A star e o sonhador
Tony Star, Tony Sonhador — um não vai sem o outro. Esta é a história do artista português que passou anos à espera que lhe pedissem um autógrafo e acabou por vender três milhões de discos. É seguido por mais de 600 mil pessoas no Facebook. Como é que funciona a máquina? Talvez não haja máquina. O Tony é o Tony.
Se acham que é um cantor romântico, de sorriso careta e vagamente tontinho, enganam-se. É genuíno num meio de artifício, percebeu que a genuinidade é um ingrediente que faz a diferença. Isso e fazer bem o que faz. Portanto, até podem dizer que não gostam do artista Tony Carreira, mas não podem dizer que o artista Tony Carreira não sabe ser um grande artista.
Então o grande artista (que é um verdadeiro artista) chega a horas, tem todo o tempo do mundo, entrega-se à entrevista. Pede ao fotógrafo que o poupe, porque passou o fim-de-semana na Disney com a filha e chegou há poucas horas de Paris. Tem o telefone no silêncio, não o atende, nem quando é o filho; pede à assistente que o faça. No final da entrevista, sai disparado para lhe ir dar um beijo. Adora ser um paizão. Os filhos, Mickael e David, cantam, como ele. Mas não era dos filhos que se tratava. Nem das coisas que parece que sabemos, a partir das capas das revistas e de um certo zunzum.
Visualmente é como esperamos que seja. Igual à imagem dos concertos. Um blusão de cabedal que deve ter custado uma fortuna, pelo bom que é, e que dá um ar modernaço. Os jeans justos. O cabelo muito penteado. A mesma expressão. Tony Carreira é o mesmo da camisola preta e branca. Vejam na fotografia e digam se não é assim.
Vai fazer anos a 30 de Dezembro. Que presente é que gostava de receber?
Nada. Saúde. Há muitos anos que não ligo a prendas. O caminho não é por aí.
Uma prenda que tenha recebido na sua infância?
Uma camisola que o meu tio me ofereceu quando tinha dez anos. Achei a camisola tão bonita! Preta e branca, com uma espécie de bordado. Tenho uma fotografia com essa camisola. Estou com uns sapatos mais ou menos rotos.
Como é que era a sua cara?
Era a primeira ou segunda vez que era fotografado, no fotógrafo da Pampilhosa da Serra. Estou todo feliz por estar a ser fotografado. Quando falo sobre isto, não é: “Lá vem ele com a história do menino da aldeia.” É que recordo esse tempo com muito carinho.
Gostava de saber desse menino. “O menino é o pai do homem”, escreveu um autor brasileiro.
Concordo. Essa frase é linda. Entendo-a como: a raiz de uma pessoa está no menino, pai de uma pessoa que cresceu. Enquanto esse menino estiver presente, a vida é mais bonita, vemo-la com outros olhos. Não estou a dizer que esse menino está permanentemente em mim. Neste fim-de-semana, esteve. Fui com a minha filha à Eurodisney. Dei comigo a ter reacções de puto. Gritos de doidinho.
A fotografia que aparece no concerto comemorativo dos 25 anos de carreira, projectada no grande ecrã, é a da camisola?
É.
Porque é que a quis num concerto de consagração? É uma maneira de dizer que veio dali?
Possivelmente. Até inconscientemente. Tenho muito orgulho naquilo que fui, no de onde venho. Se viesse de outro sítio, suponho que teria o mesmo orgulho, mas é dali que venho. Essa fotografia é uma época da minha vida. A minha vida, como se fosse uma novela, teve vários episódios. Esse é o final do primeiro episódio.
Passa-se em Armadouro, a aldeia onde nasceu, ao lado da Pampilhosa da Serra.
Ir à Pampilhosa era ir a Nova Iorque. Outro filme. Dez quilómetros [de distância].
Quantas vezes fez a pé o percurso entre uma localidade e outra?
