As quatro almas brancas

Luís Miguel Cintra, Diogo Dória, Ricardo Trepa e Mário Barroso. Quatro actores, quatro corpos, quatro vozes num banco de jardim, como se fosse o Jardin do Éden. Ou apenas o jardim da casa de Manoel de Oliveira, que faz 106 anos – e estreia o seu novo filme, O Velho do Restelo.

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Ouvido em off a explicar a diferença entre a obra-prima de Cervantes e a de Camões – “o mar pariu Os Lusíadas e a alma humana o Dom Quixote” –, Teixeira de Pascoaes (Diogo Dória) senta-se entre ambos. Depois chega Camilo (Mário Barroso), numa espécie de assombração que atravessa toda a obra de Manoel de Oliveira – e de imediato o revemos em O Dia do Desespero (1992).

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Ouvido em off a explicar a diferença entre a obra-prima de Cervantes e a de Camões – “o mar pariu Os Lusíadas e a alma humana o Dom Quixote” –, Teixeira de Pascoaes (Diogo Dória) senta-se entre ambos. Depois chega Camilo (Mário Barroso), numa espécie de assombração que atravessa toda a obra de Manoel de Oliveira – e de imediato o revemos em O Dia do Desespero (1992).

No mesmo banco de jardim, que, afinal, é o jardim da sua casa no Porto, Manoel de Oliveira reúne em O Velho do Restelo os quatro actores que maiores e mais preponderantes participações têm tido na sua filmografia: Luís Miguel Cintra, 22 presenças desde que, em 1983, deu voz off às palavras do Padre António Vieira no documentário Lisboa Cultural logo seguida do longo papel de Don Rodrigo em Le Soulier de Satin (1985); Diogo Dória, 18 presenças, a cumplicidade mais antiga e que vem de Francisca (1981), onde foi José Augusto, amigo de Camilo; Ricardo Trepa, o neto do realizador, que acumula o maior número de citações nos seus elencos por via das várias figurações que iniciou em Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990), antes de um primeiro pequeno papel em Inquietude (1998); e Mário Barroso, que divide as suas oito colaborações com Oliveira entre os papéis de Camilo (Francisca, O Dia do Desespero) e os de director de fotografia (de Francisca a O Convento, 1995).

Quatro homens – entre figuras históricas e de ficção – no mesmo banco de jardim. “Quando me vi vestido de Camões, o Diogo com aquele fato a fazer de Teixeira de Pascoaes, o Mário Barroso de Camilo, o Ricardo mascarado de Dom Quixote, ao lado de muitos dos melhores colaboradores que têm trabalhado com o Manoel – o Renato Berta, a Júlia Buisel, a própria família dele… –, perguntei-lhe ‘Mas que é isto? Encontramo-nos todos no Parnaso, num sítio em que o tempo já parou?’. E ele respondeu: ‘A ideia era mesmo essa!’”.
Recordando o Ípsilon as circunstâncias especiais dessa semana de rodagem de O Velho do Restelo na última Primavera, Cintra fala do “sentimento comum de amor por aquele Senhor que ainda nos vinha filmar com uma alegria muito grande por estar ali, por estar vivo”.

Uma voz
Descontada a circunstância excepcional de Oliveira ter conseguido, aos 105 anos, concretizar mais um dos seus inúmeros projectos – e que continuam a amontoar-se, ainda hoje, na sua mesa de trabalho –, O Velho do Restelo tem, de facto, a particularidade de reunir os seus actores mais fiéis. E se não se trata de presenças com a significância das suas intérpretes femininas – com Leonor Silveira em primeiro lugar, mas também Leonor Baldaque, Teresa Meneses, Catarina Wallenstein ou mesmo a Fernanda “Teresinha” Matos do longínquo Aniki Bóbó (1942) –, que manipulam e dominam os homens por acção ou padecimento, são de facto quatro corpos omnipresentes no seu cinema.

Cintra fala dos actores de Oliveira como “objectos humanos”, e tanto ele como Dória e Barroso lembram a importância da voz nos seus desempenhos. “Quando o Manoel fala de mim, refere-se muitas vezes à voz”, nota o primeiro. Não certamente por acaso, Cintra e Dória praticamente entraram no seu cinema através da voz: Cintra dizendo em Lisboa Cultural textos do Padre António Vieira, personagem que viria a incarnar mais tarde em Palavra e Utopia (2000); Dória, depois de Francisca, sendo narrador no documentário biográfico ainda inédito do realizador, Visita, ou Memórias e Confissões (1982).

