“Queremos descobrir por que é que o tempo está sempre a avançar e nunca recua”
A cosmóloga portuguesa Marina Cortês está a tentar, em respectivas colaborações com dois físicos de fama mundial, resolver grandes problemas da cosmologia e da física fundamental. Mas também sobe montanhas altíssimas e salta de pára-quedas.
Quando tentámos contactar com esta cientista acerca dos resultados que ela e os seus colegas tinham acabado de publicar, recebemos um singelo email de resposta automática, que aqui traduzimos do inglês: “Estou fora da Internet (a fazer montanhismo no Tibete) até 10 de Outubro e, até lá, não terei oportunidade de ler a sua mensagem. Nessa altura, responder-lhe-ei o mais depressa possível.”
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Quando tentámos contactar com esta cientista acerca dos resultados que ela e os seus colegas tinham acabado de publicar, recebemos um singelo email de resposta automática, que aqui traduzimos do inglês: “Estou fora da Internet (a fazer montanhismo no Tibete) até 10 de Outubro e, até lá, não terei oportunidade de ler a sua mensagem. Nessa altura, responder-lhe-ei o mais depressa possível.”
Como a curiosidade só raramente mata o gato, fomos ver no Google quem era Marina Cortês – e descobrimos que, para mais, antes de se tornar astrofísica e montanhista, tinha sido bailarina clássica profissional. Foi assim que, quando passou por Lisboa, de regresso dos Himalaias e a caminho de Edimburgo, fomos logo entrevistá-la. Com grande candura, falou-nos da sua vida e do seu trabalho.
O seu percurso de vida é bastante invulgar. Pode dar-nos alguns pormenores?
Comecei aos dez anos no Conservatório de dança e dancei profissionalmente até aos 25. Mas desde pequenina que também queria ser cientista. Gostava mais de ser bailarina, mas também sempre gostei de ciência. Estudava no conservatório, em Lisboa, e, aos 16 anos, senti que precisava de um estímulo um bocadinho mais intelectual, para pensar.
O meu pai tinha em casa um livro, em que eu peguei por acaso, que era do Carl Sagan e que se chama Contacto. E eu, aos 16 anos, comecei a ler aquilo e fiquei maravilhada. E pensei: “Se não puder ser bailarina, vou ser astrofísica.” [ri-se] Fiquei com este sonho sempre. Depois desenvolvi problemas nos pés, que me estavam a obrigar a faltar a espectáculos, e nessa altura, aos 25, comecei a fazer o curso de astronomia.
Mas como estava a dançar na Holanda, tive de aprender holandês [ri-se]. Correu tudo bem, gostei imenso do curso de física. Adoro a minha área de trabalho, gosto mesmo da área da cosmologia, do Universo primordial, da energia escura… Fiz o doutoramento em Sussex, no Reino Unido, e um pós-doutoramento em Berkeley, na Califórnia.
Mas nessa altura, fiquei um bocadinho decepcionada. Tínhamos muitos contactos com o governo americano e eu falava muitas vezes para painéis de políticos, a dizer que precisávamos de cinco milhões de dólares para uma lente, para um telescópio… Achei que a ciência, lá, era feita de forma muito desapaixonada, muito ligada aos resultados e menos à natureza de fazer investigação pelo prazer.
Faz lembrar a Jodie Foster, justamente no filme Contacto, quando tenta convencer o governo para financiar o seu projecto…
Exacto. E então, depois de acabar o pós-doutoramento, em 2012, decidi que ia tirar uns meses fora. Passei nove meses na Índia, a viajar e a dar algumas palestras de divulgação científica. Foi nessa altura que conheci o Nepal e os Himalaias. Aí, decidi começar a fazer montanhismo mais frequentemente – o que culminou agora na minha viagem: subi um pico de 8000 metros, o Cho-Oyu, no Tibete.
Vai tentar subir ao Evereste?
Com certeza. Já estou a pensar em como é que vou financiar a minha próxima subida.
Na sua família, há alguém que fomentou o seu gosto pela ciência?
O meu pai é físico. Mas sinceramente, o mais importante é que tenho os melhores colegas do mundo. Trabalho com Lee Smolin [físico teórico do Instituto Perimeter, Canadá] e Andrew Liddle [cosmólogo do Observatório de Edimburgo, Escócia], em cujo laboratório estou agora. O Andrew é uma figura mundial da cosmologia. E comecei a trabalhar com o Lee numa área muito diferente, de física fundamental. São duas pessoas que entendem, que apreciam o facto de eu procurar outras coisas para além da ciência.
Continua a dançar?
Continuo, sim. Mas para mim. Faço-o porque o meu corpo pede, está habituado, gosta de sentir os músculos a mexer.