Nunca. Fiz muitas vezes de Armadouro a Gavião, que é a terra da minha mãe. Armadouro é a terra do meu pai. São três quilómetros. À Pampilhosa, ia-se de autocarro ou carro. As memórias que tenho de ir à Pampilhosa são a feira (era uma vez por mês), as festas, no mês de Agosto.
Eram as festas que metiam procissão, arraial três noites seguidas, foguetes no último dia, calor abrasador?
Sim, sim. Apanhar as canas. Ouvir as aparelhagens. Era uma carrinha que andava com qualquer coisa, uma corneta, em cima. Aos berros. Lembro-me de dizer: “Um dia gostava de ter uma coisa destas.” A vida daquele homem [dono das aparelhagens] era pôr música. Antes disso, apaixonei-me pela música quando ouvi um rádio antigo — que hoje tenho. Estava em casa do meu tio. Há dez anos, consegui dar-lhe a volta para ele mo oferecer.
O que é que passava nesses altifalantes?
Quim Barreiros. O Conjunto Maria Albertina. Havia uma canção que passava regularmente, o Emigrante. [trauteia] Não me lembro da letra.
Trio Odemira, românticos, passava muito ou nem por isso?
Não.
Conjunto António Mafra? Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado...
Domingo! Vai a malta passear. Sim! A música que mais povoa a minha infância é a do Conjunto Maria Albertina. Vivi isso na pele.
Vamos ao começo, começo da novela.
O meu pai: eu tinha dias quando emigrou para França. Fiquei com a minha mãe até aos seis anos de idade. Depois emigrou, foi ter com o meu pai. Fiquei na aldeia, entre a minha avó e o meu tio. Até aos dez, 11 anos. Aos 11 anos fui para França, viver com os meus pais e o meu irmão. O meu irmão foi à frente. Tem mais quatro anos do que eu.
Já na região de Paris?
Sim. Numa cidade a 50 quilómetros de Paris, Dourdan, onde vivi 27 anos. Tinha terminado a escola primária em Armadouro, mas em França tive de repetir dois anos de escola primária. Começo a vincar a minha paixão pela música. Começo a ouvir um cantor que ainda hoje idolatro. Viveu pouco tempo. Suicidou-se com 28 anos. Era israelita e cantava em francês: Mike Brant.
Não se adiante. Estamos nos primeiros capítulos. O seu pai era uma pessoa que via uma vez por ano? Que relação tinham? Escreviam-se?
Via o meu pai uma vez por ano, em Agosto, quando ele vinha de férias. Não é muito presente. As recordações mais presentes são do meu avô. O meu avô era pai e mãe. Faleceu quando eu tinha seis. Acabei por fazer do meu avô uma coisa que não sei se ele era. Porque pouco o conheci, não é? A primeira prenda de Natal, um pacote de bolacha Maria, foi o meu avô que me ofereceu. Temos de situar: era antes do 25 de Abril, numa aldeia no meio da serra. Clima rude, vida muito rude. Não havia sequer electricidade. Não havia água [canalizada]. Era a fonte. Uma vida difícil — que para nós era o normal. Não conhecíamos outra. Até aos dez anos, praticamente, não saí da minha aldeia. O meu avô foi uma perda muito grande. Perco aquele que era para mim o tudo. Já fiz uma canção para ele, Como antes do adeus. Depois agarrei-me à minha avó.
Foram o seu avô e a sua avó que fizeram as vezes de pai e mãe.
Lá no fundo, sim. A minha mãe estava muito ocupada a lutar pela vida. Ainda cá, trabalhava no campo. As crianças andavam por ali, na vida dos adultos. No Norte, dizia-se (sem que isto tivesse uma conotação pejorativa) que eram “a canalha”. Não se achava que as crianças tinham de ter uma atenção particular, ou tratadas como flores de estufa. Acho que aquilo que vivemos até aos 15 anos marca-nos para o resto da vida. Na carne, no sangue. Em tudo.
