Tortura da CIA: anatomia de um “programa perturbador”
Um detido morreu de frio, alguns passaram 180 horas acordados, outros foram sujeitos a repetidas simulações de afogamento. A lei, internacional e norte-americana, chama-lhe tortura e a Convenção da ONU diz que “nenhuma circunstância, nem a guerra, pode ser invocada” para a justificar.
A agência chamou-lhe “Extraordinary Rendition and Detention Program” (“extraordinary rendition” designa o transporte de um suspeito de terrorismo do país onde foi capturado para um lugar onde a lei não seja aplicada) e esteve em vigor entre 2002 e 2009. Na prática, à medida que alguns dos seus aspectos iam sendo tornados públicos – em 2006, o Presidente George W. Bush admitiu a existência das prisões secretas –, a CIA foi ficando sem condições para o operar e em Abril de 2008 já não detinha nenhum dos 119 suspeitos que mantivera espalhados pelo mundo.
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A agência chamou-lhe “Extraordinary Rendition and Detention Program” (“extraordinary rendition” designa o transporte de um suspeito de terrorismo do país onde foi capturado para um lugar onde a lei não seja aplicada) e esteve em vigor entre 2002 e 2009. Na prática, à medida que alguns dos seus aspectos iam sendo tornados públicos – em 2006, o Presidente George W. Bush admitiu a existência das prisões secretas –, a CIA foi ficando sem condições para o operar e em Abril de 2008 já não detinha nenhum dos 119 suspeitos que mantivera espalhados pelo mundo.
Apesar das muitas partes censuradas nas 525 páginas do estudo (um décimo do relatório total), os dados contidos no documento permitem identificar Polónia, Lituânia, Tailândia e Afeganistão como países onde funcionaram prisões referidas por nomes de códigos (“Azul”, Violeta”, “Verde” ou “Cinzenta”). Ao todo, há pelo menos 54 países cuja cumplicidade foi fundamental para as actividades da agência.
Para além de ilegal, o programa foi tão mal gerido que “é possível que nunca se saiba exactamente quem esteve detido e em que condições”, disse a líder da Comissão do Senado, a democrata Dianne Feinstein. Também não serviu de nada: a equipa de Feinstein “examinou 20 exemplos que a própria CIA aponta como casos em que o recurso a estas técnicas permitiu obter informação útil que não poderia ter sido conseguida de outra forma” mas “em nenhum isso se comprovou.” Como resumiu McCain, o recurso à tortura no tratamento dos suspeitos da “guerra ao terrorismo” lançada depois dos atentados de 11 de Setembro foi “vergonhoso e desnecessário”.
O director
Pelo menos um detido, Abu Zubaida, capturado em 2002 no Paquistão, já tinha sido torturado em Janeiro de 2003, quando o então director da CIA, George Tenet (1997-2004) ordenou que o programa fosse posto em prática, autorizando o uso específico de técnicas como “privação do sono para lá das 72 horas” ou “simulação de afogamento”. Mas em Janeiro de 2001 já Tenet escrevera ao Presidente Bush defendendo “a necessidade de excluir a CIA de qualquer aplicação” das Convenções de Genebra sobre Tratamento de Prisioneiros de Guerra no conflito contra a Al-Qaeda e os taliban: essa aplicação, defendeu, iria “dificultar significativamente a capacidade da CIA em obter a informação necessária para salvar vidas de americanos” – em Fevereiro de 2002, Bush declarou que as leis da guerra não se aplicavam aos suspeitos da Al-Qaeda.
O programa de tortura continuou e cresceu já depois de Tenet abandonar a agência, mas foi sob a sua direcção (no fim de 2001 ou no início de 2002) que a CIA contratou dois psicólogos, James Mitchell e Bruce Jessen, para avaliarem um manual onde a Al-Qaeda descrevia como resistir aos interrogatórios – os dois homens acabariam por se tornar nos principais autores de um programa que descreveram como “um padrão para futuros interrogatórios”.
