O deserto cresce
Por que razão é que, acedendo como nunca a uma possibilidade de falar universal, com as “redes sociais” garantindo um tecido de vozes como nunca se ouviu, se diz tão pouco?
"O deserto cresce. Infeliz aquele que crê no deserto.” (Nietzsche)
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"O deserto cresce. Infeliz aquele que crê no deserto.” (Nietzsche)
Em dois textos, aqui no PÚBLICO, António Guerreiro comentou o artigo em que colocava a questão de saber se, perante a escassez do tempo, valia a pena ler livros novos. Apresentei a questão como um dilema individual sobre a economia do tempo que cada um que gosta de ler coloca a si próprio, mas esta dualidade é tudo menos inocente. Implica, como Guerreiro refere, uma atitude ou uma posição sobre o “valor” da criação estética dos nossos dias, e, de forma mais lata, sobre a contemporaneidade, experiencial, criativa e histórica.
Fazendo um paralelo entre o meu artigo e a decisão de Paulo Varela Gomes de ler Spengler, atribuía-nos a ambos a vontade de “não viver no seu próprio tempo” e isso ser “reaccionário”. Presumo que aqui o uso do termo “reaccionário” significaria uma recusa activa da contemporaneidade a favor de um apego ou um regresso a um mundo antigo, que teria virtudes que não se reconheciam nos dias de hoje. Talvez.
Mas talvez seja um pouco mais complicado. É interessante ver Guerreiro a caracterizar o livro de Spengler sobre o Declínio do Ocidente como “uma curiosa velharia, proveniente daquele Kulturpessimismus alemão que tinha o método de pensar por catástrofes”. A ironia é que o profundo pessimismo histórico de Spengler envelheceu menos do que Guerreiro imagina, e são seus filhos e netos as dezenas de livros e artigos, capas de revistas populares e eruditas que o retomam para a crise dos nossos dias e a constatação da globalização, da decadência do “Ocidente” (Europa, EUA) face à China, Índia e América Latina.
Claro que é sempre possível reduzir o livro de Spengler à interpretação politicamente correcta de que confundimos a morte do “nosso mundo” com a morte do mundo, como confundimos a “nossa crise” com a inexistente crise fora das portas da “velha Europa” e que nos recusamos, no nosso eurocentrismo, a pensar fora desse quadro familiar. Também é verdade, mas não é toda a verdade, porque estamos a falar de uma parte, apenas daquilo a que chamamos, com alguma ambiguidade é certo, “cultura ocidental”.
Na sequência de Spengler, mas também na de Nietzsche, podemos colocar a questão de saber se vale a pena ler “novidades” que não traduzem senão sucessivos remakes de uma cultura em extinção, porque não há nada de novo a dizer que não tenha sido dito. No fundo, saber se a arte, a literatura, a criação num sentido mais lato, tal como a conhecemos na chamada “cultura ocidental”, está a morrer ou já morreu e a gente ainda não percebeu que tem um morto no quarto.
É verdade que o anúncio do fim da literatura e da arte tem sido recorrente na própria “cultura ocidental”, em que é, aliás, um elemento da história cultural que reconhecemos como nossa. Mas, se antes nunca foi verdade – Guerreiro dá alguns exemplos de anúncios do fim da cultura que hoje parecem “divertidos” (a palavra não me parece a mais bem escolhida) –, será que não pode ser agora verdadeiro? Como presumo ambos sermos agnósticos, pelo menos em relação a uma qualquer filosofia teleológica da história, o que é que nos leva a considerar tão facilmente que algumas coisas são eternas? Porque gostamos delas?
Claro que, numa deriva psicologista, uma das pragas da modernidade, podemos considerar que este anúncio do fim é um reverso da tentação adâmica de que tudo começa connosco e uma pobre projecção da finitude da vida humana e da vontade de que connosco nasça tudo e connosco morra tudo. Mas não vou por aqui, porque por aqui não se vai a lado nenhum.
De novo, o psicologista nos dirá também que na criação artística, literária, poética, encontramos o que de mais próximo existe de um espelho amigável da humanidade, que nos diz sempre que o “fogo de Prometeu” habita em nós e nos faz deuses na terra e que por isso somos diferentes, quiçá imortais. É confortável, muito confortável, mas não é mais do que isso.