Estou a tentar perceber quem é que lhe deu confiança, a noção de ser amado, nessa vida difícil que era a da sua família.
Se calhar não tenho essa noção... Sou muito mais inseguro do que pareço. Mas muito mais. É essa insegurança que me faz não parar. Que me obriga a trabalhar. Progredir.
Tem medo que no dia seguinte não o queiram? Que deixem de lhe pedir sorrisos?, como se lia num cartaz de uma fã num concerto.
Penso que o lado frágil (que é difícil viver) é que faz que certas pessoas sejam especiais. Tive uma educação básica, mas a vida foi uma boa escola. Tento ser o meu próprio psicólogo. Lidar com os meus medos, os meus receios, as minhas inseguranças.
Pensei que era mais confiante, olhando para o palco. Disfarça bem.
É o mesmo que dizerem que pareço uma pessoa tranquila, serena, quando é exactamente o oposto a maior parte do tempo. Não sou. Tenho é uma paixão enorme pelo que faço — essa é a minha grande força. É a paixão e a parte ingénua, e a trabalhadora, é claro, que fizeram de mim o que sou. Mas nunca a segurança, que ainda hoje não tenho. Estou a lançar um disco e não faço ideia se o disco vai funcionar. Habituamo-nos às palmas. Habituamo-nos a uma série de coisas, porque o ser humano é mesmo assim.
Que é que lhe ocorre?, que os artistas têm altos e baixos e que a seguir pode estar um baixo?
Um artista, quando tem muitos anos de carreira, transforma-se, a cada dia que passa, numa pessoa mais frágil.
É uma frase feita.
Não, não. O carinho que as pessoas nos dão é fantástico. Adoro as pessoas. Adoro falar com as pessoas na rua. Adoro não perder o contacto com as pessoas que vivem uma vida normal. Só me dizem coisas bonitas: “Você é o ídolo.” Isso torna-nos frágeis. Ficamos uns bebés de 50 anos. A minha vida é uma vida maravilhosa, não é? Uma coisa é uma pessoa sair de casa e todos os dias ter de lutar contra tudo e contra todos. Torna-se muito mais forte. Claro que há na minha vida coisas difíceis. Como coisas que dizem e que não correspondem à verdade. E que magoam. Mas é muito mais difícil uma pessoa levantar-se quando estão cinco [graus] negativos e ter de ir construir um prédio, “né”? Ou varrer a rua. Vamos lá ter dois dedos de testa e bom senso. Quando chega a casa, deve estar completamente estourada. É muito mais difícil, “né”? Essas pessoas, pelas dificuldades que a vida lhes dá, tornam-se mais fortes, em termos de carácter, de feitio.
Segundo capítulo da novela: até aos 15 anos. Com o que é que sonhava?
O meu grande sonho, quando vivia na terra, era... Todos os putos da minha idade, 90% deles, tinham um pai ou uma mãe que tinham fugido de Portugal.
Que tinham fugido à pobreza de Portugal?
Tinham fugido à ditadura, à vida que tinham (imposta por uma ditadura). À pobreza. Naqueles meios, quem pudesse ia-se embora. Ouvia-se falar do que era lá fora. Histórias. Basicamente contava-se o sonho americano. O meu sonho era poder ir. Em França, descobri que aquilo era o que se contava e ainda melhor.
Do que é que se falava? Dos bolos? Da Torre Eiffel?
Repare, viver num apartamento, que é hoje uma coisa banal, era fantástico.
Quando é que teve um quarto para si, pela primeira vez?
Aí.
Na casa da terra, quando vivia com os seus avós ou com a sua mãe, dormia no sofá da sala?
No sofá? No sofá? [riso] Não havia sofá. Ninguém tinha sofá naquela terra. Falando em dormir: era numa coisa parecida com um colchão. Lá dentro, não faço ideia o que tinha. Se era milho, se era centeio, se eram pregos. Sei que todos os dias de manhã acordava com as costas todas, todas lixadas e furadas do que havia dentro.
