CPLP: à mesa dos canibais
O fim da corrupção do Português-padrão costumeiro incumbe a cada um de nós.
Tantas vezes citei o seu lema, “Resistir é vencer”, em particular nos últimos anos, a propósito do imperativo de resistência cívica de pais e professores à ditatorial imposição do absurdo e insustentável "acordo ortográfico" (mal parido pela CPLP)...! A mediocridade consentida pela passividade crê-se instalada. Essa é a mesma que aplaude Obiang, e se vende, e nos vende. Portugal, iguaria a partilhar pelos convivas, com gotas de petróleo sorvidas do fundo das taças deixadas por quem brindou à prosperidade. A alma de um Estado-Nação, mero aperitivo na degustação de restos de anéis e de dedos deixados ao cuidado dos capatazes dos donos do dinheiro.
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Tantas vezes citei o seu lema, “Resistir é vencer”, em particular nos últimos anos, a propósito do imperativo de resistência cívica de pais e professores à ditatorial imposição do absurdo e insustentável "acordo ortográfico" (mal parido pela CPLP)...! A mediocridade consentida pela passividade crê-se instalada. Essa é a mesma que aplaude Obiang, e se vende, e nos vende. Portugal, iguaria a partilhar pelos convivas, com gotas de petróleo sorvidas do fundo das taças deixadas por quem brindou à prosperidade. A alma de um Estado-Nação, mero aperitivo na degustação de restos de anéis e de dedos deixados ao cuidado dos capatazes dos donos do dinheiro.
“Resistir é vencer” não deixou de ser verdade, nunca deixará, mas agora suscita-me náusea ao associar-lhe este gesto de Xanana, o desrespeito por Portugal no acto de conduzir "El Jefe" Obiang a um lugar onde não poderia sentar-se antes de ser formalmente aprovada esta adesão à ora denominada "lusofonia econômica" (novo conceito introduzido oralmente in loco por Passos Coelho, que opto por grafar assim, com o acento circunflexo brasileiro).
Xanana abreviou formalidades e, cumprindo-se a vontade expressa dos Presidentes de Angola e do Brasil (ambos ausentes), Obiang recebeu aplausos de altos dignitários e ilustres convidados. À distância, congratulou-se Luís Amado, o ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates que "abriu a porta" da CPLP ao multimilionário "Presidente-deus" da Guiné Equatorial, um dos países mais pobres do mundo. Luís Amado, que agora administra o Banif, aplaude nele o "salvador" do seu-nosso banco-lavandaria, tendo estendido a retaguarda de todo um Pais a uma choruda injecção de capitais.
Governantes de hoje, governantes de ontem, e os mesmos petrodólares por que se movem. Contentam-se com restos dos grandes saques e com uma ideia de prestígio social. Tratam-se bem, envaidecem, e só se sentam ali à mesa dos canibais pois a eles incumbe o controlo dos concidadãos com fotogenia, declarações solenes proferidas com olhos húmidos e voz colocada, pose de "estadistas" para o engate eleitoral ou, pelo menos, falácias, esquemas, manobras de bastidores, entendimentos cordiais... Associação criminosa, marketing. Realpolitik. Não se lhes conhece lealdades nem rumos, antes uma arte de reconhecer e reagir a mudanças de ventos e marés e, acima de tudo o resto, a sua veneração pela soberana cor do dinheiro.
Voltando a Xanana, agora engravatado à mesa dos canibais, reitero que é com acrescida náusea que, por causa do seu gesto, venho denunciar, acusar, repudiar. Resistente, faço-o sentindo a mesma revolta com que, perante as notícias dos massacres post-referendo, em Setembro de 1999, fiz ouvir a minha mais posh pronúncia britânica, emitida repetidamente na rubrica "Viewers Comments" dos intervalos da estação televisiva CNN, frisando que a opinião pública portuguesa não iria consentir aos Estados Unidos qualquer uso militar futuro dos Açores (Base das Lajes), se não promovessem de imediato o respeito pelo Direito Internacional no território ocupado de Timor, cuja população acabara de pronunciar-se - com risco de vida - pela auto-determinação, tanto mais que tinha havido, em 1975, um óbvio consentimento prévio de Kissinger à invasão indonésia.
Quinze anos volvidos, Obiang pela mão de Xanana. Mãos dadas, ambas sujas de petróleo e sangue. Sei da mortalidade infantil na Guiné Equatorial e lembro as crianças que vi em Timor Lorosae. Crianças são crianças, e o interesse da Indonésia e da Austrália no petróleo de Timor foi devastador, tal como tem sido devastadora a usurpação feita por Obiang dos recursos naturais de um País onde mal se sobrevive. Portugal não tem representação diplomática por lá, apenas construtores civis erigindo obras bizarras no meio do mato, em nenhures, onde não passa uma estrada, nem há saneamento básico, muito menos escolas. Lá onde adoecem e morrem as mesmas crianças, e onde se cometem graves violações dos Direitos Humanos. Em particular, assassínios-de-Estado.
