A ascensão do amigo de Sócrates, desde Teixoso aos milhões investigados pela polícia
Passa das seis dezenas o número de empresas, algumas já extintas ou sem actividade, nas quais Carlos Santos Silva enriqueceu. Algumas faliram com milhões de euros de dívidas, mas o seu pecúlio nunca deixou de crescer com a ajuda de amigos bem colocados. Uma offshore na Madeira é agora o seu principal veículo.
Prova disso, além dos milhões de euros que o Ministério Público encontrou nas suas contas, parte dos quais os investigadores suspeitam que pertençam a Sócrates, é a compra do luxuoso apartamento em que o ex-primeiro ministro viveu em Paris e dos três andares que pertenciam à mãe do amigo.
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Prova disso, além dos milhões de euros que o Ministério Público encontrou nas suas contas, parte dos quais os investigadores suspeitam que pertençam a Sócrates, é a compra do luxuoso apartamento em que o ex-primeiro ministro viveu em Paris e dos três andares que pertenciam à mãe do amigo.
A fortuna acumulada pelo empresário tem certamente a ver com alguns grandes contratos aos quais as suas amizades não serão estranhas — caso dos projectos para a Venezuela, mas também do negócio dos aterros sanitários e das obras do Ministério da Administração Interna à época em que Sócrates e Armando Vara tutelavam essas áreas. No entanto, para lá dessas grandes operações, o seu sucesso pessoal prende-se com uma estratégia baseada na dispersão dos seus interesses em múltiplas empresas e nas suas ligações a muitas outras pessoas certas, nos locais e nos momentos certos.
Mais de 60 empresas
Iniciada na segunda metade dos anos 80 em Teixoso e Canhoso, duas povoações vizinhas dos arredores da Covilhã, onde chegou a ter mais de uma dezena de empresas num andar de habitação e em duas lojas, a sua actividade empresarial começou pelos distritos de Castelo Branco e da Guarda. O seu mercado por excelência era (e ainda é) o das obras públicas, fossem elas camarárias — com grande destaque para os municípios de Belmonte, Covilhã e Castelo Branco —, da antiga Junta Autónoma de Estradas, ou escolares, em particular da Universidade da Beira Interior (UBI).
Nas câmaras, para lá das afinidades políticas, sobretudo com os autarcas do PS da região, tinha amigos, como José Sócrates, então técnico do município da Covilhã, e muitos colegas. Nos serviços regionais da Junta Autónoma de Estradas chegou a ter dois directores distritais como sócios.
Um deles, José Gomes, dirigente do PSD na Guarda, foi um dos fundadores da Conegil, uma empresa de construção civil que viria a ser central na carreira de Santos Silva, quando este passou a dominá-la em meados da década de 1990. De acordo os relatórios de informação comercial consultados pelo PÚBLICO, os dois engenheiros ainda partilham o capital da Rumo — uma pequena empresa de projectos criada em 1988 e que, tal como muitas das mais de 60 controladas por Santos Silva, continua a registar as suas contas anuais apesar de não ter actividade.
O outro, Albano Costa Oliveira, fundou com ele, em 1987, a sua primeira empresa. Chamaram-lhe Enaque, Engenharia e Arquitectura Ldª e tiveram sempre uma grande parte da sua facturação nos projectos de estradas. Albano Oliveira vendeu recentemente a sua quota ao irmão de Santos Silva, o médico António José, mas já não é aqui que Carlos Manuel ganha dinheiro. Nos últimos três anos, a empresa, que continua a ter a Estradas de Portugal como principal cliente, declarou sempre prejuízos, num total de 363 mil euros. A sociedade com Albano Oliveira, porém, mantém-se através da Nota de Análise, uma firma de engenharia que os dois abriram já em 2009, em Lisboa, e que quase não factura desde 2011.
Entre os bons clientes de Santos Silva há muito que figura também a UBI. Durante mais de ano e meio, em 1985 e 1986, ele próprio ocupou o lugar de director dos Serviços Técnicos da Reitoria e durante 15 anos o reitor foi o seu primo direito Manuel José dos Santos Silva, actual presidente da Assembleia Municipal da Covilhã, eleito pelo PS. No que respeita a escolas, todavia, o grande filão surgiu muito mais tarde, depois da chegada de Sócrates a primeiro-ministro com os negócios proporcionados pela Parque Escolar.
Projectar, construir e fiscalizar
Um dos trunfos do empresário residiu desde o início no controlo de todo o processo produtivo das obras públicas: projecto, gestão da obra, construção propriamente dita e fiscalização. Cada uma das empresas dedicava-se sobretudo a uma dessas actividades, embora quase todas elas pudessem fazer as restantes. Na prática, através da multiplicação de empresas com nomes distintos, ainda que muitas vezes sedeadas no mesmo local, Santos Silva conseguia frequentemente ser ele a projectar, gerir, construir e fiscalizar as grandes obras públicas que lhe eram adjudicadas.