A sua formação de bailarina também a ajudou a subir aos Himalaias?
Acho que sim. Tenho pensado muito nsso. Os bailarinos precisam de ter muita flexibilidade, o que implica que temos tendões maiores do que o resto das pessoas. E quando estou a subir, o meu tendão de Aquiles, que é o que dá mais força para o passo seguinte, fica completamente esticado e tenho então toda a energia do pé para subir. De facto, para mim é mais fácil subir um plano inclinado do que andar num terreno horizontal. A segunda coisa é que, como bailarina, gosto muito de música e respondo muito à música. E quando estou a ouvir música, o meu corpo reage e mexe-se muito rapidamente.
Ouve música quando sobe uma montanha?
Sim. Acho que como eu cresci sempre a mexer-me ao som de música, quando oiço música, mesmo que esteja arrasada, começo a correr em cima da montanha [ri-se]. Oiço algumas músicas mais agitadas para a subida, para descer uma música mais calma… Depende. Às vezes música clássica, mas também gosto muito também de punk-rock...
Qual é a sua área de pesquisa?
Ah, esse é outro aspecto em que sou um bocadinho diferente dos outros cientistas. Trabalho em várias áreas – o Universo primordial, a época de inflação, o início do Big Bang – e como gosto delas todas... Outra vertente é a energia escura, que é aquela energia que é responsável pela aceleração da expansão do Universo. E com o Lee Smolin, estou a trabalhar numa área apaixonante, que é entender o tempo.
Pode explicar de que se trata?
Queremos descobrir por que é que o tempo está sempre a avançar e nunca recua. É uma pergunta muito razoável. O Universo no seu conjunto evolui de uma forma que é irreversível. Nunca ficamos mais novos, ficamos sempre mais velhos; as galáxias giram umas à volta das outras e acabam por entrar em colapso. Ou seja, há uma direcção do tempo em cosmologia e em todo o nosso dia-a-dia.
Ora, nenhuma das ciências, excepto a física, ignora isso: na biologia, as pessoas sabem que os animais nascem e morrem; na ecologia, há uma direcção da evolução dos ecossistemas. A física é a única ciência em que todas as leis funcionam tanto para a frente como para trás, porque as nossas equações não incluem a direcção do tempo.
E a impressão que isso nos dá é a de que os físicos estão sentados à secretária, a olhar para as equações que escrevem, de costas completamente voltadas para o que se passa fora do gabinete!
As equações tomam em conta o tempo, mas não a direcção do tempo?
Exactamente. Podemos considerar tempos negativos e a equação continua a fazer sentido. Mas os físicos sabem que no mundo as coisas não são assim e por isso, temos de artificialmente de eliminar metade das soluções, porque sabemos que o tempo não anda para trás.
Ou seja, as equações da física têm uma “falha”?
Pois. Essa é uma das razões por que é tão difícil desenvolver uma teoria da gravidade quântica [uma teoria que descreva a gravidade em termos de física quântica], que é o Santo Graal da física. Há 60 anos que se tenta conciliar a relatividade geral com a mecânica quântica, e começa-se a pensar que, para conseguir conjugar estas duas teorias, terá de se levar em conta que a evolução do Universo não é simétrica no tempo. Ou seja, o tempo irreversível terá de entrar nas equações. É o maior desafio que temos pela frente.
E já está a trabalhar nisso com Lee Smolin?
Já temos alguns trabalhos. A primeira coisa é ver se é possível mostrar que, a energias muito elevadas, a irreversibilidade do tempo está presente. E que, a dada altura, quando as temperaturas baixam, dá-se uma transição para uma fase de regularidade, simétrica no tempo – um regime em que a física já é a que nós conhecemos.
Parece muito complexo.
É muito complexo. Mas o prazer que tiramos de nos darmos ao luxo de pensar em profundidade sobre estas questões é enorme. O que me ajuda a conseguir pensar nestes problemas é, em primeiro lugar, o facto de trabalhar com o Lee Smolin. A sua curiosidade não tem limites. Faz perguntas, questiona tudo, é um pensador muito profundo. E trabalhar com ele dá-me uma perspectiva completamente diferente do que é fazer ciência. É tão audaz nos temas que aborda, não há nada de que ele tenha medo ou que ache muito complicado ou ingénuo.
Falemos da descoberta das ondas gravitacionais primordiais. Foi emocionante a nível mundial.
Foi. Faço cosmologia há relativamente pouco tempo, há uns dez anos. Mas mesmo as pessoas que já estão na área há 20 ou mais anos não se lembram de um acontecimento tão importante. Parecia que era Natal, que estávamos a receber prendas!
