106 anos (!) de Manoel de Oliveira
O aniversário de tão longeva idade é como uma lucerna no ilusório afã dos humanos quererem viver para sempre.
Em 22.4.2002 fui recebido pelo Manoel de Oliveira em sua casa mediante pedido do amigo comum Roma Torres. Pretendia eu convidá-lo para apadrinhar os sete anos de actividade do Clube de Tango do Porto, associação patrocinada com desvelo por Enrique Pareja, o embaixador da Argentina em Lisboa nessa época. O nosso maior cineasta seria a personalidade certa para dar relevo e prestígio àquela associação cultural (que acabaria por agonizar infestada de crápulas, como só numa letra de tango poderia descrever-se) por muitos motivos e mais este: 11 de Dezembro, dia do seu aniversário, é também o Dia Mundial do Tango, comemorado entre os aficionados e assim estabelecido porque esse dia era o do aniversário de Carlos Gardel (nascido em 11.12.1890), o mais universal cantor de tangos de cuja consagração em Paris, nos anos 30 do séc. XX, é contemporânea a juventude boémia do Manoel de Oliveira. Desde logo me chamou a atenção o facto de nem se sentar nem me convidar a sentar, a lembrar-me o pensamento de Séneca: “Não é que tenhamos pouco tempo. Não podemos é esbanjá-lo”. Porém, mudou de atitude quando soube o que ali me levava. Apesar de não poder aceder ao nosso convite, já que no dia aprazado teria que estar em Hong-Kong e na data alternativa partia para Itália numa azáfama de trabalhos em agenda, entusiasmei-o com o meu assunto, começando ele, logo ali, a gizar planos fílmicos, primeiro gesticulando com as mãos como quem mede o ar, depois, passando para o corredor, do mesmo modo medindo com vigorosas passadas métricas imaginários cenários daquilo que eu lhe ia descrevendo.
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Em 22.4.2002 fui recebido pelo Manoel de Oliveira em sua casa mediante pedido do amigo comum Roma Torres. Pretendia eu convidá-lo para apadrinhar os sete anos de actividade do Clube de Tango do Porto, associação patrocinada com desvelo por Enrique Pareja, o embaixador da Argentina em Lisboa nessa época. O nosso maior cineasta seria a personalidade certa para dar relevo e prestígio àquela associação cultural (que acabaria por agonizar infestada de crápulas, como só numa letra de tango poderia descrever-se) por muitos motivos e mais este: 11 de Dezembro, dia do seu aniversário, é também o Dia Mundial do Tango, comemorado entre os aficionados e assim estabelecido porque esse dia era o do aniversário de Carlos Gardel (nascido em 11.12.1890), o mais universal cantor de tangos de cuja consagração em Paris, nos anos 30 do séc. XX, é contemporânea a juventude boémia do Manoel de Oliveira. Desde logo me chamou a atenção o facto de nem se sentar nem me convidar a sentar, a lembrar-me o pensamento de Séneca: “Não é que tenhamos pouco tempo. Não podemos é esbanjá-lo”. Porém, mudou de atitude quando soube o que ali me levava. Apesar de não poder aceder ao nosso convite, já que no dia aprazado teria que estar em Hong-Kong e na data alternativa partia para Itália numa azáfama de trabalhos em agenda, entusiasmei-o com o meu assunto, começando ele, logo ali, a gizar planos fílmicos, primeiro gesticulando com as mãos como quem mede o ar, depois, passando para o corredor, do mesmo modo medindo com vigorosas passadas métricas imaginários cenários daquilo que eu lhe ia descrevendo.
Desde o breve encontro com este ancião modesto e prodigioso que cada notícia de mais um aniversário seu me faz pensar na condição de incerteza intrínseca à nossa existência.
A minha sábia e quase nonagenária mãe desde sempre anunciou os seus planos para o dia seguinte subordinados a um “amanhã, se eu for viva…”, conforme o epigrama de Marcial (40 d.C. – 102 d. C.): “Dizes ‘amanhã’? Ah! que sabemos nós do dia de amanhã? (…) Que certeza tens tu de estar vivo amanhã? (...)”.
Nada é mais certo que a incerteza do dia de amanhã. Jorge Luis Borges lembra-nos isso num aforismo: “Ninguém se julgue novo de mais para não estar morto amanhã! E ninguém é velho de mais para não poder durar mais um ano!”. Relembrem-se das vidas finadas prematuramente e sem aviso. E vejam quantos vão somando anos sucessivos à esperança de vida prevista.
É certo que para alguns a longevidade é penosa e até indesejável, umas vezes pela patologia orgânica, outras pela depressão involutiva, males que podem ocorrer no envelhecimento. Paul Bowles, escritor octogenário acamado em Tânger e rodeado de frascos de medicamentos, repetia, a quem o visitava, este estribilho: “(…) quando eu era vivo (…)”; e Elysio de Moura, já próximo dos 100 anos, num dos seus raros passeios pelas ruas de Coimbra, abordado carinhosamente por um transeunte desconhecido com exclamações de júbilo “Ai Sr. Professor, que alegria vê-lo! Ai que alegria!!!”. “Mas você conhece-me?” – perguntou-lhe. “Oh! Sr. Professor!...”. E aí ele esclareceu-o: “Mas olhe que eu já morri!...”.
Se em algumas circunstâncias o envelhecimento cursa de forma dolorosa pelos lutos e com a desesperança pedindo a morte, noutras (veja-se a duquesa de Alba e Di Stéfano!) constitui o tempo propiciatório para os mais malvistos devaneios eróticos (“…as paixões tardias/ são ironias/ dos deuses desleais” – Torga) como se um derradeiro amor fosse o esconjuro capaz de fazer os amantes sobreviver à própria morte (“…serás pó/mas pó enamorado…” – Quevedo).
Manoel de Oliveira, com ditosa saúde física e vigor moral, chegou até hoje incólume às grandes provações dos anos, consagrando-se a contar-nos a vida e fazer-no-la sentir como só através da mágica arte cinematográfica se alcança.
Há pouco disse que “se não fizesse filmes morreria”. E, segundo li algures há uns meses, estava a começar a rodagem de O Velho do Restelo, mais um na sua série interminável de filmes, “para não morrer”, como os contos das Mil e Uma Noites com que Sherazade adiava sucessivamente a morte.
Por isso o aniversário de tão longeva idade é como uma lucerna no ilusório afã dos humanos quererem viver para sempre. Ou, não sendo a finitude remediável, como uma estrela indicadora do sentido para os mais longos dias.
Médico (mvalelima@gmail.com)