Então em França teve uma casa e um quarto.
E um colchão. [riso] Dormia no quarto com o meu irmão. Era um bairro social que ainda hoje existe. Ainda de vez em quando por lá passo. Tinha aquecimento, água em casa, electricidade. Tinha televisão, sofá. Claro que estava a passar de uma pensão para um cinco estrelas, mesmo não sendo um cinco estrelas.
Os seus pais tinham algum tempo para si?
Muito pouco. Mas passei de os ver uma vez por ano a vê-los todos os dias. Isso mudou a relação. Passo a ter uma vida em família. Nunca tinha vivido com o meu irmão. Vivi dez anos sem o meu irmão.
Têm uma relação muito próxima.
Muito. Ele trabalha comigo.
Ouviu em França cantores que o fizeram querer ser cantor. Art Sullivan era um deles? Era aqui um fenómeno, nas rádios onda média. Adamo?
O Art Sullivan foi muito mais um sucesso português do que francês. Adamo, vou gravar com ele agora. Vou gravar C’est ma vie. [canta] C’est ma vie, je n’y peux rien, c’est elle qui m’a choisi. [É a minha vida, não posso evitar, foi ela que me escolheu.]
Tem uma canção que se chama “A vida que eu escolhi”.
Gosto de escrever sobre o meu sonho. Há coisas que escrevi antes de elas acontecerem. Gosto de histórias, e [as que escrevo] têm que ver com a minha vida. Gosto de histórias duras, tristes. Quase que gosto de sofrer.
“Quase que gosto de sofrer?”
É, é. Nas canções. E no entanto sou uma pessoa alegre. Numa entrevista, fico à defesa.
Fica em pose? Porque tem de corresponder à imagem do Tony Carreira.
Não. Isso não. Eu nunca quis criar uma imagem. Só que vejo a câmara ligada e fico [põe corpo retraído]. Não é medo, fico tenso.
E se me saio mal — é isso?
Não. É a criança que fica assustada. Talvez não consiga passar quem eu sou mesmo. Mas não é para me proteger, nem é por causa de uma imagem que quero criar. Fico como um puto.
O que é que o faria ficar mais descontraído?
Estou bem. Já não sei qual era a pergunta.
Lá atrás, perguntei pelo que ouvia.
Quando chego a França, o que levo é a Amália. Não era fã de fado. Até posso dizer que não gostava de fado. Mas Amália, adorava. E adoro esta malta do fado, esta geração, o que têm feito nos últimos anos. Deixou de ser arcaico. A Amália. Em França. No ano passado gravei um disco de duetos para o mercado francês. Cantei com pessoas que idolatrava quando era o tal puto. Estava em estúdio a gravar, via-os chegar e parecia [que via] o Pai Natal a cada minuto.
Quem?
Michel Sardou, Serge Lama. Eram artistas intocáveis. Era impensável cantar com eles. Cantoras, cantei com duas que adoro: Natacha St-Pier e Anggun. Tive depois o privilégio de ser entrevistado pela pessoa que já entrevistou tudo, durante 50 anos, o big dos bigs dos bigs, o Michel Drucker. Lançou a Céline Dion. É amigo pessoal do Aznavour. Entrevistou o Obama como entrevista o Tony.
Gosto muito do Aznavour.
Conheço-o, conheço-o. É uma pessoa maravilhosa. Era para ter entrado neste disco. Não entrou porque estava doente. O Aznavour é incontornável.
Gostou especialmente de ser entrevistado por Michel Drucker? É uma maneira de dizer que pertence a um clube selecto?
Nem vai por aí. Vai mais pelo lado: como é que é possível? É como quando olho para um artista português que era uma star quando eu era um sonhador. Ainda hoje olho para essa pessoa de baixo para cima. Isso é o puto.
O sonhador a olhar para a star.
Para aquilo que na minha cabeça ainda é a star.
França, ainda esse capítulo. Ainda antes do sucesso.