Nunca pensei que este sinal tivesse sido descoberto. [Com Andrew Liddle] soubemos do resultado uns dias antes da conferência de imprensa [em que foi anunciado] e eu estava tão confundida que tive de passar o fim-de-semana longe da Internet, longe de tudo… Levamos estas coisas muito a peito – e quando de repente alguma coisa acontece que vai contra o que esperávamos, isso obriga-nos a um trabalho mental enorme.
Mas depois surgiram dúvidas sobre a existência das ondas gravitacionais primordiais – e, recentemente, provas de que uma parte do sinal se deve a poeiras da nossa própria galáxia.
Pois, a desilusão foi terrível.
Como surgiram as dúvidas?
Os cosmólogos estavam todos tão entusiasmados que houve um teórico de física das cordas [teoria que tenta dar conta de todas as partículas subatómicas e das forças entre elas, incluindo a gravidade] que resolveu ir examinar a experiência e ver exactamente como é que os autores [a equipa do telescópio BICEP] tinham obtido os resultados. E descobriu um erro crasso naquilo que eles tinham feito.
Um erro crasso?
Sim. A equipa do BICEP é muito pequena, são cinco ou seis. Fazem todos muitas coisas: quando falei com alguns deles, um estava a construir um instrumento e ao mesmo tempo a fazer o tratamento dos dados. Ora, como não faziam ideia de quantas poeiras havia na nossa galáxia, para o determinar foram à Internet, tiraram uma figura de uma apresentação de outra equipa [a do satélite Planck, cuja missão é mapear essas poeiras], digitalizaram-na e utilizaram-na.
E o que aconteceu?
A resolução da imagem é muito boa e teria sido possível inferir o nível de contaminação [pelas poeiras] a partir dela. Mas o que eles não viram é que a imagem vinha com um subtítulo a dizer que o mapa incluía o contributo de uma coisa chamada CIB (cosmological infrared background) e que essa componente teria de ser removida antes de usarem o mapa. E como não repararam nisso, pensaram que a quantidade de poeiras era muito mais pequena do que é na realidade. Foi esse o erro: o facto de não terem visto esse subtítulo a chamar a atenção para a calibração do mapa.
As equipas do BICEP e do Planck estão agora a trabalhar juntas. Vai restar alguma coisa do sinal primordial quando subtraírem o sinal devido às poeiras galácticas?
Infelizmente, já não acredito que haja algum sinal primordial. Custa-me muito a dizer, mas acho que o sinal que o BICEP mediu não é primordial. Acreditar que o seja é muito difícil neste momento, porque a contaminação [pelas poeiras] é muito alta. É difícil perder tudo depois de uma emoção tão grande. Levou-nos muitas semanas a aceitar que afinal o sinal não estaria lá.
Voltando às suas diversas actividades, o paraquedismo também teve uma influência muito grande na sua vida? Quando começou?
Em 2010. E de facto, aquilo muda um pouco a nossa vida porque temos de ultrapassar o medo de saltar do avião. Pensar que podemos morrer faz-nos vislumbrar que, talvez, também possamos tornar a nossa vida mais emocionante noutros aspectos. É uma coisa tão audaz que isso perspassa um bocadinho para o resto da nossa vida e começamos a ser mais ambiciosos. A minha decisão de fazer uma pausa, de viajar na Índia e fazer montanhismo, foi em grande parte devida à disciplina e à coragem necessárias para fazer paraquedismo. Nesse sentido, o paraquedismo é muito importante para mim – talvez das coisas mais importantes.
Há dois anos, estive [a fazer paraquedismo] em Barcelona e vivi uma situação à Indiana Jones: ia sendo atropelada por um avião quando estava a descer… [ri-se]. Por isso, este ano dediquei-me ao montanhismo.
Conhece o montanhista português João Garcia?
Conheci-o em meados de Outubro, depois de subir ao Cho-Oyu, na estalagem da última vila antes do acampamento-base do Evereste, onde estávamos a descansar. Foi na altura em que houve aquela tempestade no Anapurna, mas lá onde nós estávamos, o tempo estava bom.
Foi muito engraçado, porque ele entrou naquela estalagem, a uns 5000 metros de altitude, e eu olhei para ele e percebi logo que era português.
“Chamas-te João?”, perguntei-lhe em português. E ele: “Sim, sim. Tu és portuguesa? Ah, nós vínhamos à tua procura porque lá em baixo, quando entrámos no parque, disseram-me que estava cá uma portuguesa.”
Estivemos a discutir o uso de oxigénio, porque ele é uma das 15 pessoas no mundo que subiram ao Evereste sem garrafa de oxigénio – e eu também gostaria de o fazer. Perguntei-lhe se tinha algum conselho para me dar sobre como arranjar patrocínios para a próxima subida. E ele respondeu: “Para isso tens de fazer um curso de marketing e publicidade!”