlamento, tal como foram tentativamente enunciados pela Magna Carta de 1215 — cujos 800 anos celebraremos em Junho de 2015.