Com 15, 16 começo a trabalhar na fábrica. Ganho algum dinheiro para comprar uma guitarra, um amplificador. Entro numa banda com dois primos e ponho o meu irmão na história, a tocar um instrumento, porque eu não tinha transporte, não tinha carta de condução [e precisava de boleia].
O seu irmão é um fixe.
O meu irmão é brutal.
O que é que ele fazia antes de trabalhar consigo?
Trabalhava na fábrica, a mesma fábrica. Uma fábrica de enchidos. Não sei bem o que fazia... A minha cabeça não estava muito ali. O meu irmão era um empregado exemplar. Se não fosse eu a virar-lhe a cabeça, tinha continuado naquilo. Sem dúvida que foi a pessoa que mais me protegeu. O meu anjo da guarda. Ainda hoje é. Estive na banda, Irmãos 5, nove anos. Fizemos o circuito dos bailes.
Bailes de fim-de-semana, nas comunidades de portugueses?
Sim, principalmente comunidades à volta de Paris. Aos 24, gravo uma maquete que apresento cá, no festival da RTP. Não ganho. Quem ganha é a Dora, com Déjà Vu. Acho que foi justo. Na altura, não achei. (Já me cruzei com ela e já tive vontade de lhe falar disto. Não sei se ela se lembra de mim.)
Quando olha para si nessa altura, vê quem? Como é que era?
Falando dos medos..., na altura era [de mais]. Nos ensaios, parecia que ia desmaiar em palco. Tem que ver com ansiedade. A primeira vez que subi ao [Pavilhão] Atlântico, o Atlântico cheio, nos primeiros 15 segundos pensei que me ia dar um ataque.
Se calhar passei muito depressa o capítulo da formação. O dos anos que antecedem o sucesso. É uma fase muito importante?
Não. É uma época feliz. Até que enfim eu estava a fazer o que mais amava. Já era artista. Ia para a fábrica na segunda com o desejo de que chegasse sexta. Andávamos de associação em associação, milhares delas. Havia muito mais do que hoje. Portugal era muito mais longe. Hoje, há dez voos por dia para Lisboa e Porto, 20, muitos. Apanhar avião é como na altura apanhar autocarro.
Acreditava que um dia ia ser o grande dia?
Queria acreditar que sim. Ah, se conseguisse, eu sabia o que queria fazer. Por exemplo, via artistas a fazer playback e eu achava que o caminho não era por ali. Fita e voz por cima. Eu queria ter uma banda. Dentro da música ligeira — que é aquilo de que gosto — queria uns arranjos mais pop.
É um autodidacta, nunca estudou música.
Nunca.
É uma coisa a que chegou por instinto e aproximação?
A minha vida, toda ela, foi feita dessa maneira. Quantas vezes me disseram que o caminho era por ali... E o meu instinto dizia-me que era outro. Tive uma proposta de uma editora, numa época em que já não tinha editora, em que já tinha sido despedido delas todas. Isto há 23 anos. Estava completamente falido. O dono de uma editora oferece-me um valor em contos bastante alto. Olho para ele nos olhos, teso, sem um escudo, e digo: “Não quero o dinheiro. Quero que acredite em mim.” Confessou-me anos mais tarde que o que o fez apostar em mim foi essa atitude. Como é que um tipo que precisa de dinheiro diz que não quer o dinheiro?
Como é que não queria o dinheiro?
O que lhe pedi foi um budget para estúdio. “Vou para Portugal gravar o disco, não tenho dinheiro para alugar um carro, arranje-me transporte. Deixe-me trabalhar com esta pessoa.”
Quer dizer, mesmo depois de ter começado a gravar, ainda foram uns anos a penar.