O conselheiro
John Rizzo foi o principal conselheiro legal da CIA durante quase todo o tempo de duração do programa (2001 e 2002; 2004-2009). É dele um email interno da agência onde se escreve, em Julho de 2003, que a Casa Branca está extremamente preocupada que [o então secretário de Estado, Colin] Powell "rebente se for informado sobre o que tem acontecido”. Num email que Rizzo recebeu no dia da detenção de Zubaida, “advogados da CIA discutiram interpretações da proibição criminal que poderiam permitir realizar determinadas actividades de interrogatório”. Na sua autobiografia, Rizzo descreve-se como “um dos principais arquitectos legais do programa” da CIA e compara-o a “um enredo de Edgar Allan Poe”.
Os torturadores
Segundo o relatório do Senado, em 2008, 85% dos envolvidos nas operações de detenção e interrogatório eram contratados externos à agência. Os dois principais tinham estado lá desde o início, Mitchell e Jessen, ex-militares e psicólogos com teses de doutoramento em alta pressão sanguínea e terapia familiar que a Força Área contratara nos anos 1980 para preparar militares na resistência a interrogatórios. Ambos conheciam as práticas usadas nas décadas anteriores pelos regimes comunistas e Mitchell tinha-se interessado entretanto pela “impotência adquirida”, um conceito desenvolvido nos anos 1960 pelo psicólogo Martin E. P. Seligman, a partir de experiências com cães – depois de perceberem que não podiam evitar pequenos choques eléctricos, os animais deixavam de resistir e nem fugiam quando podiam – que acabou por se tornar importante no tratamento da depressão.
Foi com estas armas que Mitchell e Jessen convenceram a CIA. Com “base ‘na impotência adquirida’, desenvolveram as suas teorias de interrogatório e as tácticas de interrogatório agressivas aprovadas para usar contra Zubaida e subsequentes detidos da CIA”. Os psicólogos “conduziram pessoalmente interrogatórios a alguns dos mais importantes detidos da CIA usando estas técnicas”, ao mesmo tempo que “avaliavam se o estado psicológico dos detidos permitia que essas técnicas continuassem a ser usadas”. Receberam 81 milhões de dólares (65 milhões de euros).
A prisão
Há várias por onde escolher, mas era na prisão que o relatório chama “Cobalto”, no Afeganistão, que “um detido podia passar dias ou semanas sem que ninguém fosse vê-lo”, descreve um interrogador da CIA que diz que a sua equipa encontrou um homem que, “até onde pôde ser determinado”, estava “acorrentado de pé a uma parede há 17 dias”. O interrogador chefe da CIA chamava-lhe “masmorra”: tinha 20 celas onde “os detidos eram mantidos na escuridão absoluta e constantemente acorrentados e isolados com música alta e um balde”. O relatório diz que começou a funcionar em Setembro de 2002 e que “por ali passaram mais de metade dos 119 detidos identificados”: a CIA mantinha “poucos registos sobre os detidos” e “agentes não treinados conduziram [aqui] frequentes interrogatórios não autorizados e não supervisionados com recurso a técnicas fisicamente duras que não faziam parte do programa formal de interrogatórios ‘agressivos’”.
O morto
Em Novembro de 2002, Gul Rahman, que a CIA acreditava ser um extremista, foi sujeito a “48 horas de privação de sono, sobrecarga sonora, escuridão total, isolamento, um duche frio e tratamento violento”. Da sede foi sugerido que Rahman podia precisar de “técnicas agressivas” para responder aos interrogadores – isto quando “não havia uma unidade no quartel-general da CIA com responsabilidades claras pelas operações de detenção e interrogatório”. Foi então que um responsável no local ordenou que o detido fosse “acorrentado ao chão da cela numa posição em que permanecesse deitado no cimento” usando apenas uma camisola. No dia seguinte, os guardas encontram-no morto “por suspeita hipotermia”.