Faço, portanto, esta denúncia com a mesma energia que me levou a Díli em Novembro de 1999, para prestar assistência médica de emergência, assim que foi possível a entrada de portugueses, ainda pululavam milícias naquele terreno sob controlo provisório das Nações Unidas (chefiadas lá pelo grande Sérgio Vieira de Mello, assassinado pouco tempo depois, não fosse suceder a Kofi Annan...), e por onde ainda transitavam a pé famílias inteiras, desde os campos de refugiados de Timor Ocidental até às suas terras de origem, não sabendo ainda quem e o quê encontrariam quando chegassem, se chegassem.
Recapitulo. Em finais de Julho transacto sentaram-se, à mesa dos canibais, observando encenações protocolares, os servidores da "lusofonia econômica". Cada um ostentava a designação de um cargo e o nome de um País da CPLP. Trinchou-se a suculenta peça de carne. Qual seria? Estaria ali o povo mártir de Timor-Leste? Ou o povo mártir da Guiné Equatorial? Tanto faz. É gente. Muitos mortos. Tanto faz.
Não esqueço o lema "Resistir é vencer", mas faço-o meu sem pejo. Passarei a omitir o nome do autor, numa apropriação movida pelo pudor. Eu resisto e, resistindo, venço, nem que seja apenas afirmando-me não representada pelos não-representantes do meu não-País à mesa dos canibais, nesse repasto bem regado a petróleo que assinalou o fim da CPLP enquanto organização internacional, extinguindo qualquer possível aparência de credibilidade que ainda lhe restasse sob o escrutínio de alguma observação desinformada e superficial.
As Organizações Não-Governamentais portuguesas, perante isto, suspenderam a sua participação na CPLP, informando estar a ponderar uma eventual saída desta organização.
Diz-se que Obiang terá ameaçado o seu principal opositor político, no exílio, aquando do pedido de extradição deste dirigido a Espanha (antiga potência colonial), de devorar-lhe os testículos à chegada... Não creio que, só por este motivo, os nossos políticos tenham temor de contrariar Obiang. Caso haja alguma "reinversão de marcha", por parte de Portugal, quanto à aceitação deste novo membro da CPLP, tal ocorrerá por imposição da União Europeia, ou seja, tal será determinado a outra mesa de canibais, para que não se junte mais dinheiro sujo àquele que já entra, vindo de Angola, por esta porta das traseiras do Espaço Schengen.
Entretanto, Portugal, isto nos tornámos. Cada vez menos dados objectivos separam esta pseudo-democracia de um regime corrupto ao estilo sul-americano, cimentado no analfabetismo e na apatia de uma população indigente, como é o caso do Brasil, e cada vez menos factos substantivos nos distinguem até de uma qualquer cleptocracia africana instalada no terror... Na cumplicidade de não-ser, por interpostos mandatários, cada vez mais colectivamente nos aproximamos desse não-conceito repugnante, eloquente de tão néscio, da "lusofonia econômica", improviso para a já impossível fachada de uma agência de negócios, de um entreposto para o branqueamento de capitais. Mas só enquanto deixarmos que assim seja.
Enquanto deixamos, as candidatas a "Miss CPLP" desfilaram, pintou-se uma borboleta para um banco putrefacto, fez-se cirurgia plástica trazendo um novo rosto à velha "dança de cadeiras" dos pactos de regime, e iniciou-se o puro caos de mais um ano "letivo". Seguindo o experimentalismo de Galileu, o ministro que tanto prometia no "Plano Inclinado" (da SIC) continua a projectar-se em queda livre do alto da sua torre, com a imortalidade das inexistências, e no entanto sorri-se. Tanto faz.
Há uns dias, esteve o País em peso sintonizado nos principais canais televisivos. Em todos eles, questões sobre "medidas de coação" passando em rodapé, e nisso a prova indesmentível de sermos... todos corruptos. Independentemente de quem estivesse a ser "coado". Nos actos de corrupção, tem de haver corrompidos, não basta haver corruptores. Perante esta Língua Portuguesa corrompida, passeando-se assim ridícula e reles à vista de todos, deveríamos envergonhar-nos. O fim da corrupção do Português-padrão costumeiro incumbe a cada um de nós, a responsabilidade é colectiva, e resistir é vencer.
Médica, escritora e activista cívica