Comecei a gravar em [19]88. Até 92, todos os discos foram fracassos autênticos. Não condeno as editoras que acharam que eu não tinha talento. Se calhar o trabalho que eu fazia em 90 não tinha qualidade. Há canções [desse período] que regravei depois e que foram sucessos. Aprendi muito com o Ricardo Landum na parte da composição. Não é à toa que se fazem canções, há regras. Começo a trabalhar com ele nessa altura. Aprendo, inclusive, a cantar de outra maneira. Em grande parte dos discos, há direcção musical. Há quem dirija a voz do Roberto Carlos, do Júlio Iglesias.
A escolha é sempre sua? Escolhe em função de que critério?
Fui feliz nas pessoas que escolhi para o meu projecto. Não era eu que ia fazer as orquestrações em palco, mas quem ia escolher essa pessoa era eu. Não era eu que ia ser o meu agente, mas quem ia escolher essa pessoa era eu. Eu queria pessoas que gostassem do meu projecto. Sou muito fiel às pessoas que me acompanharam. Tenho pessoas que estão desde o primeiro dia.
Quem?
O Ramiro, nas luzes. A Fernanda [ex-mulher]. Os meus agentes foram a Fernanda e o meu irmão. Ou seja, o agente é o mesmo, dividido em partes. Sou apetecível para qualquer agente deste país, mas depois há pessoas que nos defendem, que dormem a pensar em nós. [Escolher pessoas assim] é o conselho que dou a qualquer artista que esteja a começar. O guitarrista que estava do meu lado esquerdo, durante 23 anos, foi sempre o mesmo. Saiu por razões da vida pessoal. Ainda hoje olho para lá e sinto a falta dele. Ninguém faz nada sozinho. As ideias são as minhas. Depois são desenvolvidas com a criatividade dos outros. Esses outros: é maravilhoso envelhecermos todos juntos.
Ainda não percebi bem a sua relação com o dinheiro.
Tive projectos em que tive de investir muito de mim, também financeiramente. Sempre acreditei que do trabalho bem feito há um retorno. Gosto, como qualquer pessoa, de dinheiro, do que o dinheiro nos pode proporcionar. Mas não se pode pensar primeiro no dinheiro.
Como é isso possível vindo de um meio tão humilde? É normal, a seguir, valorizar o dinheiro.
Eu valorizo. Não quero é olhar para um disco e pensar: “Não posso gravar mais uma canção porque isso custa-me X.” Estou-me nas tintas. Os orçamentos dos meus discos são sempre ultrapassados, rebentados. Se fosse uma editora a pagar, travava-me logo.
Está a dizer-me que o investimento na gravação dos discos é seu.
Ah, sim, sim. O que eu gasto na gravação de um disco, por mais discos que eu venda, nenhuma editora me pagava. Sabe, a primeira tournée que faço e em que ganho algum dinheiro, foi em 92 ou 93. Na tournée toda ganhei 12 mil euros. Achei que era uma fortuna! [riso] Lembro-me de chegar a casa e comentar com a Fernanda: “Isto é top. Andei por aí a cantar e ganhei 12 mil euros.”
Que presente se deu, para celebrar?
Não dei. Quando comecei a ganhar dinheiro, e durante muitos anos, nunca comprei nada que fosse para meu conforto pessoal. Foi sempre a pensar na família. Uma casa. Uma boa escola para os miúdos. Só comecei a [permitir-me] prazeres pessoais há quatro, cinco anos. Agora, já posso brincar um bocadinho.
A geração seguinte já conheceu a estabilidade. Os seus filhos Mickael, David e Sara têm 28, 23 e 15 anos.
O único que ainda passou por coisas foi o Mickael. Ele, em tom de brincadeira, diz: “Eu ainda sofri.” Quando casei com a Fernanda, tinha 21. Uma criança. Fomos viver para um bairro social. Aquilo era muito violento.
Tiros, pancadaria, tráfico?
Sim. Não sair à rua a partir das oito. A polícia frequentemente no bairro.
(O lanho que tem no lábio é de quê? Onde arranjou essa cicatriz?