As técnicas
Repetidamente chamadas “técnicas de interrogatório agressivas” durante as administrações Bush, o relatório do Senado oferece um quadro ainda mais assustador do que aquele que já era conhecido. A “simulação de afogamento”, por exemplo, foi usada mais vezes e em mais detidos do que se pensava e surge descrita como “uma série de quase afogamentos” por um agente. A privação de sono ultrapassou nalguns casos as 180 horas e pelo menos cinco detidos “tiveram alucinações” como resultado dessa privação – “em pelo menos dois destes casos, a CIA continuou a privação de sono”. Khalid Sheikh Mohammed, que confessou ser “o arquitecto da conspiração do 11 de Setembro”, foi um dos que passou sete dias e meio sem dormir com conhecimento do então director da CIA, Michael Hayden. É Hayden que surge agora a defender algumas das técnicas usadas, como “a alimentação e reidratação rectal”. Num telegrama da CIA revela-se que foi administrado ao detido Majid Khan um clister com “hummus [pasta de grão], massa com molho, nozes e uvas passas ‘desfeitas em puré’”. “Usámos o maior tubo que tínhamos”, lê-se no email de um agente.
O relatório descreve quatro casos de homens acorrentados à parede com “complicações médicas nas extremidades inferiores”, incluindo dois com um pé partido e um com uma perna protésica. “Os dois detidos com pés partidos também foram sujeitos a walling [atirados contra a parede], posições de stress e confinamento apertado, apesar de estar registado nos seus planos de interrogatório que estas técnicas não eram requeridas por causa da sua condição médica.”
As conspirações
Nos últimos dias, antigos responsáveis da Casa Branca e da CIA têm insistido que o recurso às chamadas “técnicas de interrogatório agressivas” foi essencial para deter suspeitos de alto valor e impedir planos de ataque, como os da cidade paquistanesa de Carachi, que teriam como alvos “hotéis junto ao aeroporto e da praia, viaturas dos EUA que viajavam entre o consulado e o aeroporto, casas de diplomatas dos EUA e norte-americanos, assim como a Base Aérea Faisal”, do Exército paquistanês. “Durante vários anos, a CIA apresentou a descoberta das Conspirações de Carachi como prova da eficácia das técnicas de interrogatório agressivas. Isso não é correcto”, lê-se no relatório. “As Conspirações foram descobertas com a confiscação de explosivos e a detenção de Ammar al-Bahuchi e de Khallad bin Attash em Abril de 2003”, uma operação “conduzida unilateralmente pelas autoridades paquistanesas”.
O vingado
A CIA já admitira à Câmara dos Representantes que deteve cinco pessoas por engano ao longo do seu programa de detenção. A revisão que a equipa do Senado fez dos próprios registos da agência permitiu descobrir mais 21 casos e a comissão fala numa “estimativa conservadora”, não incluindo nesta contabilidade “indivíduos sobre os quais havia desacordos internos na CIA sobre se cumpriam os critérios de detenção ou os numerosos detidos que, depois de interrogados, se concluiu que não ‘colocavam uma ameaça contínua de violência, assassínio de americanos ou ataque a interesses americanos’ ou ‘estivessem a planear actividades terroristas’”.
Um destes “detidos por engano” é o iemenita Mohammed al-Asad, que passou 480 dias encarcerado e foi alvo de tortura. Detido pela polícia da Tanzânia, onde vivia com a família há quase 20 anos e onde tinha o seu próprio negócio, diz ter sido levado dali para o Djibouti. Ali passou duas semanas até chegar a uma das prisões secretas geridas pela CIA no Afeganistão, tendo ali permanecido de Janeiro de 2004 a Maio de 2005. Asad nunca mais pôde voltar à Tanzânia, perdeu tudo o que tinha e foi libertado no Iémen, onde recomeçou a vida. Mas “ficou mesmo feliz por ver o seu nome” no relatório do Senado, disse à revista Newsweek a sua advogada, Margaret Satterwaite. Aparece na página 460, como detido número 92: Muhammad Abdullah Saleh, a grafia do seu passaporte tanzaniano.
“Pessoas em todo o mundo olham para os EUA como um grande país, um grande Estado. Eles deviam ser um modelo”, disse Asad à sua advogada. A divulgação do relatório e o reconhecimento dos nomes dos detidos presos por engano “é uma boa mensagem, diz que quando se erra e há pessoas que lutam contra isso, e no fim, a verdade aparece”.