O controlo de várias firmas, algumas das quais só existiam no papel, e a qualidade dos contactos políticos e profissionais que detinha permitiam-lhe multiplicar os contratos numa região em que a concorrência também não era muita. A inexistência, até há três ou quatro anos, de bases de dados públicas e fiáveis sobre a propriedade das empresas e sobre os contratos celebrados pela entidades públicas ajudava, por outro lado, a que o negócio florescesse sem escrutínio.
Para lá da Enaque, a ascensão do amigo de Sócrates passou pela Proengel, aquela que é ainda hoje uma das suas principais criações. Fundado em 1988 e tendo-o a ele como único sócio, este gabinete de projectos nasceu também em Teixoso, onde ainda tem a sede no mesmo primeiro andar que servia de morada a muitas outras firmas e onde não se vê ninguém há dois ou três anos. Isto porque a Proengel e parte das suas congéneres foram-se mudando sucessivamente para Lisboa, dividindo-se agora por vários escritórios situados na zona de Telheiras. Em 2013, as vendas da Proengel somaram 1,4 milhões de euros e os resultados líquidos, que no ano anterior tinham sido de 302 mil euros, caíram para apenas 5.800.
Apesar dos fracos resultados, esta sociedade continua a ser, entre as que são detidas total ou maioritariamente por Santos Silva, a que mais gente emprega, com 31 trabalhadores. A mais lucrativa, porém, é de longe a Proengel II, apenas com dois empregados. No ano passado facturou oito milhões de euros e obteve lucros de três milhões, contra apenas 57 mil que registou em 2010. Grande parte das suas receitas, que têm a ver também com as actividades que desenvolve em África e no Brasil, prende-se, nos últimos três anos, com o contrato milionário estabelecido em 2010, com o apoio de Sócrates, entre o Grupo Lena — ao qual Santos Silva tem ligações pelo menos desde 2007 — e o Governo venezuelano, para a construção de 12.512 apartamentos no valor de 988 milhões de dólares.
Outras das empresas que Santos Silva registara em Teixoso e em Canhoso, a dois ou três quilómetros dali, foram sendo deslocadas para a Quinta da Chandeirinha, uma enorme propriedade vedada e isolada no meio campo, junto a uma das estradas de acesso a Belmonte, a 10 kms de Teixoso. No interior da quinta, servida por um acesso privativo, um conjunto de edifícios que não se vêm de parte alguma, abriga o grupo Constrope, um conjunto de empresas a que Santos Silva está ligado há muitos anos e que se encontra actualmente em grandes dificuldades financeiras. À entrada da propriedade, fechada por um pesado portão automático, apenas um pórtico vertical exibe a palavra Constrope.
Aqui, tal como nos escritórios agora fechados de Teixoso e Canhoso, a discrição impera. Nestes dois locais, contudo, nem sequer um reclamo, ou uma simples placa ao lado da porta, alguma vez identificou as empresas que ali tinham sede. O mesmo acontece, aliás, numa das lojas de Canhoso em que Santos Silva ainda tem actividade, quase ao lado da que fechou.
É lá que funciona, desde 1994, a EFS - Engenharia e Fiscalização, uma empresa detida em sociedade com Armando Trindade, um engenheiro que também ali tinha uma outra firma à qual muitas entidades públicas contratavam a fiscalização de obras da responsabilidade de empresas do sócio. No ano passado, a EFS ainda teve um volume de vendas de 1,5 milhões de euros, na quase totalidade a entidades públicas, mas os lucros ficaram-se pelos 90 mil euros.
O papel de Sócrates e Vara
A chegada de Sócrates ao Governo de António Guterres, em 1995, assume um especial relevo no percurso empresarial de Santos Silva. É nos cinco anos seguintes que o empresário começa a olhar para mais longe, para lá dos distritos de Castelo Branco e da Guarda. A oportunidade nasceu com o lançamento, pelo então secretário de Estado do Ambiente, do Plano Estratégico para os Resíduos Sólidos Urbanos (PERSU), que previa a construção por todo o país de modernos sistemas de tratamentos de resíduos.
O primeiro de todos a avançar foi o da Cova da Beira, a construir perto do Fundão, e que acabou por ser adjudicado por 13 milhões de euros, em 1997, a um consórcio liderado pelo grupo HLC. Este consórcio incluía a Conegil, empresa de construção de Santos Silva que se encontrava então à beira da falência.
A adjudicação acabou por levantar suspeitas de que Sócrates teria estado por trás de um alegado favorecimento do grupo que o seu amigo passara a integrar com a venda de uma parte do capital da Conegil. O processo arrastou-se durante 16 anos e os arguidos, entre os quais nunca figurou Sócrates nem Santos Silva, que nem sequer foram ouvidos, viram-se absolvidos em 2013.
