Os sossegados prazeres
Os B-52’s, os Doors, o Zappa e as maluquices do Satie, os portugueses com mais de 50 anos a falar inglês (tirando o Jorge Sampaio)
A manta quente no sofá, um qualquer gato a ronronar, um cigarro, o Bach, a aguardente da minha avó Belandina, o meu pai a reinar com a minha filha, o vaporzinho do café na esplanada fria, uma trovoada, o bafo da minha mulher por entre os lençóis, a chuva a chicotear as janelas, o alecrim a estalar na salamandra, o Eisenstein, o Pratt, o Eugénio de Andrade, os azulejos do mestre Pomar no Alto dos Moinhos.
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A manta quente no sofá, um qualquer gato a ronronar, um cigarro, o Bach, a aguardente da minha avó Belandina, o meu pai a reinar com a minha filha, o vaporzinho do café na esplanada fria, uma trovoada, o bafo da minha mulher por entre os lençóis, a chuva a chicotear as janelas, o alecrim a estalar na salamandra, o Eisenstein, o Pratt, o Eugénio de Andrade, os azulejos do mestre Pomar no Alto dos Moinhos.
O alho cortado fino e o gindungo a serem esfregados num bife de vaca com dois dedos de altura, a voz da Elis, da Manuela Azevedo, da Maria João e da Billie Holiday, o papel dum jornal aberto pela primeira vez, um belo Stolichnaya com três pedras de gelo respeitáveis e uma farripa de água tónica só para adoçar, as curvas da gata a descer langorosas o corredor, a irregularidade das calçadas de Lisboa, a regularidade do amarelo no Alentejo, o negro gris do Porto, pão quente com manteiga açoreana, o vaporzinho da imperial gelada, a caça aberta aos namorados das miúdas novas e giras da família, a minha avó Adília a dizer palavrões às caretas da minha mãe, a descontração muito zen do meu sogro.
O Velázquez, o Goya, o Manet e o Schiele, a Feira da Ladra, as chegadas no aeroporto, cachecóis e graffitis que sejam mais do que uma assinatura, carros a parar nas passadeiras, o cheiro e o rame-rame das ondas na praia, a guincharia dos putos no parque, os olhos da Marta a ouvir o “João e Maria” da Nara e do Chico, o suave gozo da malta sempre que um poderoso se vê à rasca, as velhotas de bata, o cheiro a sabão azul e branco e aguarrás das drogarias, o vinho baptizado das tabernas e o tinto a sério, alentejano ou duriense.
Os B-52’s, os Doors, o Zappa e as maluquices do Satie, os portugueses com mais de 50 anos a falar inglês (tirando o Jorge Sampaio), o Jorge Jesus, a jovem evangélica que canta espirituais Estrada de Benfica acima na vinda da missa, o sabor da fumarada das castanhas assadas de rua, o meu grupo a gozar com os "hipsters" que se exibem Bairro Alto acima Bairro Alto abaixo, a minha irmã a gargalhar, a minha filha a castigar os bonecos que se portam mal, o Jorge Luis Borges, o Mário de Carvalho, o António Gedeão, a Sophia.
Espalhar tinta à balda numa tela, ler qualquer coisa que se revela óbvia logo que acabamos de a ler, escrever como falo, ensinar alguma coisa a alguém, aprender alguma coisa com esse mesmo alguém, ouvir música baixinho na rua e escutar as conversas à mesma, correr à chuva de mão dada, adormecer no cinema e ressonar tanto que se incomoda a "intelligentsia", os pés em meias grossas em chão de madeira quando faz frio e à solta no empedrado quando está calor, a discreta fé do meu pai, o cheiro dos livros velhos, a minha filha quando vê ou ouve ou saboreia alguma coisa pela primeira vez.
Fazer amor logo a seguir a acordar, a maneira como a roupa velha nos conhece o corpo, o barulho que o cigarro faz quando o apagamos numa poça, o Zeca Afonso e o Voltaire, os amigos a entrar cá em casa, os momentos sem dor, sem inquietude nem inveja nem rancor... eu podia continuar, mas vocês sabem que a vida vale a pena.