Foi a brincar. Com uma garrafa de água numa piscina. Ficava bem na fotografia dizer que foi numa rixa [riso]. Não foi.) O que queria deixar claro acerca do dinheiro: sempre que havia, investia em mim. Amanhã é outro dia e logo se vê. O tempo deu-me razão. No Pavilhão Atlântico, nunca ganhei dinheiro.
Tem dezenas de músicos em palco.
O mais caro não são os músicos, é a produção. O que eu quero é sair dali e dizer: “Fiz um espectáculo ao nível da Madonna.” Se ficar alguma coisa no tempo, e não acredito que fique, são aquelas noites mágicas. Isso não tem preço. Espero que nunca me falte para comer. Espero que nunca falte aos meus filhos. Chegar ao fim da vida com mais ou menos..., não é relevante. O relevante é o que tenho na cabeça e que fiz. Também não se pode pensar que se faz porque há dinheiro... Nasci sem dinheiro. O dinheiro deu-me a possibilidade de escolher.
É essa a grande vantagem do dinheiro, poder escolher?
Yes. É o grande luxo que temos na vida.
Na sua canção A vida que eu escolhi aponta, passo a passo, a concretização do sonho.
É. É complicado definir o meu percurso. Empenho e trabalho, claro. Mas acredito seriamente que se não fosse tão sonhador, se não vivesse por vezes numa nuvem, teria, nos anos mais difíceis, abandonado. Como muita gente fez. Continuava a acreditar. A cada derrota, o sorriso não caía. Continuava a acreditar que um dia ia ter a luz, um foco em cima de mim, para que me vissem.
Só para organizar a informação: depois da fábrica, nunca mais voltou a ter um trabalho de sobrevivência?
Não. Quando deixei a fábrica, em 90, esperava não ter de voltar. Se tivesse de voltar, ia sofrer muito. Quando começo a ganhar algum dinheiro — dinheiro ridículo, mas já dava para comer —, esperava que pelo menos fosse assim até ao fim da vida. Se deixasse de ser o caso, psicologicamente, seria a derrota.
Falemos da “máquina”, uma palavra de que não gosta. Funciona de maneira exemplar. Basta ver as imagens dos concertos. Dezenas de pessoas em palco, tudo afinado, nada falha.
A trabalhar todos os dias, são oito. A trabalhar pontualmente nos concertos, são 40. Músicos, técnicos, sempre os mesmos, fiéis ao meu projecto. Quando tiver de prescindir deles, paro de cantar. Porque deixo de fazer as coisas bem feitas. Deixo de fazer as coisas que o público tem reconhecido que faço bem.
Como é que se define a marca Tony Carreira? Cantor romântico?
Diria assumidamente um cantor romântico. Com espírito pop. Hum. Hum. Acho eu.
Como é que chega ao coração das pessoas? É parte fundamental do seu sucesso. No seu site tem um capítulo que diz: “Em cada fã, um amigo.”
Sabe uma coisa, quando começo a cantar, faço primeiras partes. Fui assobiado, levei com tudo. Quando me cruzo com o Rui Veloso..., ele lembra-se de um espectáculo desses. Fiz primeiras partes do Rui Veloso, do José Cid, do Marco Paulo, do Dino Meira, do Jorge Ferreira, do José Malhoa, do Quim Barreiros.
Sem complexos e sempre a pensar que um dia seria a estrela de cartaz e que outro faria a sua primeira parte?
Não me interessava quem é que ia fazer a minha primeira parte. Lembro-me de estar com uns postais-foto ao pé do cabeça de cartaz na esperança de que alguém me pedisse um autógrafo. Com o tempo, acabou por acontecer. Um, dois, três. Uma hora de autógrafos. Até chegar aos dias de hoje. Quatro, cinco horas de sessões de autógrafos.
Tudo num crescendo.