Entre eles encontrava-se António Morais, o homem que montou o concurso público ganho pela HLC/Conegil e que era então professor de Sócrates na Universidade Independente. Ao mesmo tempo era director do GEPI, o departamento governamental responsável pela adjudicação de todas as obras das forças de segurança e para o qual fora nomeado por Armando Vara em 1996. Foi aliás no GEPI que foi feito o projecto da casa que o então secretário de Estado da Administração Interna construiu entre Montemor-o-Novo e Arraiolos. A obra foi feita pela Constrope.
Repartindo-se pela empreitada da Cova da Beira e por muitas outras que o grupo HLC foi ganhando no âmbito do PERSU, Santos Silva, a Conegil e as suas empresas de fiscalização e gestão de obras passaram a ganhar grande parte das adjudicações do GEPI por todo o país. O esquema, conforme foi mais tarde verificado por várias auditorias, mas nunca foi investigado pelo Ministério Público, passava com frequência por ajustes directos feitos com base em consultas dirigidas apenas a empresas do mesmo grupo e de pessoas a ele ligadas.
Na viragem do século, porém, já a Conegil e o grupo HLC começavam a desmoronar-se com dívidas e incumprimentos de toda a ordem, embora não lhe faltassem as encomendas. No lugar da Conegil, e com parte dos seus quadros e maquinaria, passou então a destacar-se, nomeadamente nas adjudicações do GEPI, a Constrope. Santos Silva tinha sido um dos seus fundadores. À data da declaração judicial de falência, em 2003, as dívidas da Conegil a centenas de credores, incluindo o próprio GEPI, ultrapassavam os 20 milhões de euros.
Uma offshore no Funchal
Passados 11 anos, os créditos reclamados rondam os 35 milhões de euros. Os 19 trabalhadores da empresa (um dos quais já representado pelos herdeiros por ter falecido) continuam à espera dos 382 mil euros que até hoje não lhes foram pagos. Nas contas da massa falida juntaram-se 934 mil euros, que deverão ser um dia, após a decisão da juíza, distribuídos pelos credores.
Terminada de forma dramática para muitos destes, a queda do grupo HLC e da Conegil acabou por abrir as portas a uma nova fase na carreira de Santos Silva. Na esfera da Constrope, uma sociedade anónima a cujos órgão sociais o empresário deixara de pertencer, mas cujo capital partilhava essencialmente com Alfredo dos Santos, o presidente da empresa, começa então a surgir um conjunto de outras sociedades com actividade em todo o país no sector da construção civil, obras públicas, imobiliário e até agricultura.
Por volta de 2009, os interesses de Santos Silva no universo Constrope, em que avultam a Gigabeira (declarada insolvente no mês de Maio), a Congevia (em processo de especial de revitalização), a Trabite e o grupo Dinope, passam a ser representados pela Taggia XIV, uma offshore registada no Funchal. Esta empresa foi constituída em 2003 com capital da sociedade de advogados Morais Leitão, Galvão Teles e Soares Silva. De acordo com Nuno Galvão Teles, representante desta sociedade, a offshore nunca teve qualquer actividade até ser vendida, em 2009, a Carlos Manuel Santos Silva.
Actualmente, a Taggia XIV, que tem como administrador único o empresário Rui Mão de Ferro, detém 43% do capital de Constrope SGPS, 50% da Dinope SGPS e ainda participações em pelo menos três outras empresas, uma das quais em Cabo Verde. Na prática não tem qualquer actividade e os seus resultados têm sido sempre negativos, na ordem dos 10 mil euros.
Rui Mão de Ferro — também gestor e sócio de outras empresas de Santos Silva e de Gonçalo Ferreira, o advogado e sócio de Santos Silva igualmente arguido no processo de Sócrates — é ainda o administrador único da Walton Grupo, com sede em Barcelona. Este foi o veículo através da qual Santos Silva entrou em 2011 no negócio dos direitos televisivos do futebol em associação com um outro amigo de Sócrates, Rui Pedro Soares, um ex-administrador da PT que se tornou conhecido com os casos Tagus Park e Face Oculta e que agora controla a SAD do Belenenses. Estas relações com o Walton Grupo, cuja composição accionista é desconhecida, poderão constituir, segundo foi noticiado esta semana por alguns jornais, uma das principais linhas de investigação do Ministério Público no âmbito da Operação Marquês.
Feitas as contas por alto e com os dados disponíveis, os lucros declarados pelas empresas em que Santos Silva possui participações rondaram no ano passado os 4,2 milhões de euros. Os prejuízos, por seu lado, ascenderam a 1,7 milhões. A parte que coube ao empresário nestes 2,5 milhões, depois de descontados os montantes encaminhados para as reservas das empresas e dividido o saldo pelos seus sócios, é desconhecida, mas é seguramente um valor que a investigação estará a apurar. Afinal, a origem da fortuna que está em seu nome é a grande incógnita que o Ministério Público tem para resolver.