“O Manoel pede-nos sempre uma voz e uma presença física, e depois vai-nos trabalhando e passando os seus fantasmas”, diz Diogo Dória, referindo-se ao método de trabalho do cineasta, que não tem nenhuma relação com o registo da representação naturalista mais habitual no cinema. “O Jorge Silva Melo tem um texto sobre isso, dizendo que ‘do corpo, Oliveira não quer saber, e da representação também não’”, acrescenta o actor, que confessa entregar-se “de alma branca” ao autor de Os Canibais (1988).

Mas Dória, dando como exemplo os textos de Agustina que “leu” em Francisca, ou o de Pascoaes agora em O Velho do Restelo, realça que essa não é uma tarefa fácil para um actor. “São textos que, pelo seu lado denso e difícil, com um português muitas vezes arrevesado, e que nunca foram escritos para serem representados, se tornam um trabalho mais difícil do que o de uma representação naturalista”.

Cintra estabelece um paralelismo curioso no modo como Oliveira filma os actores e as estátuas, por exemplo em Palavra e Utopia. “Aquilo cria uma espécie de mise en abîme em relação à própria presença dos actores. É como se a câmara dissesse: ‘Qual é a diferença entre uma estátua de pedra e um actor de carne e osso?’”… E o actor-encenador da Cornucópia diz que viveu repetidamente essa experiência de trabalho “como se fosse um truque, um processo cinematográfico para criar o efeito de estranheza em relação ao próprio acto de viver”.

Mário Barroso foi sempre Camilo no cinema de Oliveira. Agora em O Velho do Restelo, com a ajuda de um bigode-adereço e de um longo capote, o director de fotografia passa facilmente pela figura do escritor de Amor de Perdição. Barroso recorda que, quando pela primeira vez Oliveira o convidou para incarnar esta personagem em Francisca, lhe lembrou que a associação não lhe era “propriamente favorável, já que Camilo tinha a reputação de ser o homem mais feio de Portugal”. O realizador riu-se, e voltou a convidá-lo para O Dia do Desespero. Aqui, Barroso teve de conciliar o trabalho atrás e frente à câmara, o que obrigou Oliveira “a inventar uma solução com a câmara permanentemente fixa, em que ninguém se aproximava dela, nem o assistente de imagem, quando estavam a filmar”. Sobre o seu regresso a Camilo, diz ter-se sentido “magnificamente”. “Foi uma grande emoção ver-me de novo convidado a trabalhar com o Manoel”, confessa, esquivando-se a fazer qualquer apreciação sobre o filme – “deixo isso para os críticos”.

“Quando o Manoel está a filmar uma ficção é sempre quase como se ele estivesse a fazer um documentário sobre a ficção; nunca há a sensação de que o público acreditará que nós somos aquela personagem”, diz Luís Miguel Cintra. Mas há excepções. E uma delas é a personagem de Dom Sebastião que Ricardo Trepa assumiu em O Quinto Império Ontem como Hoje (2004). Algo bem distante da figuração que o neto do realizador faz do Dom Quixote no filme que agora se estreia em Portugal.

“Esse foi, sem sombra de dúvida, o papel da minha vida como actor. Não acredito que tenha novo trabalho assim, com esta densidade e complexidade”, diz Ricardo Trepa, distinguindo o seu Dom Sebastião do Padre António Vieira jovem que fez em Palavra e Utopia. “Vieira era um mensageiro em paz, em harmonia com as palavras que transmitia; Dom Sebastião era um homem assombrado, que se sentiu um emissário de Deus na terra, e isso era mais doença do que outra coisa qualquer” – um papel “complicadíssimo, com uma densidade emocional brutal, e depois com grandes trechos de texto e estados de espírito muito pretos e complicados de gerir”, realça.

Quatro actores, quatro vozes, quatro “almas brancas” que atravessaram e fazem o cinema de Manoel de Oliveira, que esta quinta-feira completou 106 anos. “Um sábio que atravessou dois séculos” – diz Trepa. Um homem que continua a ter um olhar lúcido sobre o estado do mundo, e que no aparente pessimismo que se entrevê em O Velho do Restelo quer apenas deixar ainda – como disse em entrevista à revista americana Variety – “um aviso à Humanidade”.