Como a máquina. Comprei uma coluna, um projector, a bem do espectáculo. O meu percurso foi passo a passo. Não cheguei de repente. Não quero ficar indiferente a ninguém. Não quero. Não quero. Não quero! Tanto respeito um fã quanto uma pessoa que na rua me diz: “Não compro os seus discos mas gosto de si.” Acho fantástica essa sinceridade.
Já está há pelo menos dez anos lá em cima. É difícil manter esse pico de popularidade.
Quanto maior é o sucesso, maior é a responsabilidade. O objectivo é surpreender-me a mim e ao público.
Conseguir fazer melhor. Como é que reage às críticas, às pessoas que dizem que é piroso?
Em tempos sofria com isso. Achava injusto. Entretanto, passou-me. O que acho, hoje, é que quem escreve esse tipo de coisas não conhece o meu trabalho. Tenho a certeza: o meu trabalho mau não é. Podem não gostar de mim, das minhas canções, das minhas letras. Isso é uma secção. Dizerem que o meu trabalho está mal gravado, que não tem bons músicos, que não tem qualidade... Rio-me. É alguém que não viu.
Desde quando lhe chamam Tony?
Desde que comecei a ter namoradas. Desde os 15 anos.
Tudo seria diferente se fosse feio e gordo? A sua imagem encaixa no perfil do cantor romântico.
Essa pergunta é muito complicada. Sou obrigado a dizer que sim. Ganhei duas vezes o prémio do tipo mais sexy cá do bairro (de Portugal). Foi um concurso a que não dei valor. Não fui receber os prémios. Não é o que acho de mim. Também não acho que seja um tipo feio. Acho que sou um tipo normal. Devo ter um certo charme. O charme é mais forte que a beleza em si. Há dois tipos de cantor. Os da voz do outro mundo, que podem cantar de costas, sentados, deitados. Um Pavarotti, um Freddy Mercury, são extraterrestres. Um Júlio Iglesias, se não fosse um tipo atraente, não teria a carreira que tem. Eu acho que sou um tipo engraçado.
Que impacto teve na sua vida fazer 50 anos?
Um desastre.
Quando li, nas capas das revistas, que se tinha separado, achei que tinha que ver com o embate dos 50.
Achou que aos 50 me tinha dado a travadinha? [riso] Não. A idade vai ser um problema. Não vou gostar mesmo de envelhecer. Admiro as pessoas que envelhecem de forma serena. Não me parece que na classe artística seja uma coisa maravilhosa.
Bom, de qualquer maneira, ainda falta muito para envelhecer.
Já sinto que sou um idoso.
Está a dar-me tanga, mas está bem.
Não estou, não. Fisicamente estou bem, graças a Deus. Mas vejo as coisas antes. Com 15, já pensava à 18. Neste momento, quase 51, já estou nos 60.
Os seus pais ainda são vivos?
Sim. Têm 74 anos.
A sua mãe é a sua maior fã?
Não. Não sei. A minha mãe é muito discreta. Fala pouco. O meu pai fala mais. Pela conversa, diria que o meu pai é o meu maior fã.
A sua mãe não lhe diz o quanto gosta de si para não ficar um convencido?
Os meus pais fazem parte daquela geração em que não se diz. Não falam de sentimentos. Acordei há uns dez anos a pensar (e a pôr na prática) que ia dar um beijo ao meu pai. “Espera lá, quando vou ter com o meu pai, não me dá um beijo, não lhe dou um beijo.” Não me lembro de os meus pais me dizerem: “Amo-te muito.” Vejo nos olhos que me amam muito. Vejo pelas atitudes que têm. Mas não se fala.
Tem a facilidade de lhes dizer que os ama?
Não lhes digo. Digo aos meus filhos. Muito, muito. A cada minuto. Mando mensagens do nada: “Amo-te muito.”
Seria um bom presente de aniversário para si, os seus pais dizerem-lhe que o amam. Gostava?
Está-me a pôr a chorar! Vou aproveitar para lhes dizer. Amo profundamente os meus pais. Acho que sou um grande pai porque segui o exemplo dos meus pais.