Claro que, ao discutirmos “sinais” do fim, estamos num terreno pantanoso e mais facilmente contraditável. Mas podemos discutir alguns. Por exemplo, saber que significado teve toda a história estética do século XX, na qual a uma aceleração da história típica da modernidade correspondeu um chegar a limites que parecem dificilmente ultrapassáveis, como o quadro branco de Malevitch, o urinol de Duchamp, o Finnegans Wake de Joyce, o teatro de Beckett, a música de John Cage, as imagens de Andy Warhol. Todos estes exemplos podem ser considerados formais, de limites formais: a uma cor pura, a um objecto, a uma construção linguística, a um monólogo fragmentado e gutural, ao silêncio como música.
Mas há “coisas novas” na contemporaneidade que podem exigir uma nova criatividade? Se colocarmos a mesma questão em termos filosóficos, ela corresponde à pergunta: há problemas filosóficos novos depois dos gregos? A minha resposta é: há. Posso reconhecer pelo menos alguns, mas ao mesmo tempo perguntar-me porque há tanta resistência em os aceitar no cânone, mesmo quando tem todo o sentido aí estarem.
Um é a possibilidade, só existente depois da bomba termonuclear, de o homem se poder extinguir a si próprio. Não se trata de extinguir uma cidade, uma civilização, como muita literatura apocalíptica desde a antiguidade trata, a começar pela Bíblia, mas da extinção, neste caso auto-extinção da humanidade. Isto é novo, é do domínio do puramente irracional – a auto-extinção da humanidade é a coisa menos racional que há, e, nesta matéria, só o medo é racional. Um subproduto desta questão encontra-se na meditação sobre o Holocausto.
A outra novidade é a possibilidade, altamente provável, da existência e do contacto com uma exobiologia e, no limite, com uma exo-inteligência. O enorme impacto desta possibilidade tem precedentes históricos quer na descoberta das civilizações pré-colombianas, quer nas revoluções epistemológicas do darwinismo e do “freudismo”. Mas mesmo assim será algo de muito diferente e mais amplo. Ainda recentemente o Scientific American relatava o debate religioso suscitado pelo livro de David Weintraub Religions and Extraterrestrial Life: How Will We Deal with It?, usando o título provocador de “Did Jesus Save the Klingons?“ Um subproduto deste tipo de questão é a possibilidade de as máquinas “pensarem”, ou, ainda mais radicalmente novo, de “sentirem”.
Por que razão é que estas significativas “novidades” têm pequena representação na literatura, a não ser em géneros considerados menores, como a ficção científica, e quase só no cinema encontramos reflexos destes novos problemas filosóficos da “condição humana”? Parece haver um esgotamento formal que impede uma porosidade daquilo que é novo na história do século XX, principalmente no final do século XX, para a criação. Há excepções, no cinema em particular, no 2001 Odisseia no Espaço, no Blade Runner, no Minority Report, de novo com origem em obras de ficção científica, de Arthur C. Clarke, Bradbury, Philip K. Dick, mas não chega.
No entanto, mesmo Guerreiro é sensível a outros “sinais” de crise, como, por exemplo, a redução da literatura à “tagarelice” de um certo jornalismo, “com a sua linguagem servil, pré-fabricada, imediata”, que se limita “a amplificar a 'reportagem universal'”, retomando a crítica de Karl Kraus.
Guerreiro escreve sobre os nossos dias em que “o ruído é muito maior”, em que é difícil encontrar “a potência silenciosa da literatura e do pensamento que dá forma e firmeza ao silêncio”. Estas últimas frases poderiam suscitar toda uma outra discussão, até porque ele suspeita que esta logomaquia enche o ar, mas não diz coisa nenhuma. Impede-nos de “ouvir” o nosso tempo, porque mesmo tentando falar sobre ele apenas se produz ruído.
Porquê? Por que razão é que acedendo como nunca a uma possibilidade de falar universal, com as “redes sociais” garantindo um tecido de vozes como nunca se ouviu, se diz tão pouco? Será que a “rede”, ao não ter sentido nem direcção, destrói o significado e acaba por apagar o “fogo de Prometeu”?
Guerreiro diz que, “se queremos compreender a nossa época, temos de correr o risco de sermos intoxicados por ela”. Com certeza. Porém, a melhor maneira de sermos “intoxicados” é a criação literária e artística contemporânea? Não sei. Subsiste a questão de saber se somos mais bem “intoxicados” por ela lendo a Divina Comédia em 2014 ou os sucessivos Booker Prize.
Não tenho resposta cabal à afirmação de Guerreiro de que “não podemos afirmar com segurança que a nossa época é mais pobre”. Tenho apenas sérias dúvidas e a suspeita de que esta “pobreza” pode levantar um problema maior, o do “deserto que cresce”.